jornalismo, ciência, juventude e humor
Ciência Monstruosa: divide e multiplicarás

Texto: Alberto Díaz Añel
Tradução e adaptação: Tiago Marconi

Até agora, vimos que muitas coisas nos diferenciam dos monstros. Por algum motivo, eles são monstros e nós, não (com algumas exceções, claro).

Não nos alimentamos do sangue dos outros, não uivamos para a lua cheia, não temos partes do corpo que pertenceram a outras pessoas (transplantes excluídos), não dormimos em sarcófagos, não respiramos embaixo d’água, não somos invisíveis aos outros (ao menos visualmente), podemos seguir contando diferenças.

Mas se há algo que temos em comum com os monstros é que todos somos compostos por células. E muitíssimas células. Bilhões delas. E muito diferentes entre si. Pode-se discutir se essas células estão vivas ou não, mas não há dúvidas de que estão ali. E, de uma maneira ou de outra, esse conjunto de bilhões de células que formam um corpo (animal ou vegetal) tiveram sua origem em uma só célula.

Pouco sabemos da infância do Drácula ou do lobisomem, não temos ideia se o monstro da Lagoa Negra já um girino ou se nasceu de um ovo de réptil, mas temos claro que as múmias em algum momento foram o bebê mimado de algum grande faraó. A questão é que, se um corpo é formado por muitas células, em algum momento elas foram uma só.

Mas esse processo pelo qual se chega de uma só célula a bilhões delas não se detém quando dão forma a um corpo, continua por toda a sua vida (ou morte, no caso dos monstros). Vemos isso nas células dos folículos pilosos dos lobisomens (e dos nossos) e nas de nossa epiderme (e na do monstro da lagoa negra), ambas encarregadas de produzir a queratina que compõe nossos pelos e a capa protetora de nossa pele (e escamas). Também podemos ver constantemente nas células que circulam no nosso sangue (e no dos vampiros, que também é nosso), muitas das quais pertencem ao sistema imune que nos protege da invasão de vírus e bactérias.

Imagem: Haileyfournier – CC BY-SA 4.0

Para não prolongar o mistério, vamos falar desse mecanismo que nos permite ser o que somos e viver como vivemos: a divisão celular, mais conhecida em biologia como mitose, um processo extremamente complexo e refinado que parece ir contra as leis da matemática (só em palavras), já que para multiplicar (em número) é preciso dividir (as células).

A flor é o órgão reprodutor por excelência de um grande número de plantas. O gameta masculino (pólen) é levado ao estigma (da mesma planta ou de outra) através da polinização. De lá chega até o gameta feminino (óvulo) para iniciar a fertilização e a formação da primeira célula de uma futura planta. (Imagem: CNX OpenStax – CC BY-SA 4.0)

Quando o pólen (nas plantas) ou um espermatozoide (nos animais) se juntam com o óvulo (tem o mesmo nome nas plantas e animais), gera-se a célula que vai dar origem a um organismo completo, seja um jasmin ou uma pessoa, com algumas exceções, como sempre ocorre na natureza. É mediante esse tipo de reprodução, conhecida como “sexual”, que se forma uma célula a partir da união das células reprodutoras (ou gametas) dos indivíduos (ou de um só, como acontece em muitas plantas) da mesma espécie. Há muitíssimas variantes desse tipo de reprodução, mas vamos focar no momento posterior à formação da célula que se origina a partir da fusão dos gametas (óvulo e espermatozoide ou pólen).

Como podemos ter muitíssimas células a partir de uma só? Obviamente, primeiro é preciso dividi-la em duas. Mas há um problema, se dividimos em duas a mesma célula, ela vai ser cada vez menor, e todo seu conteúdo (incluindo a informação genética contida em seu DNA) vai se dividir pela metade, e isso não é muito conveniente na hora de criar um organismo completo.

Milhões de espermatozoides viajam até o óvulo para que só um (às vezes mais de um) possa fertilizá-lo. A união do material genético de ambos os gametas dará lugar ao núcleo da futura célula, cujo citoplasma (e todo o seu conteúdo) será o mesmo do óvulo. (Imagem: Maria Mellor)

Antes de solucionar esse problema, vamos um pouco mais para trás. A informação (na forma de DNA, como vimos em publicações anteriores) contida nessa célula que dá origem a todas as demais possui provém de dois indivíduos. No nosso caso, “mamãe” e “papai”. Portanto essa informação em nossas células está duplicada. Em uma próxima publicação vamos ver como procedem as células para não expressar essa informação duplicada ao mesmo tempo (adiantando: por que, se mamãe e papai têm olhos castanhos e verdes, eu tenho olhos azuis? Vão pensando). Por isso se definem a “carga genética” de nossas células como 2n, o que quer dizer que os gametas (óvulos e espermatozoides) possuem, cada um, um número n de de informação em seu DNA. Não se assuste, não quer dizer que só têm metade da informação, mas sim que têm ela completa, mas, na célula que formam ao se unir, encontra-se duplicada. E duplicada não significa que seja idêntica em cada par, mas que um n vem de mamãe, e o outro n de papai, e ambos n podem ser muito diferentes (como a cor dos olhos mencionada acima)

Esclarecido esse ponto, sigamos com o que maus nos interessa, que é a mitose. Se vamos dividir uma célula em duas, temos que nos assegurar que ese 2n (a informação duplicada em nosso DNA) se conserve nas duas células que serão formadas ao se dividir a original (se não, estaríamos formando novamente gametas – que é mais ou menos como eles se formam, mas esse é outro tema). Portanto, antes de dividir uma célula, temos que duplicar seu material genético. Esse processo, pelo qual se copiam as duas cadeias do DNA se denomina replicação. É muito parecido com a transcrição do RNA que explicamos anteriormente (no que diz respeito ao empareamento de nucleotídeos), mas aqui se copiam ambas as cadeias do DNA, e não uma só. Isso quer dizer que, no momento prévio à mitose, a informação genética das células é 4n (mas só por um curto tempo). Abaixo podem ver um vídeo simples onde se explica a replicação do DNA (em inglês).

À duplicação do DNA, segue-se um período de crescimento no qual a célula aumenta de tamanho (para solucionar o problema de que as células resultantes seriam cada vez menores), e logo depois dessa etapa começa a mitose propriamente dita, que está dividida em fases bem distintas entre si. É importante esclarecer que as etapas prévias e posteriores à divisão do material genético, e a própria replicação do DNA, fazem parte do que se conhece como interfase (ou intérfase), que é a etapa em que se encontra a maioria das células do nosso corpo. Algumas passam à mitose de maneira frequente (como as células da pele), outras de maneira intermitente (como os folículos pilosos), e outras permanecem a vida toda nesse estado, como a maior parte dos neurônios.

A primeira etapa da mitose é conhecida como prófase. Nessa etapa, as longas cadeias de DNA (chamadas de cromatina) começam a se condensar para permitir uma melhor distribuição do DNA. A ideia é que o material genético duplicado se conserve perfeitamente nas duas células resultantes da mitose. É preciso ter em conta que, se estirarmos todo o DNA que existe dentro de uma célula, sua extensão teria uns 2 metros! Portanto esse DNA se encontra muito compactado (graças à ajuda de umas proteínas chamadas histonas) dentro do que se conhece como núcleo da célula, uma espécie de esfera porosa que protege o material genético. Por sua vez, para assegurar uma distribuição parelha na mitose, as compactas cadeias de DNA se condensam ainda mais na prófase para formar estruturas bem densas conhecidas como cromossomos.

Os cromossomos merecem um capítulo à parte. Sua estrutura, no geral, se assemelha a um X, seu tamanho varia bastante. Além disso, seu número é diferente de acordo com cada organismo. Esse número pode ser constante (como em nós e na maioria dos animais e plantas) ou muito variável (como em muitas outras plantas). Os humanos temos 23 pares de cromossomos, 22 conhecidos como autossômicos e um par de cromossomos sexuais, que diferem segundo o sexo biológico: XX em mulheres e XY em homens. Falamos de pares justamente porque cada membro do par provém de um dos progenitores (mamãe e papai, no nosso caso).

Na prófase, afora a condensação do DNA em cromossomos, ocorrem mais algumas mudanças. Nessa etapa, conhecida como prometáfase, a membrana que cerca o núcleo celular começa a se desintegrar, deixando expostos os cromossomos. Começa, então, a se formar uma estrutura que será chave para uma distribuição adequada da informação genética: o fuso mitótico. Chama-se assim por ter a forma do utensílio que se usava para enrolar o fio que se vai formando na roca, instrumento utilizado antigamente (em alguns lugares, ainda se usa) para fiar à mão. E, sim, foi com a ponta de um fuso de roca que a princesa Aurora virou a Bela Adormecida do conto de Charles Perrault imortalizado por Walt Disney.

À esquerda, o fuso de roca da Bela Adormecida; à direita os fusos mitóticos e cromossomos

Uma estrutura protéica conhecida como centríolo é a encarregada de formar o fuso. Primeiro ele é duplicado, e cada dupla começa a se separar rumo a ambas as extremidades da célula, deixando ao passar longos tubos (microtúbulos) formados por uma proteína adequadamente chamada tubulina, que finalmente vão formar a estrutura com aspecto de fuso de fiar. Esses tubos vão servir como guia aos cromossomos para sua correta distribuição. Como? Os cromossomos se unem à tubulina através de sua estrutura central (o centrossomo), que se encontra no equivalente ao lugar onde as pernas do X se cruzam. O interessante é que cada uma dessas “pernas” é idêntica à outra. Lembram-se que o DNA se duplicou previamente? Bem, a informação de cada cromossomo está em uma dessas pernas, a outra é a dupla feita antes da mitose. E como cada cromossomo vem em pares, há outro “X” similar que também tem sua informação duplicada. Por que dizemos similar? Porque um desses X (na verdade uma “perna” que logo se duplicou) veio de mamãe, e a outra de papai.

Uma vez armado o fuso, e acrescentados a ele os cromossomos, vem a segunda etapa da ma mitose, a metáfase. Nessa etapa, os pares de cromossomos começam a se acomodar no “equador” da célula, ou seja, a parte mais larga do fuso mitótico (conhecida como placa equatorial ou metafásica. Essa fase é um importante ponto de controle da mitose. Se algum dos cromossomos falhar em se unir ao fuso e se posicionar no equador, a divisão celular não pode continuar, já que há risco de que as células resultantes tenham número diferente de cromossomos, o que geralmente leva a enfermidades hereditárias ou diretamente à morte celular.

A terceira etapa é a anáfase. É aqui que as pernas do X (conhecidas como cromátides irmãs) devem se separar. Cada uma delas é enviada para um diferente pólo da célula, o que ocorre pelo esticão produzido pela tubulina que faz parte do fuso mitótico. Dessa maneira, o que por um instante foi um 4n, agora passa a ser 2n em cada extremo da célula.

E agora chega a quarta etapa, ou telófase. Uma vez que o material genético alcançou os polos da célula, o fuso mitótico começa a se desintegrar, e o DNA de cada lado começa a ser envolto por uma nova membrana nuclear, levando a célula a ter, por um breve momento, dois núcleos. Por sua vez, os cromossomos começam a se descondensar dentro dos núcleos para voltar ao estado inicial de cromatina, que tinham antes da fase da mitose.

Não se deve perder de vista que a célula não e só DNA dentro de um núcleo. Existem outras estruturas muito importantes fora do núcleo, no que se conhece como citoplasma. Essas estruturas, conhecidas como organelas, têm nomes muito particulares, como mitocôndrias, retículo endoplasmático, complexo de Golgi, endossomos, lisossomos, cloropastos (em plantas), que cumprem funções essenciais no transporte de diversos compostos dentro da célula, síntese de proteínas, geração de energia, reciclagem e muito mais coisas. Algumas dessas organelas (como as mitocôndrias) podem também se dividir e se distribuir por partes iguais durante a mitose, de maneira que cada célula resultante seja o mais parecida possível à original. Em outros casos (como o complexo de Golgi, ou aparelho de Golgi), se fragmentam em pequenas vesículas que se distribuem por toda a célula em partes iguais, para voltar a reconstruir as organelas nas duas células resultantes.

Imagem: Ali Zifan – CC BY-SA 4.0

Ao mesmo tempo que a telófase, produz-se a etapa final da mitose, a citocinese, momento em que começa o “enformcamento” da zona equatorial da célula, entre os dois núcleos formados. Ao fim dessa etapa, se separam as duas células “filhas”, que terão a mesma carga genética que a célula “mãe”. Obviamente, nem tudo termina aqui, essas duas células podem, por sua vez, passar pelas mesmas etapas, de forma a obter quatro células, e logo oito, depois 16, até chegar a… Bilhões.

Como bem sabemos, nossos bilhões de células não se parecem muito com a que lhes deu origem. Isso ocorre porque ao longo das sucessivas mitoses ocorrem mudanças que conduzem à diferenciação celular, o que permitirá os mais de 200 tipos celulares que fazem parte dos nosos órgãos e tecidos. É dessa forma que os neurônios do cérebro, os linfócitos do sistema imune, as células foliculares e as da epiderme (ambas produtoras de queratina), as células do pâncreas que sintetizam insulina, e todas as células do nosso corpo, provêm de apenas uma, por mais incrível que pareça. Tudo graças à mitose, o processo celular que utiliza a divisão para multiplicar.

Nota: com tudo que vimos nesta publicação, agora vamos poder distinguir que na imagem do topo da página não há dois monstros, apenas um. Nela parece haver dois seres cobertos de pelos e com atitude agressiva, exibindo ameaçadoramente suas poderosas dentições. Mas isso só se aplica à criatura da direita, o lobisomem. O que se vê na esquerda é uma célula de ouriço-do-mar se dividindo para gerar duas células idênticas. Os pelos são o fuso mitótico, e os dentes são os cromossomos em anáfase, viajando rumo aos pólos daquelas que serão as novas células.

De brinde, deixamos dois vídeos curtos. No primeiro, uma célula se dividindo vista no microscópio. Na outra, uma animação mostrando todas as etapas da mitose. Aproveitem!

 

Ciência Monstruosa é um projeto do pesquisador e comunicador científico argentino Alberto Díaz Añel, que o Ciência na rua está adaptando para o português. Confira abaixo os já publicados.

Vampiros: quanto mais longe, melhor (publicado em 3 de julho de 2020)
Vampiros e doenças do sangue (publicado em 10 de julho de 2020)
Os lobisomens e o crescimento dos pelos (publicado em 17 de julho de 2020)
Podemos matar o que não está vivo? (publicado em 24 de julho de 2020)
Como o corpo se defende? (publicado em 31 de julho de 2020)
O essencial é invisível aos olhos (publicado em 7 de agosto de 2020)

À flor da pele (publicado em 14 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 1) (publicado em 21 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 2) (publicado em 28 de agosto de 2020)
Raios, rãs e monstros: a faísca que nos dá vida (publicado em 21 de setembro de 2020)
Salada de monstros (publicado em 16 de outubro de 2020)

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade