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Animais fantásticos e onde não encontrá-los

Texto: Alberto Díaz Añel
Tradução e adaptação: Tiago Marconi

Animais mitológicos e lendários são objeto de estudo da criptozoologia, uma curiosa pseudociência

Sátiro conduzindo um centauro, que carrega uma maça, um arco e uma aljava (obra do século XVIII / acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova York)

A natureza pode se expressar de muitas formas, e a grande biodiversidade que nela existe nos permite catalogar algumas de suas criações como “monstruosas”. Já vimos isso a respeito de plantas em uma de nossas publicações, então agora é a vez dos animais.

Sabemos que a palavra “monstro” pode ser aplicada ao que é diferente, ao que é enorme, ao que é selvagem, mas se fosse sempre assim quase não sobrariam animais fora dessa categoria. Não poderíamos dizer que um chimpanzé (diferente de nós), uma baleia (o maior animal do planeta) ou um tigre (felino selvagem, os que ainda existem) sejam monstros. Mas a literatura e o cinema (quando não?) se encarregaram de criar animais fantásticos baseados em criaturas da vida real, dando a eles as características necessárias para podermos considerá-los monstruosos. Em alguns casos nasceram de antigas lendas, em outros da mera necessidade de assustar o público consumidor das histórias.

Não vamos falar da mitologia clássica, que contribuiu com muitas criaturas fantasiosas nas histórias modernas, sobretudo no cinema. Muitas delas sempre tiveram uma ambivalência humano/animal que dava certo encanto (ou terror) a seu aspecto e comportamento. Criaturas humanas com parte de cavalo (centauros), cabra (fauno), touro (minotauro), serpente (Medusa) ou ave (sereias). Mas as sereias não são parte mulher e parte peixe? Isso foi a partir da Idade Média. As sereias da mitologia clássica tinham corpo de ave e cabeça de mulher. Se querem saber mais sobre elas, há um texto em espanhol no mesmo blog onde se publica esta série.

Agora sim, vamos aos monstros completamente animais, começando pela água, onde supostamente começou a vida em nosso planeta. Os monstros aquáticos (há os marinhos, os fluviais e até os lacustres) são um clássico da ficção científica, mas vêm de muito antes. Quando se acreditava que o mundo era plano (bom, algumas pessoas ainda acreditam), os marinheiros viam a exploração do oceano como um desafio extremamente perigoso. Os mistérios não estavam apenas além do horizonte, a ansiedade por chegar à terra fez muitas criaturas serem descritas como monstros destruidores das temerárias embarcações. Por isso é que grande parte dos mapas antigos, sobretudo da época dos grandes navegadores e descobridores de novas terras, estão repletos de seres ameaçadores que surgem das profundezas marinhas.

Esquerda: Baleia (ou orca) atacando um barco (1570) – Abraham Ortelius, originalmente publicado en Theatrum Orbis Terrarum. Direita: Polvo ou lula gigante afundando uma nave (1802). Ilustração de A História natural, geral e particular dos moluscos, de Denys-Montfort.

Os monstros mais típicos nesses mapas eram as baleias e as orcas, com terríveis e afiados dentes (ainda que as baleias não os tenham), e as lulas gigantes, capazes de afundar uma embarcação com seus poderosos tentáculos. Claro que tudo era pura fantasia, já que, embora existam lulas gigantes, seu comprimento máximo de 18 metros (somado ao fato de que vivem em grandes profundidades) tornaria impossível que pudessem afundar uma caravela. Talvez a primeira descrição desse tipo de criaturas com tentáculos seja o Kraken, que aparece na mitologia escandinava e inspirou muitos artistas, inclusive o próprio Júlio Verne, em seu romance ‘Vinte mil léguas submarinas’ (1870). E se falamos de “baleia com dentes”, não podemos deixar de mencionar ‘Moby Dick’, o romance de Herman Melville, cujo protagonista era na verdade um cachalote branco, que tem, sim, dentes e é um dos piores inimigos das lulas gigantes.

Os clássicos de Júlio Verne e Hermann Melville

Antes de passarmos para a terra, não podemos deixar de citar muitos monstros com origem em animais que habitaram este planeta antes de nós: os dinossauros. Embora as criaturas mais famosas desse grupo (obrigado, ‘Jurassic Park’) sejam as terrestres – já falaremos delas –, não se deve esquecer que dinossauros também viveram na água. E, apesar de todos terem sido extintos, muitas lendas colocam espécimes sobreviventes dessas enormes criaturas em corpos d’água que ficaram isolados do mar. O mais famoso de todos é o monstro do Lago Ness, que viveria nesse remoto lugar do norte da Escócia e seria parecido com os plesiossauros, extintos no período Cretáceo, depois da queda do famoso meteorito na região de Iucatan, uns 65 milhões de anos atrás.

Na Patagônia Argentina, há uma versão local, outro suposto plesiossauro que viveria nas profundezas do lago Nahuel Huapi. Assim como a criatura escocesa é conhecida como Nessie, a argentina é conhecida como Nahuelito. Por último, podemos mencionar Mokèlé-mbèmbé, a versão monstruosa dos pântanos no centro da África, que segundo as diferentes descrições está muito longe de se parecer com um plesiossauro. Obviamente, jamais foi possível provar de forma confiável a existência de qualquer dessas criaturas reptilianas.

Concepção artística de plesiossauros (arte: Nobu Tamura – CC BY 3.0)

Agora, sim, pisamos na terra, onde vamos encontrar abundantes criaturas monstruosas. E se falamos de dinossauros, não podemos deixar de observar que se parecem bastante com muitas criaturas mitológicas, algumas das quais imaginadas antes que pudéssemos saber da existência dos já extintos répteis que viveram milhões de anos antes de nós. Coincidência? Difícil saber, mas nunca se sabe até onde pode chegar a fantasia humana, sobretudo em épocas em que a ciência não existia para dar respostas aos mistérios da natureza. Nesse grupo, podemos incluir os dragões, tanto os descritos nas lendas medievais europeias (com grandes asas e lançando fogo) como nas de origem chinesa (mais parecidos com cobras voadoras).

Esquerda: dragão medieval europeu em manuscrito do século XIII; direita: dragão chinês (arte: Sodacan – CC BY-SA 4.0)

Nos tempos modernos seria impossível deixar de lado os dinossauros “verdadeiros” de ‘Jurassic Park’ (vários filmes entre 1993 e 2018) e o mais famoso dinossauro japonês, Godzilla (falamos dele aqui), cujo grande tamanho e poderes inusuais (como o “bafo atômico”) tiveram origem na exposição à radiação nuclear.

Cartazes de ‘Jurassic Park’ (1993 – Universal) e ‘Godzilla vs. Hedorah’ (1971 – Toho)

Ainda que para muitos pareça inacreditável, embora os dinossauros tenham sido extintos, não foram totalmente. Só os maiores desapareceram da face da Terra, alguns dos menores permaneceram para deixar descendência. Claro que os sucessores atuais dos dinossauros não se parecem muito (ou parecem?) com aquelas criaturas que aparecem em livros e filmes sobre o período Jurássico. Quem ocupa o trono que os dinossauros deixaram há milhões de anos? As aves. Bem, se compararmos um pequeno dinossauro com uma galinha, ninguém vai notar a semelhança, mas se olharmos para suas estruturas esqueléticas, notaremos que quase não há diferenças (só as que a evolução deixou). E mais: muitos paleontólogos acreditam que alguns dos antigos dinossauros tinham penas, de forma que as diferenças em relação à galinha diminuiriam bastante. Por sorte as atuais aves descendem dos dinossauros pequenos, ou teríamos que lidar com galinhas gigantes como no romance de H.G. Wells, ‘O alimento dos deuses’ (1904).

Esquerda: esqueleto de galinha da virada do século XVIII para o XIX, por George Stubbs; direita: Compsognathus Philadelphia (autor: Jim, the Photographer – CC BY 2.0)

Se subirmos um pouco na escala evolutiva, vamos encontrar muitos parentes nossos entre os esquivos monstros que fazem parte das lendas em todo o mundo. Basta subir as montanhas do Tibete para encontrarmos o famoso abominável homem das neves, mas conhecido como o Yeti. A história desse enorme ser peludo de cor branca que caminha sobre duas patas remonta a milhares de anos atrás, a tal ponto que o próprio Alexandre Magno conheceu sua lenda. Alguns expedicionários dizem tê-lo visto ou fotografado suas pegadas, mas logo se comprovou que todas as pistas levavam a animais da região, sobretudo ursos tibetanos.

Yeti e Pé Grande, em versão engraçadinha

O primo norte-americano do Yeti, Pé Grande ou Sasquatch, seria um primata bem mais alto, robusto, de cabeça pequena e pelagem abundante, castanha ou avermelhada. Foi “observado” principalmente na região noroeste dos Estados Unidos, mas também houve avistamentos no resto do país e no Canadá. Como no caso do Yeti, não existem provas fidedignas de sua existência, apenas vídeos de elaboração duvidosa ou pegadas que na verdade foram deixadas por outros animais do bosque.

Muitos pensam que as lendas dessas criaturas humanoides estariam relacionadas com um grande primata, o Gigantopithecus blacki, que viveu até cerca de 100 mil anos atrás no Sudeste Asiático. Embora tenha habitado este planeta junto com nosos antepassados, esses últimos chegaram às terras do Gigantopithecus quando ele já estava extinto, assim provavelmente jamais se conheceram. Pelos poucos fósseis encontrados, sabe-se que era bastante parecido com os atuais primatas que vivem na mesma região, os orangotangos, mas podia alcançar uma altura de cerca de três metros. Os que acreditam na existência do Pé Grande dizem que alguns exemplares de Gigantopithecus poderiam ter cruzado da Ásia para a América pelo estreito de Bering (como teriam feito os humanos que chegaram ao nosso continente e outros animais, como os mamutes), e sobrevivido à extinção para viverem escondidos nos bosques norte-americanos. Uma teoria muito parecida com a que sustenta a existência de criaturas pré-históricas nas profundezas dos grandes lagos, ou à que levou à criação do mais famoso gorila gigante, King Kong, que estreou nas telonas no filme de mesmo nome, de 1933, espalhando sua fama em dezenas de filmes, animações, videogames e “apresentações ao vivo”.

Gigantopithecus (arte: Concavenator – CC BY 4.0) e cartaz de King Kong (1933 – RKO)

Apesar do Yeti, o Pé Grande e King Kong serem os “grandes primatas” mais famosos, não se deve esquecer que em todo o mundo existem lendas sobre criaturas desse tipo, como o Yeren, na China, o Yowie, da Austrália, o Batutut, no Vietnã, o Hibagon japonês e o Basajaun, no País Basco. Todos eles têm uma coisa em comum: nunca foram capturados, nem mesmo em vídeo.

Absolutamente todas as criaturas que mencionamos nessa história são conhecidas como criptídeos, que vêm a ser os animais hipotéticos estudados pela criptozoologia, que se poderia traduzir do grego como “estudo dos animais ocultos”. Cabe esclarecer que a criptozoologia é uma pseudociência e que não faz parte das áreas da biologia.

Mais de uma pessoa, ao ler esta publicação, seguramente vai dizer “falta esse” ou “não mencionaram aquele”. A lista de criptídeos é interminável, já que abarca todas as criaturas criadas pela imaginação humana desde tempos imemoriais ao redor de todo o globo. Alguns dos mais famosos, afora os já mecionados, são o Chupacabras, famoso monstro cuja lenda nasceu há apenas 25 anos e que foi “observado” em toda a América latina, o Jackalope, uma lebre com chifres de antílope (que na verdade seriam carcinomas produto de uma infecção com papilomavírus), que viveria no oeste dos EUA, e o Pombero, um duende da mitologia guarani com o qual há de se tomar muito cuidado.

Da esquerda para a direita: Jackalope (CC-BY-SA), Pombero (cuco.com.ar – CC BY SA 3.0) e Chupa-cabra (Jeff Carter / HowStuffWorks – CC BY 2.5)

Por falar em mitologia guarani, não podemos deixar de mencionar o primo hispano-americano do lobisomem, o Lobizón. Diz-se que se transforma nessa temível criatura quem tenha a desgraça de ser o sétimo filho homem de um casamento, motivo pelo qual era costume em algumas famílias sacrificar o menino para que não virasse lobo. No século XIX, para evitar que essa superstição conduzisse a semelhantes atos, os governos de Argentina e Paraguai decidiram que seus presidentes seriam padrinhos de todos os sétimos filhos homens, o que virou lei na Argentina em 1973, outorgando-se ao menino uma bolsa completa para estudos primários e secundários.

Deixamos de lado também alguns dos menores, os insetos e aracnídeos, mas necessitaríamos muitas páginas mais para descrever todas as histórias em que aparecem formigas, abelhas, moscas, mosquitos, baratas, aranhas, escorpiões e outras criaturas de dimensões gigantescas contra as quais a humanidade sempre precisa se defender. Os de tamanho normal já perturbam bastante.

Em cima: à esquerda, cartaz do filme ‘O mundo em perigo’ (1954 – Warner), sobre um ataque de formigas gigantes; ao centro, montando abelhas em ‘Viagem 2, a ilha misteriosa’ (2012 – New Line); à direita: Vincent Price em ‘O regresso da mosca’ (1959 – 20th Century Fox). Centro: à esquerda, mosquitos gigantes em ‘O elo perdido’ (2009 – Universal); à direita, ataque de aranhas gigantes em ‘O hobbit: a desolação de Smaug’ (2013); Embaixo: à esquerda, luta contra enormes escorpiões em ‘Fúria de Titãs’ (1981 – Charles H. Schneer); à direita, a barata extraterrestre de ‘Homens de Preto’ (1997 – Columbia)

A lista de animais monstruosos é interminável. Podemos encontrá-los em vales, em montanhas, nos trópicos e na fria tundra, em bosques e desertos, em lagos e mares profundos. Mas só existe um lugar onde encontraremos todos juntos: a imaginação humana.


Ciência Monstruosa é um projeto do pesquisador e comunicador científico argentino Alberto Díaz Añel, que o Ciência na rua está adaptando para o português. Confira abaixo os textos já publicados.

Vampiros: quanto mais longe, melhor (publicado em 3 de julho de 2020)
Vampiros e doenças do sangue (publicado em 10 de julho de 2020)
Os lobisomens e o crescimento dos pelos (publicado em 17 de julho de 2020)
Podemos matar o que não está vivo? (publicado em 24 de julho de 2020)
Como o corpo se defende? (publicado em 31 de julho de 2020)
O essencial é invisível aos olhos (publicado em 7 de agosto de 2020)

À flor da pele (publicado em 14 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 1) (publicado em 21 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 2) (publicado em 28 de agosto de 2020)
Raios, rãs e monstros: a faísca que nos dá vida (publicado em 21 de setembro de 2020)
Salada de monstros (publicado em 16 de outubro de 2020)
Divide e multiplicarás (publicado em 2 de junho de 2021)

As duas (ou mais) faces da vida (publicado em 30 de junho de 2021)
Como fabricar um zumbi… sem matar ninguém (publicado em 28 de julho de 2021)

Em busca da vida eterna (publicado em 25 de agosto de 2021)
Quando os mutantes vêm marchando (publicado em 22 de setembro de 2021)

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