jornalismo, ciência, juventude e humor
Errar é humano – e faz parte da ciência
Filosofia da ciência

por | 3 set 2020

Ilustrações: Bennê Oliveira

Revista científica holandesa inova ao publicar apenas artigos sobre erros em pesquisas

Cientista de jaleco e óculos de proteção, coberto por um tanto de fuligem, faz anotações junto a bancada de laboratório, sobre a qual um balão volumétrico parcialmente destruído por explosão emite fumaça

“Tentativa e Erro é o processo elementar na Ciência por meio do qual se adquire conhecimento”. É com essa declaração que o Journal of Trial and Error – Revista da Tentativa e Erro, em tradução livre – abre seu manifesto, que em seguida diferencia os erros metodológicos dos conceituais e ressalta a importância deles para o progresso científico.

Com sede na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos (mas funcionando em home office durante a pandemia de covid-19), o periódico científico tem a inovadora proposta de publicar apenas artigos que descrevam “resultados negativos”. Grande parte da inspiração para criar a revista veio dos princípios fundadores do movimento Ciência Aberta, contou Maura Burke, diretora de sustentabilidade do Journal of Trial and Error (ou apenas JOTE), em entrevista por e-mail ao Ciência na rua.

O movimento Ciência Aberta propõe uma prática científica transparente e colaborativa, em que dados e anotações sejam acessíveis na internet tanto para outros pesquisadores quanto para interessados não especialistas, envolvendo ainda a participação de não cientistas nas atividades de pesquisa. “Nos inspiramos muito no compromisso do movimento com a transparência e a acessibilidade, mas pensamos que essas ideias poderiam ser ampliadas. Ficou claro para nós que seria impossível ser transparente sobre o processo de pesquisa se as revistas não quisessem publicar exemplos de tentativa e erro, abundantes na pesquisa científica”, contou Burke.

“Nós”, no caso, é o grupo de 12 jovens pesquisadores, filósofos da ciência e historiadores da ciência que compõem a equipe da revista. Jovens mesmo. Os integrantes em geral não têm ainda 30 anos, e a mais jovem tem apenas 21. São de universidades em Marselha (França), Gante (Bélgica) e Montreal (Canadá), afora Utrecht, claro. E vêm de diferentes áreas: história, filosofia, psicologia, neurociência, física, inteligência artificial e biologia molecular, caso de Burke, que hoje se considera filósofa.

A ideia nasceu em 2018. Em artigo publicado no site Shells and Pebbles, Martijn van der Meer, diretor de projeto do JOTE, conta que ele e mais alguns colegas, recém ingressados no mestrado em História e Filosofia da Ciência da Universidade de Utrecht, foram a um colóquio sobre CIência Aberta no hospital da universidade. Já antes do colóquio, se sentiam incomodados com a distância entre as reflexões aprendidas no âmbito da história e da filosofia da ciência e as ações práticas – ou sua ausência – na relação estabelecida entre esses profissionais e os cientistas.

“Nos ensinavam que a ciência pura, baseada no método científico, não existe: ‘fatos’ e ‘objetividade’ são noções problemáticas e historicamente contingentes. Afinal o conhecimento científico pode ser melhor entendido como construído em contextos sociais, políticos, culturais e institucionais. Essa mensagem nos inspirava e intrigava, mas o construtivismo parecia (demasiadamente) destrutivo em sua abordagem relativista implícita e às vezes explícita da prática científica atual. Tínhamos a impressão de que historiadores e filósofos da ciência não transformavam sua mensagem mais importante – a de que ciência é feita por humanos – em um diálogo construtivo com os próprios cientistas.” Por ingenuidade ou otimismo, diz ele, queriam aprender como ajudar a ciência, em vez de apenas criticá-la.

E prossegue: “O colóquio nos mostrou que ‘Ciência Aberta’ é mais do que apenas acesso aberto: visa a diminuir a pressão no trabalho, reinventar critérios de avaliação e reflete criticamente sobre modelos de negócio de disseminação do conhecimento. Além disso, a ‘Ciência Aberta’ parecia um chamado para uma ciência mais honesta, transparente e altruística”. O movimento aborda duas questões que pareciam importantes para o grupo, uma é a “crise da replicação” – resultados científicos são validados pela replicabilidade de experimentos, mas há experimentos não replicáveis –, outro é o “viés da publicação positiva”, uma tendência a se publicar apenas resultados de pesquisas que deram certo, o que leva os cientistas, quando uma pesquisa falha, a não publicarem ou a criarem hipóteses nem sempre precisas ou adequadas apenas para justificar a pesquisa e a publicação.

“Tendo experiência combinada em química, neurociência, psicologia e história, nos surpreendemos pelo quanto esses problemas pareciam ser causados por uma auto-imagem opressiva de uma ciência voltada para o sucesso, para a solução de problemas e inovadora ao extremo, que nega a existência de tentativa e erro. Estruturas da carreira acadêmica, ‘sucesso’ e comunicação de ciência são baseadas e construídas sobre essa imagem bastante poderosa. Ficou aparente que preocupações prementes como o viés de publicação e a crise da replicação são causadas pela negação de fatores sociais, culturais, políticos e institucionais e de questões filosóficas investigadas por historiadores e filósofos da ciência”, diz o artigo de van der Meer.

Pesquisadora de jaleco, cabelos lisos na altura do ombro, faz anotações em prancheta enquanto observa um rato de laboratório enorme, cujo tamanho já força as grades da gaiola onde está.

Tomando uma cerveja depois do colóquio, o grupo pensou primeiro em criar o Journal of Failed Experiments – Revista de Experimentos Fracassados – e apresentou a ideia em outro colóquio. A reação de outros historiadores e filósofos da ciência não foi muito entusiasmada. Entre cientistas, porém, houve bastante interesse, todos tinham experiências frustrantes e acreditavam que uma revista desse tipo poderia gerar resultados construtivos. Algumas críticas ajudaram a reformular o projeto, inclusive o nome, mudando o foco do fracasso para a tentativa e erro. Assim, em dezembro de 2018, a revista foi oficialmente lançada.

A equipe do JOTE, diz Burke, identifica a atitude que relaciona o sucesso científico aos grandes avanços como algo surgido no século XX, após Einstein, e que contaminou o ambiente de pesquisa desde então. “Muitas de nossas descobertas mais importantes, como a penicilina, se deram no curso de ‘pesquisas normais’ ou pesquisas exploratórias, que não almejavam identificar ‘A Próxima Grande Coisa’”. O foco em publicação – pesquisadores são avaliados, a grosso modo, pela quantidade de publicações e citações em revistas científicas, que são classificadas de acordo com o prestígio acumulado – também é recente, em termos históricos. “Esperamos que, dando espaço para os cientistas comunicarem todos os seus resultados honestamente, possamos começar a desfazer o dano causado por essa máquina competitiva voltada para o sucesso.

“Há muitas dificuldades e fracassos em meio à pesquisa que nunca chegam à publicação, mesmo quando você obtém um resultado ‘positivo’”, conta Burke. “Então, um monte de informação às vezes considerada conhecimento tácito fica presa dentro de um grupo de pesquisa, quando na verdade essa informação é valiosa para toda a comunidade. Pensamos que toda a empreitada científica se beneficiaria de ter exemplos individuais de tentativa e erro disponíveis para todos os pesquisadores. Além disso, achamos que não era suficiente uma revista que publicasse resultados positivos E negativos, modelo adotado por algumas revistas nos últimos anos. Queremos que os pesquisadores se sintam confortáveis compartilhando seus fracassos e resultados negativos, pois ainda são resultados e são valiosos, e queremos que outros pesquisadores tenham acesso a essa informação para evitar que cometam os mesmos erros”.

A reação da comunidade científica tem sido muito positiva, de acordo com Burke. “Claro que há pessoas críticas à revista, e encorajamos qualquer forma de diálogo construtivo sobre o alcance ou as metas do projeto. Mas mesmo essa reação tem sido positiva, com muita gente dizendo coisas como ‘Isso é realmente necessário!’ ou ‘Queria que existisse quando estava começando minha carreira’. É difícil convencê-las a dar o passo seguinte e compartilhar suas experiências de tentativa e erro, acho que isso revela o quão arraigado está o foco em resultados positivos e inovadores. Então, embora nossa revista se destine a pesquisadores em início de carreira, encorajamos que aqueles já estabelecidos, com segurança na carreira, contribuam para a revista. Queremos redesenhar toda a paisagem de publicação e precisamos de toda ajuda possível de quem compartilhe nossos ideais”.

Em uma sala com uma lousa com anotações ao fundo, dois cientistas homens com ternos dos anos 50 apontam sorridentes para um modelo de DNA com pares de bases iguais (AA, TT, CC, GG), uma terceira cientista, de saia verde e blusa marrom, observa com a mão no queixo e um ponto de interrogação pairando sobre sua cabeça.

Por enquanto, a revista publicou, em julho, um preprint – artigo científico ainda não revisado por pares – sobre o efeito do álcool em relação a pensamentos sexuais agressivos. E há uma fila para aprovação. Já foram publicados também alguns artigos editoriais.

Se a intenção original da revista é ajudar jovens pesquisadores, sua abordagem pode também ser benéfica para a imagem da ciência junto ao público geral, acredita Burke. “Acho que muito da desconfiança sendo construída ao redor da empreitada científica pode ser relacionada a esse impulso da imagem da ciência como inabalável, porque quando inconsistências e erros inevitavelmente emergem, o público sente que mentiram para ele. Posso, de certa forma, compreender indivíduos que tendem a acreditar em teorias da conspiração sobre a imagem da ciência, porque é verdade que a imagem disponível para o público é diluída, demasiadamente simplificada e não inclui conversas sobre sua natureza humana. Entendo a empreitada científica como uma atividade humana, incrivelmente efetiva e comprometida com representar as coisas o mais fielmente possível, mas ainda assim uma atividade humana, portanto vulnerável a erros humanos”.

“Por muito tempo, seguimos um caminho que assume que, se apresentarmos as práticas e resultados científicos como objetivos e imutáveis, as pessoas vão simplesmente aceitá-las. Talvez por um tempo tenha sido verdade, mas o que o público quer agora é uma ideia completa e transparente do que estamos fazendo como cientistas, e relatar tentativas e erros científicos é um passo importante nessa direção”.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade