Texto: Alberto Díaz Añel
Tradução e adaptação: Tiago Marconi
Nesta publicação, Ciência Monstruosa estreia um novo protagonista. Na verdade, dois. Está bem, são dois, mas o monstro é um só. Ou há dois monstros nessa história?
Nas últimas décadas do século XIX, o escritor britânico Robert Louis Stevenson já era famoso graças à publicação de sua icônica obra A ilha do tesouro. Três anos depois desse sucesso, em 1886, a exitosa história de piratas deu lugar ao espanto em sua forma mais cruel. Um sonho febril, talvez originado por seu delicado estado de saúde, inspirou Stevenson a escrever em muito poucos dias um dos romances de terror mais famosos de todos os tempos: O médico e o monstro.
Stevenson era intrigado com a dicotomia entre o bem e o mal que acreditava residir em todos os seres humanos, motivo pelo qual em seu romance tratou de refletir a luta interna que se desata entre essas facetas tão opostas da personalidade. Poderia se dizer que existe certa semelhança com os personagens do famoso romance Frankenstein, de Mary Wollstonecraft Shelley (de quem tratamos aqui e aqui), com a diferença de que no livro de Stevenson o cientista e o monstro se encontram dentro de um mesmo corpo.
Na história, Doctor Jekyll tenta se desfazer, mediante a criação de uma poção secreta, da fração malvada que crê residir em sua personalidade, fazendo-a aflorar na forma de Mister Hyde, que não apenas age de acordo com sua maldade, como também a reflete de maneira fiel em seu aspecto abjeto.
Porém, como todo cientista que quer manipular as forças da natureza a seu bel-prazer, Dr. Jekyll começa a perder o controle de sua metade malvada, fato que se vê agravado porque a qualidade dos insumos para preparar a poção acaba sendo inadequada. Um problema muito parecido com o que ainda hoje acontece aos cientistas quando tentam reproduzir um experimento.
(Alerta de spoiler!) Não vamos estragar o fim, mas a coisa não termina bem para um dos dois. E, portanto, tampouco para o outro. Um estranho caso de suicídio que se pode ao mesmo tempo classificar como homicídio. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Obviamente, como a ciência se mete em tudo, não faltou quem se pusesse a analisar o romance do ponto de vista psicológico. Segundo certos especialistas, não cabe dúvida de que o protagonista sofre de um transtorno dissociativo de identidade, que era conhecido até não muito tempo atrás como transtorno de personalidades múltiplas. Ou seja, várias (nesse caso, duas) personalidades que vivem dentro de uma só pessoa.
Essa desordem foi estudada e descrita com detalhes apenas poucos anos depois da publicação do romance, embora nessa época já houvessem sugerido a Stevenson que seu personagem certamente sofria de tal transtorno, afirmação negada veementemente pelo escritor, talvez para afasta suspeitas, já que a história se parecia demasiadamente com um caso muito conhecido de então, o do francês Louis Vivet, diagnosticado com duas personalidades totalmente opostas, uma bondosa e outra arrogante, a tal ponto que a primeira dizia estar paralisada da cintura para baixo, enquanto a segunda podia caminhar perfeitamente.
Mas vamos ao que nos trouxe até aqui, a ciência. É possível que uma substância, nesse caso a “poção” de Dr. Jekyll, leve uma pessoa a desenvolver outra identidade? Sim e não, pelo menos não a ponto de gerar uma personalidade tão complexa como a de Mr. Hyde. Mas antes falemos da condição que muitos especialistas associaram a esse(s) personagem(ns), o transtorno dissociativo de identidade.
A palavra dissociação é usada para se referir a um processo mental através do qual uma pessoa se desconecta (ou se dissocia) de seus sentimentos, pensamentos, lembranças ou identidade. A dissociação, em si mesma, é um fenômeno comum. É provável que todos já tenhamos experimentado alguma forma de dissociação em algum momento. Por exemplo, mais de uma vez o leitor que por ventura tenha um carro pode ter dirigido até sua casa e se deu conta de que não se lembra como dirigiu, por provavelmente ter se dissociado em algum grau enquanto dirigia. Até sonhar acordado é considerado um tipo de dissociação.
No caso de Jekyll e Hyde, essa dissociação é puramente de identidade, afetando de maneira direta seus sentimentos e lembranças, em que os primeiros transitam por caminhos nitidamente opostos, enquanto os segundos se fragmentam para formar um quebra-cabeças que, uma vez resolvido, levará ao inevitável fim. Hoje em dia, sabemos muito bem que o transtorno dissociativo de identidade teria suas origens em experiências traumáticas – em sua maioria, abuso infantil – e não em uma poção que seria capaz de expor o pior de uma pessoa. Felizmente, com uma boa – e longa – terapia, as personalidades podem se reduzir a uma só.
Sobre a famosa poção de Dr. Jekyll, hoje conhecemos algumas substâncias que poderiam extrair “monstros” do interior de uma pessoa – o álcool, sem ir muito longe – e também que existem drogas que podem produzir estados de dissociação, embora esses em geral venham acompanhados de outros sintomas que não chegam nem perto do comportamento de Mr. Hyde. Algumas dessas drogas são a fenciclidina (PCP ou “pó de anjo”) e a quetamina, ambas utilizadas como anestésicos, mas com grandes poderes alucinógenos. Elas podem produzir em quem as consome distorções visuais e auditivas e uma sensação de flutuação e da tão mencionada dissociação (sentir-se descolado da realidade). O uso desse tipo de fármacos dissociativos também pode causar ansiedade, perda de memória (nada estranho para Jekyll e Hyde) e deterioração da função motora, inclusive tremores corporais e dormência (algo de que Mr. Hyde provavelmente nunca sofreu ao cometer suas atrocidades).
O cinema se ocupou muito dessa desordem, embora nem sempre a tenha tratado com o respeito devido a uma doença mental, associando-o a atos criminais de que podiam ser capazer algumas das personalidades dos ou das protagonistas, como no caso de Clube da Luta (1999), Identidade (2003) e Fragmentado (2016). Outras vezes, as diferentes personalidades resultaram em comédias, como o inesquecível O professor aloprado (1963), protagonizado por Jerry Lewis (e Eddie Murphy, em sua versão de 1996), a série United States of Tara (2009-2011) e o filme Eu, eu mesmo & Irene (2000). Em um tom mais próximo à realidade (talvez por serem baseados em histórias reais), podemos encontrar As três faces de Eva (1957, baseado em livro homônimo escrito por três psiquiatras que colaboraram no roteiro), Sybil (2007, também baseada em um livro) e Frankie & Alice (2010). As protagonistas reais dessas histórias tinham respectivamente 22 (e não apenas três), 16 e três personalidades diferentes. Aparentemente, para o Dr. Jekyll, apenas duas bastavam (e a segunda já trouxe muitos problemas).
Estamos em uma época em que a sociedade mostrou sua melhor e sua pior face. Algumas vezes se parece com Dr. Jekyll, em outras se comporta como Mr. Hyde. Sem julgar qual é o “lado bom” e o “lado mau” dessa sociedade com duas personalidades, temos por exemplo os que acreditam que a pandemia é uma mentira para controlar a sociedade, enquanto por outro lado há muitos que compreendem que há um vírus perigoso nos perseguindo a cada vez que saímos de casa. Também há os que se negam a se proteger (e sobretudo a proteger os demais) com o uso de uma simples máscara e, por outro lado, aqueles que a usam corretamente o tempo todo, ainda que achem incômodo. Sem falar nos antivacinas (que não são de agora, existem há mais de um século), que enquanto esbravejam contra a única coisa que pode tirá-los dessa situação – argumentando a edição intencional de nosso DNA, a incorporação de chips para nos controlar e outras histórias fantásticas dignas de Asimov ou Bradbury –, confrontam um grupo ainda maior (por sorte) que está disposto a confiar na ciência, sem se importar com os tempos acelerados na fabricação das vacinas (tempos condizentes com o grande avanço que teve a ciência nas últimas décadas e com o grande esforço internacional para solucionar a pandemia) ou a cor da bandeira do criador da vacina.
Não é necessário determinar quem são os Jekyll e Hyde nessa história que estamos percorrendo, o mais importante é compreender que essa luta sem descanso de ambas as personalidades da sociedade poderia nos levar ao mesmo fim do romance de Stevenson, em que todos perdemos e ninguém ganha. Portanto pensem bem de que lado vão ficar nos tempos que estão vindo, nossa vida depende disso.
Ciência Monstruosa é um projeto do pesquisador e comunicador científico argentino Alberto Díaz Añel, que o Ciência na rua está adaptando para o português. Confira abaixo os textos já publicados.
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Vampiros e doenças do sangue (publicado em 10 de julho de 2020)
Os lobisomens e o crescimento dos pelos (publicado em 17 de julho de 2020)
Podemos matar o que não está vivo? (publicado em 24 de julho de 2020)
Como o corpo se defende? (publicado em 31 de julho de 2020)
O essencial é invisível aos olhos (publicado em 7 de agosto de 2020)
À flor da pele (publicado em 14 de agosto de 2020)
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