jornalismo, ciência, juventude e humor
O Iluminismo em perigo

Texto: Laura Araujo
Imagem da home: ‘Morreu a verdade’, Francisco de Goya

Webinar discutiu investidas contra democracia, ciência e imprensa; ataques têm a mesma raiz e possuem o mesmo objetivo: minar a herança da Era das Luzes

Uma redação de jornal, um laboratório em uma universidade e o gabinete de um juiz à primeira vista têm pouco em comum. Geralmente, as pessoas que trabalham em um desses locais não atua nos demais e pouco entende da sua prática profissional. Mas isso só à primeira vista. Essas instituições figuram entre os frutos do Iluminismo, do racionalismo e do método científico, compreendidos há quase dois séculos e meio como os únicos meios de aferir o que é a verdade e, assim, ordenar a forma ser e estar na sociedade. Trata-se de um consenso, certo? Não necessariamente – especialmente nos dias em que vivemos. Hoje, o “fascismo como modo de vida” e projeto político busca pôr em dúvida o crédito e a validação coletiva dessas estruturas racionais e coletivas, abrindo caminho para um mundo tribalista.

É o que defendem os convidados do sétimo – e último da temporada de 2021 – webinar da série “Novos estudos para decifrar o Brasil contemporâneo”, realizado pelo Instituto Ciência na Rua em 25 de novembro. A mesa “Sociedade incivil, mentiras e metaverso” reuniu o jornalista e sociólogo Muniz Sodré e o doutor em Filosofia Wilson Gomes, com mediação dos jornalistas Mariluce Moura, diretora do Instituto Ciência na Rua, e João Saconi, repórter de política da coluna Lauro Jardim, em O Globo.

Muniz Sodré leciona na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é autor de títulos como ‘O monopólio da fala’ (Editora Vozes), ‘A verdade seduzida’ (Editora Lamparina) e ‘Antropológica do espelho’ (Editora Vozes). Wilson Gomes, por sua vez, também é pesquisador da área da Comunicação e Política, professor de Teoria da Comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor de ‘Transformações da política na era da comunicação de massa’ (Editora Paulus) e de ‘Jornalismo, fatos e interesses’ (Editora Insular).

Muniz Sodré abriu sua fala abordando o conceito de recessão democrática global. Prova de tal recessão seria a constante observância de marcadores da segurança democrática, como a existência de centros de decisão autônomos, permeabilidade entre centro e periferias, flexibilidade social, autonomia dos grupos sociais, pluralidade das elites, independência do sistema jurídico e das cidades e centros de criação. “Há um tanto de idealização, porque a realidade democrática nunca coincidiu [com todos esses itens], mas são balizas que servem para caracterizar a antítese da democracia, que é a ditadura”, observou. Hoje, essa baliza mostra que, no Brasil, a democracia encontra-se sob ameaça de uma onda antiprogressista. “O antiprogressismo está na rua, e traz de volta retropias e fantasias do passado que são claramente fascistas, que nos levam a rever o fascismo como forma de vida. Eu estou convicto do fascismo como forma de vida e que isso se instalou aqui no Brasil”, defendeu o professor da UFRJ.

Apesar disso, a diversidade viceja na política e na vida pública brasileiras. O sociólogo citou a pluralidade das representações de grupos como as mulheres, negros, homossexuais, transexuais e indígenas. Compreender e fortalecer tal diversidade seria um passo fundamental na salvaguarda da democracia brasileira. No entanto, a própria existência desses atores insufla os grupos definidos por Sodré como “fascistas na forma de vida”. “Tem alguma coisa nesse povo [brasileiro] que a gente não havia pensado, e que agora se expressa no plano da cultura contra a diversidade que inclui mulheres, negros, variedades de gênero, os indígenas. E eu vejo um embate democrático nesse plano cultural”, apontou. Para o professor, o embate político deve se dar mais no plano cultural do que institucional, dominado pelos partidos. “São máquinas burocráticas ao redor de verbas, sem representatividade, sem ideias, sem projetos de nação. A representatividade foi embora”, cravou.

Para Wilson Gomes, a crise da democracia é uma realidade perene. “Eu não acho que haja um problema de democracia, pois ela é um sistema que está sempre em crise. A democracia é dois ou três princípios que precisam se institucionalizar e que convive com ameaças o tempo todo, pois não passa em ninguém o fio da espada e por isso sempre há alguém sabotando”, observou. Para o filósofo, a ameaça à democracia brasileira é manifestação mais visível de uma crise ou projeto levado a cabo por grupos adeptos do mesmo obscurantismo ao qual Sodré se referira em sua fala. “É uma investida contra a matriz iluminista e liberal que construiu aquilo que chamamos de Ocidente, materializada em movimentos que vão do marxismo à democracia liberal. A extrema direita é um movimento anti iluminista”, afirmou. No entanto, embora a democracia esteja incluída do pacote ideológico anti-iluminista e anti-humanista, é preciso manter as aparências. “Não pode criticar a democracia, então todo mundo a ama, embora não a ame. Por isso ataca-se outras coisas, como o racionalismo científico e o secularismo”, definiu o professor da UFBA.

O “pacote de incivilidades”, na definição de Gomes, é calcado no ataque ao antidogmatismo – isto é, na capacidade de questionar dogmas. “Um ponto que eu destaco é a contraposição entre ceticismo e credulidade. A crise da democracia é a crise epistêmica, que tem a ver com o estatuto da verdade. O que é verdadeiro? Quem cuida dos fatos? O jornalismo, no qual a sociedade reconhece a obrigação de falar a verdade dos fatos; os intelectuais; a ciência, que deveria ter a última palavra; ou a Constituição, a corte suprema. A extrema direita em toda parte faz um ataque virulento a qualquer instância epistêmica”, explicou. Por isso os ataques dos últimos anos à universidade, ao jornalismo, ao Poder Legislativo e ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Eles foram atacados sistematicamente, com método e reiteração, fake news e teorias da conspiração. Enfim, todos os procedimentos de desqualificação e assassinato de reputação”, definiu. Para Gomes, a luta é contra o conjunto civilizatório que impediria o retrocesso a fases não iluministas da História, onde não existiam a educação pública e laica ou os direitos humanos, tachados como “coisas de esquerda”. Em seu lugar instalar-se-ia o que o professor define como epistemologia tribal, onde a verdade é dada pela conveniência e referendada apenas pela autoridade da tribo. O questionamento da vacina contra a covid-19 e das urnas eletrônicas são exemplos da “epistemologia tribal” em ação no Brasil de 2021.

Mariluce Moura e João Saconi, na bancada de jornalistas, questionaram os professores sobre questões como as saídas para a sociedade incivil, diversidade, a recuperação da crença coletiva no jornalismo e os vínculos entre a conjuntura de crise e a economia neoliberal. Para Muniz Sodré, o filósofo São Tomás de Aquino ensina a respeito da existência de uma ignorância afetada e voluntária, da qual se padece hoje. “A democracia, a crise e a ignorância devem ser levadas mais a sério. Quando você os vê falando realmente é bárbaro, mas é preciso enxergar o que está por trás dessa retribalização, que é movida pela ignorância voluntária com um projeto de mundo: o mundo zero dos valores”, definiu. Para sair desse cenário, seria preciso torná-lo provisório – e este é o grande desafio. Ainda segundo Sodré, o capital financeiro é um grande aliado no projeto “mundo zero de valores”. “As finanças são um jogo abstrato e não têm nenhum compromisso real e verdadeiro com as populações. A ligação com o povo acabou, o capital passou a girar ao redor de si mesmo e não há discurso além do neoliberalismo”, observou.

Já o professor da UFBA é cético quanto a uma saída imediata. “Me perguntam muito se estamos no fundo do poço, mas eu pergunto como podemos afirmar que é um poço, e não um túnel. A democracia está em um backlash”, disse. A extrema direita não é maioria numérica, mas governa por conveniência e conseguiu chegar ao poder por meio do “pânico moral” criado por narrativas onde uma maioria – a sociedade branca, de classe média, heterossexual e cristã, mas não necessariamente todas essas categorias juntas – é levada a crer que constitui uma minoria ameaçada. Apesar disso, a democracia resiste, lembrou. “Houve um momento em que eu temia que não fosse resistir. Mas o STF resistiu, o jornalismo de alguma maneira e voltou a funcionar em março de 2020, enfrentando o bolsonarismo [na pauta da saúde]”, disse. Apesar disso, persiste a credulidade quase absoluta incitada pela extrema direita.

Nesse sentido, ele defende que a retribalização é um problema de raízes mais fundas, atingindo também grupos identitários. “Há uma perda da noção de universalidade. O bolsonarismo parece provisório, mas o retribalismo não, e deve se manter depois de Bolsonaro”, previu. Muniz Sodré aposta em uma retomada da esperança e da humanidade que, ao fim e a cabo, é a grande ameaçada neste momento da História. “Eu concebo a busca humana pela liberdade não como exaltação do eu como está aí, mas como uma dinâmica politicamente ativa do comum. Ela é o caminho de recomposição. Para mim, o caminho é a política como prática de agregação humana. Junto com o jornalismo que renasceu, ela pode renascer no espaço dos ativismos dos coletivos”, concluiu.

A íntegra do encontro está disponível no canal do Ciência na Rua no YouTube.

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