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“Minha cabeça está nas estrelas, mas eu vivo na Terra”
Divulgação científica

por | 8 jul 2022

Entrevista com o astrofísico Alan Alves Brito, ganhador do Prêmio José Reis de divulgação científica

No fim de junho, o astrofísico Alan Alves Brito foi anunciado como vencedor do Prêmio José Reis de divulgação científica, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O prêmio é concedido anualmente, com três categorias que se alternam: “jornalista em ciência e tecnologia”, “instituição ou veículo de comunicação” e “pesquisador e escritor”, que foi a deste ano. De acordo com a comissão julgadora, a escolha se deu pela pluralidade de trabalhos de divulgação científica, com foco relevante na diversidade, equidade e inclusão social.

Natural de Feira de Santana, no interior da Bahia, Alan (pronuncia-se “álan”), 44 anos, é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desde 2014 e tem extensa produção tanto em pesquisa como na divulgação de ciências, incluindo a publicação de seis livros no curto intervalo entre 2019 e 2022.

Na última quarta-feira, ele conversou com o Ciência na Rua e contou um pouco de sua trajetória, desde o encanto pela astronomia ainda muito menino, passando pela divulgação em saúde na adolescência, pela Universidade de São Paulo (USP), onde fez mestrado e doutorado, pelo Chile e pelo quilombo Morada da Paz, no Rio Grande do Sul, onde criou um projeto fascinante em colaboração com os moradores. Mais do que narrar sua própria trajetória, o professor, pesquisador e escritor reflete de forma contundente sobre a educação básica e a educação superior, os diferentes caminhos da produção de conhecimento e a relação entre ciência e sociedade no Brasil. Veja abaixo os principais trechos da conversa.

 

Por que você foi estudar física?

A física foi um ritual de passagem para estudar astronomia, que é minha grande paixão da infância. Decidi muito cedo, por volta dos 8 anos de idade, que queria estudar astronomia, que eu seria um astrônomo. E sempre soube que, para realizar esse sonho, eu precisava estudar física. Num primeiro momento, pensei até em não estudar física, porque na minha cidade não tinha o curso, fiz parte da primeira turma do curso de física da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Eu ia estudar matemática, já havia esse curso de matemática há um bom tempo. A decisão pela física sempre esteve atrelada à astronomia. E foi uma escolha muito potente na minha vida, porque a física trouxe para mim experiências e questionamentos e possibilidades que de fato tornaram minha caminhada pela astronomia muito mais interessante.

O texto do CNPq sobre o prêmio diz que você trabalhou como divulgador de ciências da saúde na adolescência. Que história é essa? Conte um pouquinho por favor.

Essa é uma história que realmente poucas pessoas sabem, mas eu fui bolsista, fiz parte de um programa chamado Prosad, Programa de Saúde do Adolescente, do estado da Bahia, dos 12 até os 21 anos. Eu fui treinado, inclusive, pelo Ministério da Saúde, esse programa era vinculado ao primeiro Centro de Saúde de Feira de Santana. Tínhamos um acompanhamento, era uma equipe com psicóloga, enfermeira, assistente social e adolescentes multiplicadores de saúde. Havia encontros semanais com a equipe de saúde, com a psicóloga, encontros quinzenais com os grupos multiplicadores, e aí íamos às escolas, às feiras de saúde, fazíamos encontros regionais sobre adolescência, porque eram as grandes questões da adolescência: dificuldade de aprendizagem, as questões das infecções – que na época a gente chamava de doenças sexualmente transmissíveis, mas são as infecções sexualmente transmissíveis –, a questão de HIV/aids, questão das drogas, então a gente foi treinado pelo Ministério da Saúde para atuar como multiplicadores, a questão da gravidez não planejada na fase da adolescência… Criamos muitas coisas, cartilhas, encontros… E ali também, aos 13 anos, eu criei um clube de ciências no meu bairro, a partir do programa Ciranda da Ciência, que não foi muito longe. Acho que ali eu já sentia as dificuldades de financiamento à pesquisa (risos), porque tínhamos que fazer tarefas, a Fundação Roberto Marinho nos pedia, e eu não conseguia, não tinha dinheiro para fazer as tarefas que eles pediam e mandar de volta. Porque era assim, a gente tinha que fazer algumas tarefas, e eles iam alimentando o clube a partir daí. Mas a gente não tinha dinheiro, acabou morrendo.

O Prosad foi um momento muito potente da minha adolescência porque fui muito acompanhado por essa equipe de profissionais, havia esse convívio com outros adolescentes, e essas experiências, de falar de ciência, de educação, de saúde, então realmente tenho boas memórias. Participei de congressos nacionais, em Salvador, voltados para a adolescência. Comecei no Prosad em 1991, 1992, o Estatuto da Criança e do Adolescente tinha acabado de ser promulgado, então me lembro que fizemos muitas oficinas sobre o ECA. Também havia um programa muito forte no interior da Bahia para erradicação do trabalho infantil. Fizemos vários cursos com o MOC, Movimento de Organização Comunitária, em Feira de Santana, então viajávamos muito para o interior, para a região do sisal… Minha adolescência foi movimentada.

Você cresceu divulgando ciência.

Cresci divulgando ciências. Participava também, junto com essa equipe de profissionais, do Pólo Feira de Psicanálise, e eu fui um adolescente que fazia discussões com os textos de Lacan, de Freud, então foi um ambiente muito rico. Hoje, quando olho para trás, acho que essa experiência explica muita coisa.

Ainda existe o Prosad?

Acho que não existe mais. Nessa época, havia um movimento muito grande de políticas públicas para tentar maneiras de barrar a infecção por HIV, pelo que a gente chama hoje de infecções sexualmente transmissíveis, havia muito mais políticas, vários projetos de saúde com foco na adolescência. Também havia ali uma discussão muito forte em relação às laqueaduras de trompa das mulheres pobres, negras. Havia oficinas de sensibilização, participávamos de muitas oficinas buscando trabalhar as emoções… Mas hoje em dia, infelizmente, muitos desses programas terminaram, não têm incentivo. Inclusive a inscrição para o vestibular – eu fiz vestibular aos 17 anos – paguei com uma dessas bolsas que recebi do Ministério da Saúde. Isso me lembro bem.

Lembro de haver muita campanha sobre AIDS nos anos 80, começo dos 90…

E nós tínhamos os materiais todos, os protótipos dos órgão internos, dos órgãos externos, pôsteres imensos com órgãos reprodutores infectados, a gente usava isso em sala de aula… Foi muito rica, essa experiência, esse programa, foi um programa que me ajudou muito. Inclusive na minha própria maneira de me relacionar com a vida. Foi realmente incrível.

Seus projetos de mestrado e doutorado tinham a ver com química, é isso? Composição química de corpos celestes?

Exatamente. Tanto no mestrado como no doutorado, aí já na Universidade de São Paulo. Fiz a graduação em física no interior da Bahia. Entrei na primeira turma do curso de física da UEFS e, já em 1998, ganhei uma bolsa do CNPq, do Pibic (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica). Fui bolsista por 3 anos, já trabalhei com astronomia, numa área que a gente chama de astronomia de posição.

Aí, no mestrado e no doutorado, mudei de área. Fui morar na USP, e me especializei numa metodologia que a gente chama de espectroscopia, que é estudar a luz das estrelas. Eu trabalhava com estrelas velhas, com 10 bilhões de anos, e meu objetivo era justamente entender como os diferentes elementos químicos da tabela periódica – oxigênio, magnésio, silício, cálcio, titânio, bário, európio… – se formaram e como nos ajudam a entender a evolução e a formação de própria galáxia. A espectroscopia é muito parecida com a dispersão da luz, como se forma, por exemplo, um arco-íris. É a mesma ideia: dessa dispersão da luz em diferentes cores. Fazemos isso com a luz vinda das estrelas e, a partir daí, a gente consegue reproduzir em laboratório o espectro observado dessas diferentes estrelas. Então, no mestrado e no doutorado, trabalhei com essa metodologia e com a evolução química da Via Láctea.

E desde o doutorado você trabalha com programas de extensão ou já vem de antes?

Não, desde a graduação eu trabalhei com projeto de extensão. Na pós-graduação eu fiz alguns projetos, nos pós-doutorados, então sempre atuei com divulgação de ciências. De maneira estruturada, organizada, criando projetos, como eu tenho feito, quando entro na universidade em 2014. Mas durante minha formação, tanto na graduação como na pós, eu desenvolvi projetos, atividades de extensão. Não tanto quanto eu gostaria, porque a pós-graduação foi um período de muitas coisas, muitos desafios, metodologias novas, mas ainda assim, sempre que podia, eu estava ali.

Quilombo Morada da Paz (foto: arquivo pessoal)

Como você atua em muitos programas de extensão, vamos tratar só de um, o Akotirene Kilombo Ciência. O que esse nome quer dizer? De onde lhe veio a inspiração para juntar quilombo, que é espaço de resistência e luta, bem chão, bem terra, com física e astronomia, campos científicos que de certa maneira miram origem, forças e infinitude?

Fui convidado para dar uma aula de astronomia para estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRGS. E, numa dessas aulas, encontrei Yashodhan, que é uma quilombola e a matriarca, a ialaxé dessa comunidade, chamada Morada da Paz, que fica aqui próximo de Porto Alegre. Não tão próximo. E a Yashodhan me convidou a conhecer a comunidade quilombola, ela ficou muito impactada com a aula que eu tinha dado sobre os elementos químicos e me chamou para ir lá fazer um curso que eles chamam de desformação. O curso de desformação é quando a comunidade discute temas a partir de outras perspectivas, então fui discutir cosmologia, mas a ideia era desformar, ou seja, trazer uma outra perspectiva, dialogar com os saberes e conhecimentos que eles e elas praticam e detêm nessa comunidade e a partir do que eu trago dessa astrofísica de base europeia, desse projeto moderno/contemporâneo, de ciência. E fui. E, ao chegar lá, foi muito impactante. A comunidade, as crianças, os adultos, todo mundo numa roda, ouvindo eu falar e fazendo perguntas incríveis. Então essa foi a primeira visita que fiz à comunidade, e foi uma paixão à primeira vista, a gente se conectou muito.

Aí fui convidado pela comunidade para pensarmos projetos que envolvessem esse diálogo entre a astronomia, essa cosmologia moderna e contemporânea, com os ciclos de vida do quilombo. Ou seja, eles queriam de fato um diálogo intercultural, é o que eu entendia. Nesse processo de aproximação com essa comunidade, surgiu o edital do Fundo Elas, que tinha vários parceiros, para promover a participação de meninas nas ciências. E aí a gente resolveu, conjuntamente, criou o projeto Akotirene Kilombo Ciência dentro da comunidade, sentados embaixo de uma figueira linda que está lá dentro da comunidade.

Discutindo o que seria esse projeto, o nome Akotirene surge da comunidade. Yamoro – que é quilombola e também estudante aqui do curso de ciências sociais da UFRGS – é yiakekere, ou seja, a segunda pessoa nas relações de hierarquia que existem dentro da comunidade, e trabalhou comigo por três anos como estudante de iniciação científica. Ela trouxe, nessa roda – nesse ipadê, como elas chamam –, o nome Akotirene porque Akotirene é um nome também potente ligado a Palmares. A gente fala em Zumbi, a gente fala em Dandara, mas Akotirene, dentro dessa narrativa histórica de memória, é também uma mulher potente, que articula conhecimento, liderança, resistência, luta, aquilombamento. Então como era um projeto voltado para meninas nas ciências, Akotirene nos pareceu um nome muito potente.

Akotirene, com k, porque também esse kilombo, Kilombo Morada da Paz, é com K, numa proposta de desformar, de repensar os processos colonizadores. Foi daí que surgiu o nome, foi desse contexto que surgiu o projeto, a gente postulou a esse edital com o projeto Akotirene Kilombo Ciência, que procuraria trazer as questões de física e astronomia num diálogo com os saberes, mas também pensando as relações de raça e de gênero.

Mas ainda havia uma outra questão fundamental: os jovens do quilombo frequentam – frequentavam, porque agora já estão fora do quilombo, estão fazendo universidade, estou falando de 4 anos atrás… Esses jovens frequentavam uma escola de ensino médio próximo ao quilombo, e havia uma tensão racial entre os jovens quilombolas negros e os jovens não negros dessa escola. Então esse projeto foi criado também para aproximar, para trazer os jovens não negros da escola para dentro do território quilombola e, por outro lado, levar esses conhecimentos, saberes e fazeres do quilombo para a escola.

E foi realmente um projeto lindo, tem um vídeo, o Instituto Unibanco, a Fundação Carlos Chagas, os parceiros que patrocinaram fizeram um documentário de nove ou dez minutos, e é muito bonito. Fizemos vários movimentos ao longo de um ano, tivemos financiamento, ganhamos 30 mil reais. Com esses 30 mil reais, compramos livros, compramos um telescópio muito bacana e fizemos observações do céu, aí trabalhamos ao longo de um ano vários encontros, trazendo física, biologia, astronomia, cosmologia, os saberes do quilombo, os jovens foram para o quilombo, fizeram vivências quilombolas… Aí tem os relatos deles e delas, o quanto isso ampliou… Apresentamos para esses jovens cientistas mulheres negras, cientistas homens negros, então foi uma troca muito bacana. E a partir daí o projeto não morreu mais. Construímos um laboratório de astrofísica dentro da comunidade. Existe a sede, a construção. E a partir daí a gente seguiu. Nós “oficializamos” esse projeto via extensão da UFRGS e seguimos fazendo os mesmo movimentos, trabalhando educação escolar quilombola, numa perspectiva da educação em ciências, com outros grupos.

Então desde o primeiro momento, a primeira edição do projeto, a gente continuou trabalhando com outras escolas, com as crianças quilombolas que ainda vivem no território, e a gente segue. É um projeto pensando a educação escolar quilombola, a educação escolar indígena, nessa perspectiva de trazer outras cosmologias para esse diálogo. Ou seja, não é só falar da astronomia moderna e contemporânea, mas se aproximar também, e trazer isso para a universidade, que é o que tanto precisamos, porque existe a lei 10.639 de 2003, a lei 11.645 de 2008, que são leis que preveem que de fato trabalhemos isso na universidade na educação básica, as questões da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena.

Esse projeto é esse caminho, é esse lugar, é o lugar por onde a gente tem buscado articular as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola, a educação para as questões ético-raciais, então é um movimento assim grandioso. E que dá certo porque é o tempo inteiro junto com a comunidade. Não é um projeto meu, Alan, é um projeto nosso, da comunidade, existe uma parceria, existe uma confiança, uma entrega muito interessante. É realmente um diálogo intercultural como deve ser.

Atividade do Akotirene Kilombo Ciência em escola (foto: arquivo pessoal)

E essa tensão entre os estudantes negros quilombolas e os estudantes não negros, isso deu uma melhorada?

Existem os relatos dos próprios estudantes no vídeo. Há muitos mitos, e eles desmitificaram. Essa comunidade quilombola é uma comunidade que professa também uma espiritualidade que eles chamam de afroindígena. Existe ali uma conexão entre as matrizes africanas, as espiritualidades ligadas à matriz africana, indígena… Então existe toda uma especulação sobre o que é isso, sobre esse jeito de ser e de viver.

Esse encontro foi muito interessante nesse sentido, de eles entenderem o que acontecia naquele território, o que move a experiência dessas comunidades. Os relatos dos estudantes são muito positivos, eles romperam, perceberam que não havia nada do que se dizia, do que se pensava, que não havia motivo para ter preconceito pela forma de vestir dessas jovens, desses jovens quilombolas, que não são inferiores por serem negros. Porque também há uma questão muito forte no Rio Grande do Sul, uma questão racial. É um estado muito europeu, tem sua matriz europeia muito forte, e que trata as pessoas negras de um outro jeito, por conta do racismo na sua estrutura. Então foi muito bom estabelecer esse diálogo com os estudantes e o diálogo também com os professores, porque também há questões com os professores da educação básica. Nessa relação também houve professores envolvidos.

Foi um processo de autoconhecimento e de conhecimento. As próprias meninas brancas, as meninas não negras, se deram conta do preconceito que sofriam por serem meninas, por serem mulheres. Há algumas falas em que dizem assim, “Eu entendi que, por ser mulher, eu posso ser o que eu quiser, posso ser física, posso ser engenheira.” Então foi realmente um processo de desformação, de desconstrução de preconceitos, de estereótipos, foi uma experiência muito positiva.

Uma das suas linhas de pesquisa mais recentes é relacionada a educação. Por que você foi explorar essa senda?

Quando eu chego na UFRGS, em 2014, logo entendi a potência que havia no Instituto de Física, por que o Instituto de Física tem um departamento de astronomia, um departamento de física, uma pós-graduação em física Capes 7 [a avaliação máxima de cursos de pós-graduação conferida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] desde que foi avaliada, um programa de pós-graduação em ensino de física – quando eu cheguei era Capes 5, depois mudou para Capes 6. Por outro lado, não havia nenhuma articulação da astronomia com o ensino de física nem da astronomia com a divulgação, com o ensino nessa perspectiva. Então entendi que era necessário fazer esse movimento.

A astronomia entra no currículo nacional de um jeito muito estrutural, temos astronomia desde o primeiro ano do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio. E nós, como Departamento de Astronomia, não estávamos articulando a astronomia na perspectiva da educação. O departamento historicamente é muito forte em pesquisa em astronomia básica, temos grandes nomes da astrofísica aqui na UFRGS. Mas essa parte da educação estava dormindo. Então falei, “não, a gente precisa mover, precisa construir, precisa dar uma formação melhor para os estudantes de física, de outras áreas, precisa fazer projetos também de educação em astronomia”, e aí me lancei. E quando me lanço nessa relação com programas de ensino – e também foi todo um processo de preparação, não foi assim da noite para o dia – também entendo que o ensino de física seria um lugar potente para trazer as questões raciais, porque também não me interessava discutir as questões ético-raciais senão numa perspectiva da estrutura. Não queria ficar discutindo as questões de raça que chegavam para o Alan, professor, não queria ficar discutindo algo como se fosse quase uma psicanálise, um tratamento psicológico do meu caso, eu queria tratar isso como parte de um processo educativo estrutural.

Então me vi nesse lugar muito confortável de também criar nas ciências exatas uma discussão ético-racial que passaria por questões históricas, filosóficas, epistemológicas da ciência, do lugar da pós-graduação, que também é um lugar de disputa. Ou seja, eu queria orientar teses de doutorado, dissertações de mestrado, queria orientar alunos de iniciação científica nessa questão ético-racial também, não só trabalhar física e astronomia moderna e contemporânea, trazer a tabela periódica, os elementos químicos, mecânica quântica, física de partículas. Não, eu não queria só isso, eu queria também trazer outras questões. Então te digo: foi tudo muito pensado, ponto a ponto. Foi arquitetado, fui construindo isso, fui me preparando passo a passo, fui escrevendo meus primeiros artigos, aprendendo metodologia. Requeria de mim também sair de uma zona de conforto, porque eu não tive essa formação. Então eu tive que aprender metodologia, tive que ler muito, tive que me apropriar. Claro que, como eu te contei, fui um adolescente que tive essa experiência de anos, também participo de muitos movimentos ao longo da minha vida, de movimentos sociais, tenho essa experiência. Mas academicamente, como área de pesquisa, é algo que construo aqui, a partir do entendimento de que não há separação entre ensino, pesquisa e extensão. A divulgação em ciências não é pior nem melhor do que a pesquisa básica em física ou em astrofísica. O ensino de física, de astronomia, também tem ali uma perspectiva da pesquisa em ensino. Então eu não hierarquizo esses movimentos, entendo como eles estão ligados e por isso eles são tão potentes.

Não há como falar de pesquisa em física, em astronomia, se não pensarmos o contexto social do Brasil, eu não consigo desarticular isso, não consigo simplesmente colocar minha cabeça nas estrelas. Não, a minha cabeça está nas estrelas, mas eu vivo na Terra, então a gente precisa olhar para o lado. Mas foi realmente tudo pensado milímetro por milímetro.

E também o próprio processo de escrita dos livros tem a ver com isso. Os livros que escrevi até agora estão relacionados com esse diálogo entre ensino, pesquisa e extensão. E dos projetos. Não escrevi os livros da minha cabeça, fiz vários anos de formação de professores, de divulgação de ciências, foram vários encontros, e ali eu percebia que as pessoas diziam: “olha, você precisa escrever, você precisa trazer…”. Então foi um processo que começou assim, e depois eu escrevo. E eu fui fazendo. Às vezes as pessoas se assustam porque saíram tantos livros, mas é um processo de anos, estou aqui há oito anos, esses livros resultam sobretudo desse processo amadurecido de oito anos no ensino, na pesquisa, na extensão, no chão do território quilombola, com comunidades indígenas, com professores.

Você foi finalista do Prêmio Jabuti com o livro ‘Antônia e a caça ao tesouro cósmico’?

Não, eu fui finalista do Jabuti com o livro ‘Astrofísica para educação básica: a origem dos elementos químicos no universo’. Esse foi o finalista do Jabuti 2020.

E ele é o quê, exatamente?

É um livro intermediário, eu diria, entre a formação básica e a divulgação de ciências, porque ele consegue dialogar com vários públicos. Ele é a minha indignação pelo fato de que escondemos das pessoas essa história de que o oxigênio que respiramos, o ferro do nosso sangue, o cálcio dos nossos ossos, esses elementos químicos que constituem a nossa vida, que nos conecta ao universo de um outro jeito, eles são formados nas estrelas. Isso não chega! Não chega na educação básica, não chega para professores, há professores de química, estudantes de química na universidade que não sabem. Não conectam que esses elementos químicos que eles tanto estudam são formados em processos que envolvem o nascimento, a vida, a morte das estrelas, ou em processos que estão ligados aos primeiros instantes de formação do universo. Essa epopeia, essa contação de história, não chega. Então isso me indignou. Por que esconder isso das pessoas? Por que não contar isso de um outro jeito? Então o livro é sobre isso, é a história térmica do universo, trazendo esses elementos químicos, conectando tudo isso, nos conectando finalmente às estrelas, a esses processos. E aí também, claro, como eu sempre penso, essa perspectiva de fazer essas relações entre o céu e a Terra, entre as experiências do céu e as nossas experiências antropológicas. E também para nos dar um pouco de responsabilidade cosmológica. Ou seja, a partir do momento em que estamos conectados com as estrelas, somos responsáveis, sim, cosmologicamente, pela preservação da vida na Terra.

Então o livro traz astrofísica, traz tudo isso, traz história da ciência, rompe com essa ideia de que ciência, astrofísica, é para poucas pessoas. Não trabalhamos nesse discurso, nessa narrativa, com a ideia de genialidade, como se a ciência fosse neutra, a-histórica, ateórica, pura… Vamos trazendo astrofísica, mas também fazendo as pessoas pensarem o que é ciência, como a ciência funciona, quais são esses processos, então há essa preocupação.

Eu diria que o livro é isso, a gente quer chegar em vários corações. É um desafio, buscar uma linguagem, trazer imagens… E tem funcionado, porque professores da educação básica têm lido… A minha motivação primeira era que professores da educação básica, independente da formação – física, matemática, letras, história – fossem capazes de pegar aquele texto e, de algum jeito, se conectar e levar para a sala de aula. Quando escrevemos, pensei nisso. E tem dado certo. Os feedbacks que tenho recebido de professores… E aí acontecem coisas curiosas: não escrevi pensando, por exemplo, em estudantes de pós-graduação, e onde eu chego, os estudantes de pós-graduação dos cursos de física têm lido muito esse livro. E eu não fiz pensando neles. A linguagem não foi para a pós-graduação, por exemplo. Então acho que eu cumpri um papel com esse livro. É um livro que me deixou muito feliz.

E aí, de novo: o que é esse livro? É tudo que aprendi no mestrado e no doutorado. É tudo que faço desde então na astrofísica básica. É a síntese de processos de ensino, de pesquisa e de extensão. A primeira palestra que dei aqui na UFRGS sobre a origem dos elementos simples foi em 2015, na Livraria Cultura, que estava lotada de pessoas. Ao terminar a palestra, muitas pessoas vieram falar comigo que estavam encantadas, que nunca tinham percebido… Aí pronto, fui dar vários cursos na SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), minicursos sobre astrofísica e a origem de elementos simples. Percebi que de fato havia um buraco ali. E fiz entrevistas com alunos de química que apresentavam pôsteres na [reunião anual da] SBPC. Fui de pôster em pôster, todos os cinco dias da SBPC, perguntando aos alunos de química onde se formava o hidrogênio, onde se formava o oxigênio, e as respostas foram alarmantes. “Oxigênio? Isso se forma no laboratório”. Entende? Os estudantes de química estavam completamente à parte dessa discussão macro. Então falei: “Não, é preciso escrever sobre isso”, e aí surgiu o livro, que foi, para a minha surpresa, já finalista. Ficamos entre os cinco – tem top 10, top 5 –, ficamos entre os cinco livros finalistas do Jabuti na categoria ensaio de ciências. Isso me deixou muito contente. Foi o primeiro livro!

Aproveitando minha pesquisa errada, quero saber mais sobre ‘Antônia e a caça ao tesouro cósmico’. Agora ele tem uma continuação, né? Esse é mais de divulgação científica mesmo?

Os dois livros [são]. O ‘Asftrofísica básica’ é um livro de divulgação de ciências também, eu trato assim, ele não é um livro didático, é um texto pensado para ficar ali no intermédio. ‘Antônia e a caça ao tesouro cósmico’ é um livro só [de] texto. É literatura juvenil/adulta, mas é só texto, não tem imagens. Não sei se você já leu ‘O mundo de Sofia’ ou conhece, é um livro só de diálogo. Esse livro fez muito sucesso, e eu me inspirei muito no ‘Mundo de Sofia’ quando pensei esse livro. Claro que não é a mesma coisa, mas eu não queria trazer diagramas de astronomia, imagens, era para ser uma história. Então Antônia é uma menina negra, uma adolescente negra do Brasil profundo, que fala “oxente”, que fala “painho”, que fala “mãinha”, então ela tem realmente um lugar, que é esse Nordeste, e ese cabelo [destacado na capa] carrega o segredo do universo. Realmente quis botar essa menina na capa, porque também é isso: “a física, a astrofísica, as ciências exatas não são lugares para as pessoas negras”, isso é dito desde sempre. Então uma menina negra, um menino negro não se veem nesse lugar. Então essa capa já é uma tecnologia social, nesse sentido, eu já queria ali na capa marcar esse cabelo crespo, que não fede, não é ruim… Aí tem uma fala dela no livro que diz assim: que o cabelo dela acompanha a expansão acelerada do universo, ele aponta para o alto e carrega os segredos do universo.

Então o livro é uma história. E Antônia é uma menina, então tem curiosidades. Só que é uma história que vai ter mistério, vai ter pistas, e nessas pistas vai trazendo o sistema solar, sistemas planetários, a questão da vida. Mas ela é uma menina negra, e isso vai ser marcado ao longo do livro nas falas dela. E aí as crianças negras e não negras se identificam rapidamente, recebo também muitos comentários incríveis. Pais, professores, meninas, meninos, querem que eu continue a história da Antônia, recebo vários áudios, é lindo. Professoras e professores que trabalham o livro em sala de aula, aí fazem um projeto inteiro com o livro e me mandam… É um livro de texto, então a criança tem que ler, tem que ser acima de 10, 12 anos.

E aí, eu percebi, pelos relatos que chegaram, “não, eu preciso escrever agora a história infantil ilustrada, que traga o cabelo que carregava os segredos do universo, então surge ‘Antônia e os cabelos que carregavam os segredos do universo’, que é realmente pensando nas crianças abaixo de oito anos. Seis anos, cinco anos, quatro anos… Que vão ver as imagens, e os pais vão poder contar a história, ou as crianças que estão começando a ler. Então Antônia 2 é um livro ilustrado, um livro infantil mesmo. E ‘Antônia e a caça ao tesouro cósmico’ já é um livro mais juvenil, exige leitura… Mas ali cada capítulo trabalha o sistema solar, então os professores podem trabalhar, com esse livro, o sistema solar inteiro, que atravessa o currículo da educação básica em astronomia, podem trabalhar diversidade, as questões de negritude, há várias questões que os professores podem trabalhar. Foi feito nesse sentido, mas é um livro de literatura infantil e juvenil. E adulto, porque não dá para separar muito isso, eu não separo muito, mas é um texto mais focado na juventude.

Sua experiência crescente em educação vem de uma visão pessimista sobre a educação formal em nosso país, especialmente no que se refere ao ensino de ciências?

Eu sou sempre muito otimista. Sou egresso da escola pública, estudei minha vida inteira em escola pública e penso que a escola pública no Brasil é um território negro. Ela é ocupada majoritariamente por pessoas negras, ainda que as epistemologias, as metodologias que chegam, os livros, não tragam as histórias negras, indígenas. Nesse sentido, a escola pública ainda é um território branco. Então acho que esse é um desafio, precisamos enegrecer as metodologias, as epistemologias, precisamos de mais professores negros nas escolas, professores de ciência, precisamos de outro jeito de abordagem da ciência na educação básica. Muitos desafios. Mas ainda acho que não há como mudarmos a estrutura ético-racial do Brasil sem a escola pública. Porque, se a escola pública é esse território ocupado majoritariamente por crianças negras, ela precisa ser potencializada. E eu até diria que parte do sadismo, do racismo estrutural no Brasil, um dos motivos de a escola pública ser tão atacada, da forma que é, é porque ela é um território negro. É uma consequência.

Acho que temos grandes desafios agora nessa questão da curricularização, do sumiço inclusive das aulas de ciência desse currículo… Porque a gente sabe que não vai sumir das grandes escolas privadas. A educação privada no Brasil vai continuar tendo aulas de física, de química, com laboratórios, mas na escola pública, por conta de todo o processo que estamos vivendo, corre o risco de sumirem de uma vez as ciências. Então sou otimista, mas não vivo alheio à situação. Acho que o momento é preocupante, de muitos desafios, mas na universidade precisamos fazer mais, articular mais, nos aproximarmos mais da educação básica, fortalecer mais esse espaço, estar mais junto com os professores e as professoras da educação básica.

Penso que precisamos retomar esse espaço público da educação, da cultura. Também temos que pensar os museus de ciências. Por exemplo, “ciências na rua”, é disso que a gente precisa. A gente precisa da ciência na rua, precisa que os estudantes negros, as crianças negras, cheguem aos planetários, aos observatórios… Não discutimos muito isso, mas esses lugares também não são ainda frequentados majoritariamente por esse público.

Então sou muito otimista, mas reconheço que há muitos desafios, e teremos que transpor esses desafios. E quando pensamos a educação escolar quilombola, a educação escolar indígena, que são projetos diferenciados no meio de tudo isso… Uma coisa é pensar a educação pública de um modo geral, quando fazemos um recorte da educação escolar quilombola, da educação escolar indígena, e aí pensar educação em ciências com essas comunidades, [há] mais desafios ainda. Porque muda a concepção do que é ciência, de como vamos nos relacionar com essa ciência, para quê ela serve, quem está fazendo, que projeto de ciência, de desenvolvimento, de tecnologia, é esse. Temos que repensar de novo nossa conexão com o universo. Por isso é tão importante que essa discussão de um projeto de educação em ciências intercultural, de um jeito crítico, inclusivo, democrático, esteja de fato estar na agenda de todos nós.

Alan em atividade do Akotirene Kilombo Ciência (foto: arquivo pessoal)

Você vislumbra chances de a maioria da população brasileira desenvolver interesse por temas científicos? E, se sim, por quais caminhos, já que você é um otimista?

A primeira coisa é: isso precisa ser um valor. Precisamos ter a ciência e a cultura científica como um valor. E, para isso, precisamos reformular nossas plataformas de educação, como encaramos a educação, a cultura e a ciência no Brasil. Precisamos repensar a relação da universidade com tudo isso, porque a universidade tem um papel fundamental, é ela que forma professores, que forma cientistas, forma divulgadores de ciências. No caso de divulgadores, há outros caminhos, mas é sobretudo a universidade. Então se a universidade também não se repensa e não se vê num lugar estratégico nesse processo, fica tudo muito difícil. Precisamos de políticas públicas, precisamos de dinheiro, precisamos de mais planetários espalhados pelo Brasil, pelo Brasil profundo, nas regiões mais difíceis precisamos de museus de ciências, precisamos que as pessoas tenham acesso a essa cultura, a livros, precisamos ocupar as mídias. As pessoas não estão nessas mídias, nessas tecnologias todas que têm surgido, a maioria não está ali ainda, isso ainda é uma bolha, precisamos romper essas bolhas.

Precisamos de outras linguagens, porque também não é só fazer com que as crianças cheguem, ou os jovens, as pessoas de maneira geral, outros públicos, cheguem a esses espaços, mas as narrativas desses espaços também precisam ser revistas. Então precisamos de outro contrato mesmo de educação, de cultura, de valorização da divulgação em ciências profissionalmente, precisamos de dinheiro para fazer tudo isso, precisamos rever muitas prioridades no Brasil. Então acho que é muito desse lugar. Precisamos também trazer outros públicos, as comunidades quilombolas, indígenas, as periferias, as pessoas LGBT, as mulheres, precisamos de fato atrair essas outras pessoas que historicamente também não estão ocupando esses lugares de divulgação de ciências, de protagonismo na produção de conhecimento científico e tecnológico. Também não valorizamos os saberes e os fazeres ancestrais dessa ciência ancestral.

São várias estratégias, e temos que ir buscando essas várias estratégias em conjunto. Então não é só papel da universidade, não é só papel da escola, os projetos públicos e privados precisam atuar nesse sentido. É um árduo caminho, mas que passa por um processo de educação. Penso que é importante. Precisamos rever nossa prioridade e como vamos construir essa agenda de educação, e de educação em ciências particularmente, para que isso seja um valor, seja parte da cultura. E, para isso, as pessoas também precisam se entender assim. Porque se fazemos uma ciência para as pessoas e não junto com as pessoas, elas não vão se perceber como parte desse processo. Então precisamos de fato nos aproximar das pessoas, estar junto com as pessoas, para que elas entendam que aquele lugar também é o lugar delas e que elas também são importantes para a construção dessa agenda. Não é um lugar, uma torre de marfim, para poucas e poucos, mas é um lugar mesmo para todos nós.

Em que pontos, de acordo com seus estudos e experimentos, a cultura popular se liga com a Cultura científica?

Quando olho para minhas experiências quilombolas e indígenas, as pessoas organizam suas vidas a partir da observação, dessa relação que elas mantêm com a Lua, com o Sol, com os rios, com as plantas, com a terra, com a vida. Então percebo que há um outro ecossistema aí, que os conhecimentos populares, ancestrais, trazem para nós. Se pensarmos, por exemplo, em toda a articulação com o que se chama de etnobotânica, o conhecimento das plantas, que também está muito presente nas culturas populares, esse conhecimento das plantas, a forma como organizamos a economia, há vários exemplos dessas minhas experiências em que percebo que esse conhecimento produzido popularmente nas comunidades precisa chegar à universidade, a esse lugar que canonizamos como único lugar de produção de conhecimento, de tecnologia.

Você chega nas comunidades indígenas, há tecnologia para construção de casas. Casas subterrâneas… Isso não é tecnologia? Um cuscuzeiro é uma tecnologia ancestral. Eu, por exemplo, quando vou para a Bahia, meus pais não tiveram formação científica nenhuma, meu pai não lê, não escreve, eles moram na zona rural. Quando chego lá, para dormir eu preciso de um mosquiteiro. Não podemos dormir sem mosquiteiro. E esse mosquiteiro é uma tecnologia importantíssima para aquele lugar. Não só o mosquiteiro, mas a própria relação dessas pessoas com os mosquitos, com as cobras. Entende? Há uma relação de respeito, de interação, de equilíbrio. Então essas aprendizagens todas estão lá na base. Por exemplo, na cozinha de mãinha, quando fui agora em dezembro, eu vi vaga-lumes, que eu não tinha visto há muito tempo. Então as histórias que eles contam sobre os vaga-lumes, sobre as cobras, os besouros, sobre os pernilongos, sobre inclusive o sumiço de tudo isso, desses insetos, a relação com o plantar, com o colher, entender a importância da planta, da formiga…

Você chega nas comunidades quilombolas, escuta histórias incríveis sobre as formigas, sobre como as formigas se organizam, sobre a relação da formiga com a chuva que está para vir. Tudo isso é conhecimento, e isso, para mim, não é uma ameaça ao conhecimento científico, essa é a grande questão. Isso não é uma ameaça. Para mim, isso é uma potência, essa troca é potente. É potente porque aprendemos, porque formamos também estudantes, cientistas, professores de um outro lugar. E também porque esses conhecimentos também vão chegar para essa ciência canônica e agitar o coreto. Essa ciência canônica também vai se mover, a ciência não está dada, não existem verdades absolutas na ciência, é isso que se aprende.

Então quando escutamos, ouvimos essas experiências, esses conhecimentos, aprendemos a nos rever também. Não adianta chegar em uma comunidade quilombola ou indígena, dizendo: “olha, o Sol, a Terra e a Lua, eles se movem desse jeito, funcionam assim, a Lua é assim e assado”, quando a relação dessas comunidades com a Lua, por exemplo, parte de um outro lugar. Então vamos precisar ouvir isso, vamos precisar entender essa relação do Sol, da Terra, da Lua, do arco-íris, dos fenômenos meteorológicos com o ciclo de vida daquela comunidade. É parte. Não é como nós, que separamos o céu da Terra; “o Sol, dia; as estrelas, noite”… Não. Aquele conhecimento é parte da vida. O tempo… E aí, claro, são mundos visíveis e invisíveis que estão ali articulando o tempo inteiro. Essa é a grande aprendizagem, para mim. Não posso chegar lá com uma perspectiva etnocêntrica, cosmofóbica, dizendo que nada do que está sendo feito, dito, vivido ali é ciência. Não posso fazer isso, acho que não tenho esse direito. O máximo que posso dizer é: “olha, aqui há um arcabouço, uma linguagem outra”… Porque também é isso, eu aprendo inglês – continuo com meu sotaque baiano, mas aprendo inglês… Morei no Chile, aprendi espanhol, aprendi coisas do Chile, de literatura chilena, do mundo espanhol, que eu não conhecia, mas eu não deixei de ser baiano por isso. Continuo sendo baiano, continuo falando do jeito que falo.

Precisamos entender essas trocas culturais, sobretudo, sem precisar exterminar o outro porque vive e experimenta a cultura, a ciência e a relação com a natureza de um outro jeito. E aí, claro, quando vamos para as políticas públicas, esse diálogo também é importante. Quando você vai tratar de políticas públicas, você tem que ter diálogo. Esses diálogos interculturais é que nos fazem chegar no consenso científico, no consenso humano… E aí, “humano”, não só só certos humanos, mas também essas experiências. É assim que percebo, é assim que vivencio e tenho certeza de que estou do lado certo.

Precisamos de fato aprender a ouvir essas comunidades, essas experiências, precisamos ampliar o diálogo da divulgação, precisamos de fato estar na rua. A rua, a periferia, é o centro, nesse sentido. Não é a periferia, a rua, no sentido de que está distante, mas no sentido mesmo de que a rua é o cruzamento, a rua é a encruzilhada, é o lugar potente mesmo. Realmente esperanço muito a partir dessa ideia, de que precisamos estar na rua. Ocupar a rua mesmo.

Foto: André Feltes (arquivo pessoal do pesquisador)

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