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Um mergulho filosófico para entender o embate presente entre modelos de sociabilidade

Mariluce Moura, Edgardigital
imagem da home: autor desconhecido, foto de Janmad – CC BY 3.0

 

Blaise Pascal (1623-1672) – autor desconhecido

Blaise Pascal (1623-1662) e sua última invenção foram o ponto de partida da aula magna de João Carlos Salles na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na segunda-feira, 15 de abril. O rico percurso a que essa referência lhe deu acesso foi feito com olhar filosófico – desamarrado das urgências cotidianas, mas nunca dos elos que possibilita com o presente, mais voltado a inspirar do que a ensinar – lançado sobre dois modelos longevos de sociabilidade em forte oposição. Ou melhor, dois modelos hoje em surdo embate, ainda que disfarçado sob véus e máscaras: o empirista e o idealista.

Percorrida a trilha que permitiu aos ouvintes perceber, a cada passo, que ganchos a narrativa estava a estabelecer com este nosso tempo em que a filosofia é duramente atingida, “vez que, em seu nome, aparecem agora sofistas os mais danosos e obscurantistas”, o lugar de chegada pareceu uma clareira, na qual o professor pode, de certa forma, convidar os alunos “a inventar meios coletivos de solidariedade” como condição necessária de luta e resistência.

Aliás, João Carlos Salles expressara logo no começo da aula sua convicção de “estarmos todos agora operando, em cada atividade de ensino, pesquisa e extensão, em regime de resistência, tanto em defesa da autonomia da universidade quanto do estado democrático de direito”. Vale notar, contudo, o quanto a  noção de resistência vai se adensando no decorrer da jornada, embebida da discussão filosófica sobre modelos de sociabilidade e, já no final, sobre jogos de linguagem. A essa altura ele deixara os outros companheiros de caminhada e volta a uma breve referência a Pascal para descortinar exigências de construção de futuros possíveis.

“Voltamos a Pascal a cada tempo, agora, porém, sem qualquer mediação que não aquela posta por nossos próprios atos. Retornamos a uma dimensão em que nosso desamparo nos leva a uma aposta única, pela qual devemos reparar a cada dia o tecido da sociabilidade, fazendo valer palavras e sentidos, defendendo valores que não podem ser trocados por posições quaisquer, e lembrando nossa obrigação comum, como a de inventar meios coletivos de solidariedade, de autorização recíproca de nossas falas, como condição necessária para nossa luta e nossa resistência”.

Das abstrações ao espaço coletivo

Mas afinal, qual foi a última invenção do grande matemático, físico, filósofo e teólogo de Clermont-Ferrand, homem que frequentava com igual desenvoltura as mais finas abstrações do espírito e os desafios práticos de seu tempo? Um criador de teoremas matemáticos e tratados filosóficos, que, aos 19 anos, inventou a primeira máquina de calcular?

Rede do sistema de transporte pensado por Pascal

Pois bem, poucos meses antes de morrer, aos 39 anos, Pascal pôs a funcionar em Paris, em março de 1662, simultaneamente, sua carruagem para oito passageiros, conhecida como a carruagem de cinco sols (o preço da passagem) e o primeiro sistema de transporte coletivo urbano do mundo. Um tremendo sucesso!

Segundo Salles, essa “é certamente uma obra de gênio (…) cujo projeto inicial consistia em três linhas com trajetos, horários e preços fixos, superpondo-se sua trama, seu desenho, aos ritmos aleatórios dos deslocamentos individuais, de sorte que tempo e espaço coletivos passavam a desenhar e a condicionar uma experiência organizada da mobilidade urbana”. Importante a essa altura é destacar que “o olhar ordena-se pela subordinação do interno ao externo, como ocorria com a máquina de calcular, assim como a intuição ou desejos singulares passam a ter uma medida coletiva”.

Ele flagra na última invenção de Pascal “o mesmo gesto” da primeira. “O indivíduo se desloca, operações íntimas aparentemente inefáveis mostram-se no mundo, sob a marca da certeza ou da previsibilidade. O cálculo se faz, não no seu íntimo (incerto e inescrutável), mas no espaço de funcionamento da máquina, em conformidade com um mecanismo visível”. Assim como “também o tempo do deslocamento pela malha urbana deixa de ser o do fôlego individual, mas passa a ser o de um outro sujeito, que se desloca a olhos vistos, não sendo todavia ninguém”.

Mas o que sobremodo importa nessa reconstituição feita para o tempo curto de uma aula é mostrar a subversão de paradigma e valores que Pascal operou com sua invenção, a conversão do olhar, a “violência conceitual” que o passar do tempo vai tornando imperceptível.

“Assim, antes de Napoleão desfilar aos olhos de Hegel como o espírito absoluto a cavalo, Pascal fez desfilar o sujeito coletivo em suas carruagens”, disse o professor, a essa altura começando a encontrar os interlocutores escolhidos para seu trajeto até a aposta inelutável num reparo cotidiano do tecido da sociabilidade. “É como se Pascal, com seu brilho, cifrasse um brusco deslocamento da subjetividade, como o flagrado por Michelet, quase dois séculos depois, em seu belo livro O Povo, ao descrever a diferença entre o ritmo de trabalho do artesão e o do operário”, ele compara. O que Salles ressalta dessa obra de 1846 do famoso historiador francês Jules Michelet (1798-1874), é, portanto, “esse corte na subjetividade, segundo seu modo de determinação no trabalho, de modo que o ritmo próprio do artesão, sujeito singular, se compara ao ritmo do operário, cujo coração deixa de ser o seu próprio para ser o das máquinas, nos infernos de tédio das grandes oficinas de fiação e tecelagem”.

O professor prossegue lembrando que a modernidade traz finalmente à cena o sujeito como construção teórica e afirmação prática, após um tempo de constituição, em que, por exemplo, René Descartes (1596-1650) delineara com seu famoso “Penso, logo existo” uma subjetividade extrema, independente do mundo e mesmo do próprio corpo do sujeito. Ao mesmo tempo, uma outra face, afirmativa da centralidade do corpo e da necessidade imperiosa de regras para seu comportamento, também desabrochava nessa construção moderna da identidade do sujeito. Ela emerge em manuais de civilidade, mais que em obras de filosofia, escritos às vezes por grandes pensadores, a exemplo de Erasmo de Rotterdan (1466-1536) com o seu A civilidade pueril, “muito imitado e difundido”.

Essa outra face, destacou João Carlos Salles, é “radicalmente marcada pela presença de um outro que jamais pode ser ignorado; temos o contexto dos costumes de um país, aos quais devemos nos acomodar, diz Erasmo, como polvos o fazem à diversa rugosidade dos espaços. Erasmo é então exaustivo em seu adestramento (…) Estabelece pois uma métrica para o verdadeiro decoro, de modo que, subordinados a ela, não satisfaçamos a natureza (no caso, individual), sem estarmos em conformidade com a razão (que é severamente coletiva)”.

Modelo empirista e mercado

As referências a Pascal, Michelet, Descartes e Erasmo encaminharam a aula magna ao principal interesse do professor, qual seja, “explicitar a distinção conceitual sinalizada na surpreendente percepção de Pascal”, para então, por analogia, “expor o desafio teórico presente na construção prática da subjetividade”.

É em relação a isso que se confrontam “modelos de descrição da experiência humana de sociabilidade”, assim como “as implicações relativas aos métodos de interpretação dos laços que nos unem aos outros indivíduos e de como alguma intersubjetividade nos constitui ou deveria constituir-nos como sujeitos em sociedade”.

Nesse caminho é que Salles aborda em seguida os modelos empirista e idealista que, “de resto, não são imiscíveis”. Em seu empenho para escapar ao risco das simplificações pobres no espaço curto de uma aula, alerta logo que “todo grande filósofo resiste à taxonomia. Ele mal se acomoda às classificações com que o ciframos e procuramos domar. Sendo profundo, não aceita o raso das tipificações e dificilmente é apenas empirista ou racionalista; dificilmente é materialista sem levar em conta o idealismo, ou aceita determinismos sem neles plantar a mais próspera semente da liberdade”. Posto isso, oferece um parágrafo de David Hume (1711-1776) como breve e esquemática descrição empirista da sociabilidade, aqui reproduzido com corte:

“A dependência mútua entre os homens é tão grande em todas as sociedades — afirma Hume — que dificilmente haverá uma ação humana inteiramente completa em si mesma, ou realizada sem alguma referência às ações de outros que são requeridas para fazê-la corresponder plenamente à intenção do agente. O mais pobre artesão, sozinho em sua labuta, espera pelo menos a proteção do magistrado que lhe assegura o gozo dos frutos de seu trabalho. Ele também espera que, ao levar seus produtos ao mercado e oferecê-los a um preço razoável, encontrará compradores e será capaz de conseguir, com o dinheiro obtido, que outros o supram das mercadorias que lhe são necessárias para sua sobrevivência.(…) Em todas essas conclusões, do mesmo modo que em seus raciocínios sobre objetos externos, eles extraem seus padrões da experiência passada, e creem firmemente que os homens, assim como todos os elementos, devem continuar, em suas operações, a portar-se como sempre se observou. O proprietário de uma manufatura conta com o trabalho de seus empregados para a execução de qualquer tarefa tanto quanto conta com as ferramentas que emprega, e ficaria igualmente surpreso se suas expectativas se frustrassem seja num caso, seja no outro. Em suma, essa inferência e raciocínio experimentais acerca das ações de outros impregna de tal forma a vida humana que ninguém, enquanto desperto, deixa de realizá-los por um momento sequer.”

O professor destaca que todos os eventos estão aí interconectados e, no entanto, todos mantêm relações externas entre si. “Essa seria a marca trágica herdada do empirismo, capaz de ameaçar-nos a subjetividade.”  Há aí a suposição de uma separação intransponível, uma impossibilidade de comunicação, “em virtude da qual nada se compreende, quando tudo porém se explica.”

Dirá então que em tal modelo  “não temos compromissos, mas sim previsibilidade. Contamos e cremos não por estarmos unidos em uma comunidade, mas sim por estarmos todos conectados em uma harmonia e uma confiança recíprocas, mas através de uma mão invisível, a orientar-nos para um mercado. Essa é a sombra que a descrição de Hume projeta, a mão invisível do mercado”.

Já aí, Salles apresenta o encontro do modelo empirista com sua ciência, a economia política, o encontro fecundo de Hume com Adam Smith (1723-1790). E adiante, sobre isso, citará o próprio Smith no famoso A riqueza das nações: “Numa sociedade civilizada, o homem a todo momento necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões, e sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a amizade de algumas pessoas.”.

João Carlos Salles

Modelo idealista e espaço público

Ao abordar o modelo idealista de sociabilidade, João Carlos Salles lembrou à plateia o percurso que estava cumprindo. “Estamos delineando, com alguma cautela, dois modelos distintos e quase opostos de sociabilidade. Afinal, ao fim e ao cabo, talvez confrontemos duas caricaturas, ambas falsas, mas também, queremos crer, plenas de sentido.”

Émile Durkheim (1858-1917) será seu primeiro companheiro de jornada nesse trecho. Lado a lado com ele que dirá que, “sem que anule o mercado, a intersubjetividade pode não ser a confluência de trabalho sem interação, pode interferir no próprio mercado, uma vez que, por exemplo, o valor da força de trabalho também depende da imagem coletiva do que compreendemos por dignidade da pessoa humana”. E explicará: “Ou seja, a intersubjetividade pode expressar uma divisão de forças produtivas sem dispensar o horizonte de um espaço público essencialmente normativo”. Logo adiante acrescentará que “o sujeito, então, não apenas se explica em função de outros, mas os compreende dentro de si e neles ou com eles se realiza. O sujeito, neste outro modelo, não é um vazio que se torna argumento de uma função complexa, mas função ele mesmo, a também medir os elementos jungidos por predicados ou relações”.

Salles extrai daí, primeiro, uma poderosa consequência direta no âmbito da construção do conhecimento, ou seja, que ciências da natureza e ciências do espírito desse momento em diante terão que se separar, porque “o reconhecimento de leis causais não pode dar conta da estrutura da experiência humana, tal como disposta em um horizonte cultural específico e em uma história”. E antecipa o que longamente vai se instaurar como embate efetivo no campo da política, entre os dois modelos de sociabilidade. “Se o modelo de Hume projeta a vida do mercado, o modelo idealista desenha a dimensão significativa do espaço público, sempre determinado cultural e historicamente.”

Ele encontrará nessa parte do caminho também um dos grandes nomes do idealismo moderno, Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e o pensador frankfurtiano Jürgen Habermas (1929), de quem usará um comentário sobre Fichte, não sem antes observar, com fina ironia, que o faz “mais para registrar a celebração de seus 90 anos em junho próximo e aproveitando para recorrer, em gesto de desobediência civil, à refinada expressão teórica do que alguns chamariam de ‘marxismo cultural’.”

Dirá após que, “se  um modelo de sociabilidade mantém externas as relações entre indivíduos que aproxima, há outros, porém. “No caso, o modelo descrito acima [com o apoio de Habermas], traindo minhas preferências, apresenta os indivíduos constituídos em uma relação mais que especular; eles dependem uns dos outros para se definirem, para traçarem papéis, para encontrarem sua identidade. Não o seriam sem se encontrarem, sem servirem uns aos outros reciprocamente”.

Consequências no campo da linguagem

Na conclusão de sua aula, João Carlos Salles abordou algumas consequências da distinção entre os dois modelos. Observou que seria artificial a descrição que apenas enfatizasse o confronto entre um modelo que se volta ao trabalho e tem como horizonte o mercado e um outro que se volta a interações simbólicas e tem como horizonte o espaço público.

“Certamente, outros modelos são possíveis, valendo lembrar que, na esteira do marxismo (no caso, não cultural), o projeto filosófico brasileiro com mais fortes pretensões autorais, o de José Arthur Giannotti, pretendeu em certo momento, com ou sem sucesso, mostrar como formas de sociabilidade se entrelaçam às formas concretas de sua reprodução pelo trabalho”, afirmou.

Em especial, ele se deteve nas consequências práticas, baseadas na diferença entre sujeitos de linguagem, onde todos se encontram, qualquer que seja o modelo. “Há um jogo de linguagem, aliás, que os tempos sombrios ora enfrentados contribuem para desmoronar. Refiro-me ao jogo de dizer a verdade, no qual pode a proposição coincidir por acaso com os fatos, mas agora isso parece importar pouco”.

Prosseguindo, disse também identificar  “outro jogo que parece estar em plena decadência, talvez por agora importar mais o mercado que o espaço público. O jogo em que dizemos ‘Dou a minha palavra’. Ora, tal jogo de linguagem, se reduzido a um contexto fragmentado, (…) no qual não se constitua um vínculo interno entre duas pessoas, mas apenas uma relação mercantil superficial, deixa de ser um proferimento a ser honrado (…),  passa a valer como um lance inicial, como se estivéssemos em um leilão, à espera apenas de uma oferta mais vantajosa. (…) O esvaziamento de sentido, a retirada de contexto, tudo isso decorre da escolha de modelos de sociabilidade com que lemos o mundo e, mais fundamente, nos constituímos. E, com sobradas razões, o deslocamento discursivo, mais que um erro teórico, pode ser visto como mais um exemplo de uma corrosão coletiva do caráter dos indivíduos”. Eis um grande risco contemporâneo.

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