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A marca da maldade

Webinar do Ciência na Rua cotejou o conceito filosófico do mal com a política e a história do Brasil

Bolsonaro carrega menino fantasiado de PM com um fuzil de brinquedo, em evento em Belo Horizonte (foto: Isac Nóbrega / PR)

O conceito filosófico do mal e sua aplicação na situação social, política e econômica do Brasil atual foi o tema principal do terceiro episódio da série de webinars “Novos estudos para decifrar o Brasil contemporâneo”, do Instituto Ciência na Rua, realizado, no último dia 7, com o tema “Marcas da maldade na política”.

O encontro virtual trouxe especialistas para tratar do assunto de uma maneira mais acessível ao público. Os palestrantes foram os professores de filosofia João Carlos Salles, ex-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Tessa Lacerda, da Universidade de São Paulo (USP). A diretora do Ciência na Rua, Mariluce Moura, conduziu o debate com Tomás Chiaverini, criador do podcast Rádio Escafandro e ex-editor do programa Roda Viva, da TV Cultura (SP).

Tessa Lacerda começou falando sobre a definição filosófica do mal partindo de Santo Agostinho, que tratou do tema na virada do século 5 d.C. Segundo ela, o filósofo definia o mal como uma ausência de bem, algo sem essência, como a sombra é para a luz. A partir daí, a professora traz a discussão para seu principal objeto de estudo, o alemão Gottfried Leibniz.

“No século 17, Leibniz parte dessa ideia e faz uma tematização profunda na única obra que deixou em vida, os Ensaios de Teodicéia. Ele vai definir o mal em três tipos. O primeiro é o mal metafísico, inevitável, que nos caracteriza como seres finitos, como pensado por Santo Agostinho. Deste, decorrem outros dois males, que não são inevitáveis: o mal moral, que é o pecado, a má ação, e o mal físico que decorre dessa má ação, é efeito desse mal, em quem dele se arrepende ou em quem vive o efeito dele”, explicou a professora.

Em seguida, ela passou para o século 20 e discutiu o conceito da banalização do mal, proposto pela alemã Hannah Arendt após cobrir o julgamento do funcionário nazista Adolf Eichmann, responsável pela deportação de inúmeros judeus durante o Holocausto, para a revista New Yorker. Em cartas trocadas com seu orientador, Arendt se questiona se há um caráter monstruoso ou demoníaco nos crimes da Segunda Guerra.

“A banalidade do mal é um conceito fundamental para a modernidade”, afirmou Tessa. “Em suas cartas, ela vai dizer que a banalidade do mal é a incapacidade de imaginar a dor do outro, de empatia. é a incapacidade de imaginar aquilo que os outros passam. Muito do que aconteceu na ditadura brasileira está ligado a essa noção”.

Ao chegar ao caso brasileiro atual, a professora também acrescentou outro conceito, o do ódio. Citando a filósofa Denise Ferreira da Silva, ela falou sobre uma “indiferença ética da sociedade brasileira diante da violência que o Estado pratica contra determinados grupos da população”. “E a gente pode pensar essa indiferença ética a partir do abjeto e da ideia e corpos abjetos, corpos que são matáveis, que a gente tem indiferença diante da morte”, acrescentou..

Segundo ela, o processo de desumanização do outro, que faz parte da formação da sociedade brasileira, vem do capitalismo e tem na escravidão uma peça fundamental, já que cria um racismo profundo no país que nunca é olhado de frente ou combatido.

“Temos uma sociedade autoritária e violenta. Marilena Chauí diz que a violência é o ar que respiramos aqui. Isso vem em grande medida de ser uma sociedade escravagista que não reconhece isso como um crime contra a humanidade. Junta-se a isso o ideário da ditadura civil-militar. O governo Bolsonaro vai justamente trazer essa ideia de que há um inimigo interno em uma sociedade que já é violenta. O cidadão brasileiro não é visto como um cidadão, mas como um inimigo interno e isso vai ser dirigido à população preta e pobre”, ressaltou a professora.

O ex-reitor da UFBA João Carlos Salles falou em seguida, lembrando um trecho do mais famoso texto de Goethe, no qual Mefistófeles explica suas razões para Fausto. “É como se o mal sempre precisasse se justificar”, afirmou ele. Segundo o professor, a noção do mal não costumava fazer parte de suas reflexões, mas tudo mudou em um dia 17 de abril. Ele contou que uma tragédia familiar o leva a, todos os anos, passar a data reflexivo, e que tudo mudou em 2016, enquanto ele assistia à votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados.

“Foi o dia que o Brasil parou pra ver o espetáculo mais dantesco, que foi nossos parlamentares aprovando o impeachment. Não discutindo o impeachment, mas aquele Congresso, onde as pessoas fizeram declarações a favor de torturadores, em que mencionaram as razões mais comezinhas, todas as razões que anulavam a noção de um Congresso. Aquilo me deixou impactado e foi quando voltei a escrever sobre o mal, e escrevo exatamente reagindo àquilo que eu evitava”, relatou.

Até então, segundo ele, parecia difícil escrever sobre um tema que poderia ser tão amplo a ponto de não poder ser adequadamente explicado ou conceituado. O mal, diz Salles, está nas sombras e pode estar em qualquer um, desde um parente, um vizinho, um colega de trabalho, até um líder com possíveis inclinações fascistas. Tudo isso o motivou a entrar de vez no assunto.

“Foi onde se quebrou aquele conjunto de condições de uma sociabilidade possível. Tentando despersonificar o que vi, o mal não está entre os indivíduos terrivelmente absurdos e caricaturais que estavam ali, mas nos procedimentos que estavam alimentando esse esvaziamento do lugar comum. Percebi que, aplicado àquele momento, o mal lembrava uma de suas manifestações, a tirania, aquela forma de dominação que procura manter humilhados os súditos, os mantém em perpétua desconfiança mútua e sobretudo que procura privar os cidadãos do poder para ação política”, disse.

A participação do jornalista Tomás Chiaverini começou em seguida. Responsável pelo podcast Rádio Escafandro, ele falou de um episódio sobre a ligação entre o governo Bolsonaro e o conceito da maldade, que inspirou o webinar. Na ocasião, ele contou com a participação de Tessa, de Frei Betto, do psiquiatra Joel Birman e do ex-líder do PCC Marcelo Loreno, falando como alguém que cometeu assassinatos na vida real.

Comentando sobre a banalidade do mal, Chiaverini relatou um episódio contado por Frei Betto no podcast, sobre um religioso que foi preso com ele, o então frei Marcelo Carvalheira. Após ficar preso durante semanas em São Paulo, ficou evidente que não havia mais motivos para ele estar ali e então os responsáveis pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) decidiram que iriam libertá-lo, mas ele deveria ser levado até Porto Alegre, onde havia sido detido. Para acompanhar Carvalheira na viagem, foi escolhido um torturador conhecido como “Pudim”, o delegado Raul Ferreira, um dos mais sanguinários do Dops. No caminho, ele pede ao motorista que pare em sua casa para pegar roupas e se despedir da família. Ao chegar, ele convida o frei, que ele mesmo havia torturado, para entrar em sua casa, sentar no sofá e pegar um pedaço de bolo antes da viagem.

“O Frei Betto fala da ideologia, que é como se fosse óculos que a gente coloca, mas não vê. Na visão dele, o torturador não vê a maldade que está cometendo. No bolsonarismo vemos isso com muita clareza. essa narrativa que tem o mal justificado, pessoas que cometem atrocidades, mas que não se veem cometendo essas atrocidades. A pergunta é como a filosofia lida com a questão da narrativa, como a gente consegue determinar o que é mal e o que não é?”, questiona Chiaverini.

Para Tessa, o episódio é uma clara demonstração do conceito da banalidade do mal proposto por Hannah Arendt, a ideia de que não há nada de demoníaco nas pessoas que cometem esses atos que ocorrem no cotidiano. E usa um conceito que tem sido cada vez mais empregado, para analisar a aparente contradição do torturador que oferece um bolo.

“Queria pensar isso a partir de uma palavra, a narrativa, uma narrativa histórica pra gente pensar o Brasil. A história é uma narrativa negociada, a primeira pessoa que falou isso foi a feminista indiana Gayatri Spivak. A Marilena Chaui também fala disso no caso do Brasil, que é a história da classe dominante como se fosse uma linha evolutiva em que as revoltas populares são apagadas enquanto revoltas no texto contra o mito cordial”, acrescentou.

Citando Marilena, Tessa prossegue: “O mito da não violência brasileira foi construído graças a dispositivos ideológicos precisos. A história oficial do país é construída de modo linear, contínuo e progressivo, suas datas e seus feitos coincidindo com a imagem que a classe dominante tem de si mesma, então todas as revoltas populares, Palmares, Balaiada, Canudos, etc, aparecem como se fossem momentos de irracionalidade e imaturidade em um povo inculto. História do vencedor e de sua memória, silêncio e destruição dos vencidos, eis uma violência jamais contestada, jamais mencionada”.

E explica: “Ela está se referindo ao Walter Benjamin, que a gente não tem no Brasil a história dos vencidos. Tem uma narrativa histórica que é a narrativa da classe dominante, então por que a gente não vê, por que pode se juntar essa figura, o bolsonarista, sem ver que está praticando o mal? Porque ele está muito de acordo com essa narrativa. E a narrativa neste país tem a ver com o assassinato sistemático de uma boa parte da sociedade brasileira. O racismo não é visto como algo mau, é o natural. A narrativa histórica de uma classe dominante em que a população preta e pobre, favelada e periférica é matável”, completou.

Segundo Tessa, é necessário ter uma visão crítica, “para que as pessoas passem a questionar minimamente a ideologia a que elas estão servindo, das quais elas estão sendo instrumentos. Eu não acho que elas são umas coitadas que estão lá e não sabem de nada o que estão fazendo, não é isso. Mas existe uma narrativa que justifica esse comportamento. E é uma narrativa que venceu até agora, eles estão muito bem amparados”.

Para falar sobre a justificação, um dos principais componentes da maldade, Salles citou mais um texto, que ele caracteriza como um dos “mais cruéis” do escritor uruguaio Horácio Quiroga, chamado “A Galinha Degolada”, onde quatro irmãos idiotas praticam um ato inominável, mas que para eles parece absolutamente normal, após assistirem uma galinha sendo degolada para servir de alimento.

“Eles estão fazendo algo natural pra eles, a força desse dar morrer, desse darwinismo social que nós temos, faz com que pessoas formadas na universidade possam defender absurdos obscurantistas, negacionistas com uma naturalidade imensa e até mesmo com um sabor de cientificidade; É como se fosse natural que tantas pessoas estejam excluídas, tantas pessoas possam ser levadas à morte e imaginar que isso seja fraqueza dessas pessoas”, analisou.

A capacidade de compartimentalizar, segundo Salles, é o que leva os indivíduos a se tornarem prisioneiros nas narrativas da opressão do autoritarismo. “É o que faz com que esse torturador ache que a tortura faz parte do trabalho dele, e que ele tem a obrigação em casa de oferecer um bolo. É um procedimento tão automatizado quanto é automatizada a tortura que ele fará ainda, cumprindo o papel para o qual ele foi treinado, Ele ainda pode se considerar um bom pai de família, uma pessoa generosa, que vai à igreja, e constrói tudo isso como mais um complemento de justificação para esse ato indescritível”.

A conversa prosseguiu com uma discussão sobre a ligação entre a Lei da Anistia de 1979, que eximiu, sem julgamentos, os militares dos crimes cometidos na ditadura e a narrativa histórica dominante no Brasil, sobre pacificação, Comissão da Verdade, movimentos de resistência, novas narrativas históricas, a definição sobre o mal (ou a falta dela) na obra de Espinoza, o ódio na cultura brasileira e como furar a “bolha” acadêmica para popularizar esses tópicos. O webinar pode ser visto na íntegra no canal do Ciência na Rua, ou no player abaixo.

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