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E apesar de tudo, elas conquistam prêmios e espaços

Ilustração de Nara Lacerda

No Dia das Mulheres, três jovens pesquisadoras –  uma matemática, uma astrofísica e uma filósofa – contam como suas carreiras evoluíram desde março de 2021, quando seus perfis foram elaborados pelo Ciência na Rua

No ponto extremo da desigualdade de gêneros em nosso país, como em tantos outros, está o transbordamento da mais abjeta violência contra as mulheres na forma de feminicídio. Em 2022, informou ao longo deste Dia Internacional das Mulheres o monitor do G1, foram 1.410 desses crimes, ou seja, registrou-se o assassinato de uma mulher apenas pelo fato de ser mulher a cada seis horas. Não há comentário que dê conta, de fato, de tal monstruosidade social.

Entre esse extremo, que clama por um grande, complexo e eficiente sistema de proteção à vida, urgentemente, e o desejável cenário no qual pareça  simplesmente espantosa uma menor presença feminina em qualquer espaço, há inumeráveis zonas da vida social presente em que se pode flagrar cotidianamente a longa persistência de uma profunda deformação estrutural que naturaliza o mundo como o lugar do masculino. E seja por dados estatísticos, seja por evidências empíricas ou por eloquentes imagens que talvez devessem produzir choque, a área da produção do conhecimento científico não foge a isso.

Assim, dados de um trabalho bastante citado do ano passado,  Androcentrismo no campo científico: sistemas brasileiros de pós-graduação, ciência e tecnologia como estudo de caso, dos pesquisadores Roberta Silva, Alice Abreu, Carlos Nobre e Ademir Santana (Anais da Academia Brasileira de Ciências – ABC), mostram que, se as mulheres representavam 57% dos bolsistas de mestrado e 54% dos bolsistas de doutorado da Capes, além de 52% dos bolsistas do CNPq no país, quer dizer, se elas eram, no período analisado, a maioria na base da carreira científica, isso se alterava à medida do avanço em direção ao topo.

Assim, sua participação era respectivamente de 48% e de 46% no caso das bolsas da Capes e do CNPq no exterior, de 38% como coordenadores de áreas do conhecimento, de 35% como membros dos comitês consultivos do CNPq, de 25% como bolsistas de produtividade 1A (as mais altas do CNPq) e, pasmo, de apenas 7% nos comitês de seleção de novos membros da ABC. Em tempo, Capes é sigla de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e é uma agência de fomento à pesquisa vinculada ao Ministério da Educação. CNPq é Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e está na alçada do Ministério da Ciência e Tecnologia.

A referência a órgãos do sistema brasileiro de ciência e tecnologia, aliás, vem bem a propósito para ilustrar o que os pesquisadores chamaram de androcentrismo  no estudo citado e que, em linguagem mais coloquial, é o conservadoríssimo e onipresente machismo flagrado no campo da produção científica. Assim, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, criado com a redemocratização do país, em 1985, tem à frente, pela primeira vez, uma mulher, a pesquisadora, engenheira e gestora de política científica Luciana Santos. Já o CNPq, criado em 1951, jamais foi presidido por uma mulher. Se olhamos também a maior e pioneira agência de fomento à pesquisa no plano estadual, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), criada em 1962, também encontraremos que jamais foi presidida por uma mulher ou teve uma em seu conselho técnico-administrativo, formado por três diretores. Parece mais que tempo de quebrar tais paradigmas.

Entretanto, a despeito dos obstáculos, as mulheres avançam, individualmente e como grupo. Não há paralelo entre o que podem contar jovens cientistas no presente e o tamanho das barreiras que se levantavam no caminho acadêmico das mulheres 50 anos atrás.

Para olhar mais no detalhe essa mutação, dois anos atrás o Ciência na Rua elaborou no mês das mulheres, com base em entrevistas, o perfil de 10 jovens cientistas de diferentes áreas do conhecimento e diferentes regiões do país. Neste ano, pediu a todas elas que escrevessem um pequeno depoimento sobre como seguiram desde então seus trajetos. Três delas atenderam prontamente a nosso convite, e publicamos abaixo seus depoimentos, enquanto torcemos para que outros cheguem.

Boa leitura!

 

Jaqueline Godoy Mesquita

(perfil original em https://ciencianarua.net/mes-das-mulheres-jaqueline-godoy-mesquita/)

No dia 6 de março de 2023, às vésperas do Dia Internacional das Mulheres, fui laureada com o Prêmio “Science She, Says! Award”, honraria concedida pelo Ministério de Relações Exteriores da Itália, sendo a única ganhadora da América do Sul, Central e Região do Caribe. Este prêmio é destinado a todas as áreas do conhecimento, e ter uma cientista da matemática pura levando esta premiação mostra a importância da ciência básica para o desenvolvimento da pesquisa científica. Esta láurea reforça também o protagonismo do Brasil na área da matemática. Isso com certeza será muito importante para aumentar ainda mais a visibilidade da ciência brasileira que, com esta premiação, está representando toda a América Central, do Sul e a Região do Caribe.

 

Nos últimos dois anos, desde a entrevista concedida ao Ciência na Rua, minha carreira de cientista evoluiu bastante. Em 2021, fui eleita vice-presidente da Sociedade Brasileira de Matemática, a atuação neste cargo me fez compreender como funciona a dinâmica dentro da comunidade matemática, bem como suas principais dificuldades e perspectivas. Apesar de ter sido um período com muitos desafios, posso dizer que foi um dos períodos em que mais pude aprender em toda minha carreira.

 

Também tenho me dedicado bastante às questões de gênero na área de matemática. Em 2021, me tornei embaixadora do Committee for Women in Mathematics da União Matemática Internacional. Durante o período de 2020 a 2022, fiz parte da Comissão de Gênero e Diversidade da Sociedade Brasileira de Matemática e da Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional.

 

Como vice-presidente da Sociedade Brasileira de Matemática, tentei me dedicar às várias ações para aumentar a equidade de gênero e trazer mais representatividade nestes dois anos. Em 2022, fizemos uma parceria com o British Council para fornecer um Programa de Treinamento de Lideranças Inclusivas para 70 mulheres atuando na área de matemática e em áreas afins. Neste ano de 2023, em conjunto com a Sociedade Brasileira de Física, lançamos o primeiro Programa de Mentorias voltado às estudantes de doutorado e pós-doutorado em Matemática e Física do Brasil, um programa totalmente pioneiro no país. Em 2023, organizamos o III Seminário Mulheres na Ciência da UnB, que foi muito importante para fomentar o debate sobre a questão da representatividade e da equidade racial e de gênero na academia.

 

Também, em 2021 integrei o Comitê Gestor do Torneio Meninas na Matemática, isso tem me trazido uma experiência bastante positiva, pois comecei a ter mais contato com as meninas olímpicas na área de matemática. Organizamos pela Sociedade Brasileira de Matemática o I Workshop das Laureadas do Torneio Meninas na Matemática, em que trouxemos importantes discussões sobre carreira e oportunidades para debater com as meninas olímpicas.

 

No cenário internacional, em 2022, fui a chefe da Delegação Brasileira na Assembleia Geral da União Matemática Internacional, em Helsinki, Finlândia, tendo sido uma grande honra e aprendizado para mim. Para o período de 2022 a 2025, fui selecionada para integrar o comitê executivo da TWAS Young Affiliates Network. Esse comitê está à frente de muitas ações importantes que visam promover iniciativas para fortalecer a ciência nos países em desenvolvimento e dar mais visibilidade aos grupos subrepresentados. Tenho aprendido bastante com este comitê sobre as diferentes realidades vividas nos países e como em muitos lugares o “fazer ciência” pode ser desafiador diante das condições impostas.

 

No cenário internacional, ampliei minhas colaborações científicas, tendo iniciado uma colaboração com a França, recebendo dois financiamentos para passar um período em Paris trabalhando em problemas relacionados às equações diferenciais com retardos, tema principal da minha pesquisa.

 

Fui também contemplada com um auxílio da Fundação Alexander von-Humboldt chamada “Return Fellowship” que me permitirá voltar à Alemanha neste ano de 2023 para continuar desenvolvendo minhas pesquisas científicas na área de equações com retardos.

 

Rita de Cassia dos Anjos

(perfil original em https://ciencianarua.net/mes-das-mulheres-rita-de-cassia-dos-anjos/)

Em 2021, lançamos o NAPI Fenômenos Extremos do Universo, fomentado pela Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná (FA) e coordenado por mim. NAPI é a sigla de Novos Arranjos em Pesquisa e Inovação, e o nosso integra pesquisadores e estudantes vinculados a várias instituições de ciência e tecnologia do Paraná e também pesquisadores de outros estados.

 

A coordenação da rede é feita pelas universidades Federal do Paraná (UFPR) e Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), o aporte financeiro inicial foi de pouco mais de R$ 1 milhão e o projeto deverá contribuir para a produção de resultados científicos revolucionários em física e astrofísica.

Em 2022 realizamos o I Workshop de Astronomia e Astrofísica do  Paraná, evento online destinado a integrar os pesquisadores do NAPI e suas áreas específicas, com mais de cem participantes. Este ano o evento acontecerá presencialmente em Curitiba juntamente com a Escola itinerante do Observatório Nacional do Rio de Janeiro.

 

Nos anos de 2021 e 2022 consegui aprovação da Fundação Araucária para dois projetos de meu grupo de pesquisa em astrofísica apoiado pelo CNPq: “Cosmologia de neutrinos e implicações em física de raios cósmicos” e “Astronomia na era multi-mensageira e a participação feminina. Quo Vadis?”

O foco do primeiro é descrever mecanismos envolvidos na correlação entre partículas carregadas e partículas multi-mensageiras aceleradas e provenientes de fontes astrofísicas, utilizando-se resultados recentes de grandes observatórios e modelos astrofísicos e cosmológicos propostos pelo grupo. O segundo projeto tem a preocupação de inserir meninas pesquisadoras na área de astrofísica de altas energias.

Ambos foram aprovados com pesquisadores da UFPR – Setor Palotina e, juntamente com o NAPI Fenômenos, demonstram o protagonismo paranaense na pesquisa em astrofísica realizada no Brasil – e para mim é uma alegria estar inserida neste crescimento. Nesse contexto, destaco que meu grupo de pesquisa cresceu e hoje é marcado por bastante diversidade: oriento alunos e alunas, desde a iniciação científica júnior até a supervisão de pós-doutorado, com estudantes de mestrado e doutorado no grupo.

Com o grupo de pesquisa ativo, minha produção científica também aumentou, com publicação de artigos e convites para ministrar palestras e seminários em diversos eventos nestes dois últimos anos.

Ainda em 2022, tive aprovado juntamente com o Instituto Redi o Projeto Symbiosis: Inclusão com a reglete positiva A4, no edital Sebrae/Catalisa/CNPq. Sua proposta era aperfeiçoar a reglete, instrumento utilizado por pessoas com deficiência visual para escrita Braille, agora em fase final de desenvolvimento. E em paralelo, junto com os licenciandos do curso de licenciatura em ciências exatas e professores da rede pública da região, desenvolvi o projeto: 63 sinais: Acessibilidade e inclusão com o ensino do Braille, exatamente para promover o ensino da escrita Braille utilizando a reglete. Um de seus resultados é o curso básico de Braille e tecnologia assistiva, online, carga de 30 horas, gratuito e com certificado, estruturado junto com a Coordenação de Integração de Políticas de Educação a Distância da UFPR que será lançado neste mês de março na plataforma UFPRaberta para toda a comunidade.

 

Em 2021 fui selecionada como membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências. Em 2022 renovei minha bolsa de Produtividade PQ2 do CNPq e fui aprovada como membro associado do ICTP – International Centre for Theoretical Physics, na Itália. Nos próximos cinco anos poderei visitar o Centro algumas vezes e colaborar com os pesquisadores, financiada pelo Instituto. Também em 2022 fui aprovada para uma bolsa do Grupo Coimbra – Coimbra Group Latin America Scholarship Programme, para visitar um centro europeu. Este ano ficarei dois meses na Bélgica trabalhando em minha área de pesquisa.

 

Por fim, em 2022 finalizei a escrita do meu Almanaque. Este projeto é liderado pela Profa. Maria Augusta Silveira Netto Nunes, da Unirio. São almanaques voltados para a popularização da Ciência da Computação. No final de 2020 ela me convidou para participar da série 10 – Mulheres empoderadas. Foi uma alegria compartilhar um pouco da minha história em uma revista de popularização da ciência. O projeto foi finalizado em 2022 e na revista você vai encontrar a minha história e também o caminho percorrido por um raio cósmico. Vale a pena conferir: https://docs.ufpr.br/~ritacassia/img/almanaque_rita.pdf.

 

Carmel Ramos

(perfil original em https://ciencianarua.net/mes-das-mulheres-carmel-da-silva-ramos/)

Desde junho de 2021 trabalho como professora de história da filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Comecei a dar aulas durante a pandemia, de modo que meus primeiros cursos foram online. Sou responsável por ministrar disciplinas de introdução à filosofia para estudantes dos cursos de graduação em ciências sociais e história, normalmente ainda nos primeiros períodos de seu percurso acadêmico. Essa experiência foi essencial para que eu pudesse desenvolver minhas habilidades docentes e, além disso, me impactou muito no âmbito pessoal. Hoje, além de pesquisadora, me reconheço igualmente como professora de filosofia, e tenho cada vez mais adorado unir a pesquisa e o ensino.

 

Ainda em 2021, no mês de novembro, defendi minha tese de doutorado dedicada ao Tratado Teológico-Político de Baruch de Spinoza. Participei, logo em seguida, de um episódio do podcast do PPGLM no qual comentei em detalhes tanto o pensamento de Spinoza quanto as hipóteses que ali desenvolvi. Minha tese foi indicada pelo meu programa de pós-graduação para concorrer ao prêmio Filósofas de Destaque Acadêmico de 2022 – e, em breve, um vídeo será publicado no canal no YouTube da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas no qual apresentarei, para um público amplo, as linhas gerais de minha pesquisa. Desde então, tenho oferecido aulas sobre Spinoza nos meus cursos na graduação na UFRJ, um autor que parece sempre encantar os alunos por conta de suas ideias questionadoras.

 

Além da pesquisa sobre a filosofia do século XVII, intensifiquei os trabalhos sobre mulheres na filosofia, tema que já me interessava desde a dissertação. Tenho pesquisado o pensamento do filósofo cartesiano Poulain de la Barre, que publicou, ainda no século XVII, três tratados protofeministas em defesa da educação formal das mulheres e de sua igualdade em relação aos homens. Tive a oportunidade de tratar das linhas gerais dessa pesquisa no evento organizado pelo projeto de extensão Quantas Filósofas, disponível no YouTube.

 

Participei também do projeto Mulheres que leem mulheres, apresentando a importância da leitura da filósofa Elisabeth da Boêmia tanto em minha pesquisa de mestrado quanto em minha concepção metodológica como um todo. Tomei como um compromisso incorporar a obra e a discussão sobre mulheres na Filosofia também em meus cursos na graduação, para que as e os estudantes não terminem a sua passagem pelas ideias filosóficas sem terem notícia das contribuições essenciais das mulheres na história do pensamento.

 

Participo atualmente do projeto Quantas filósofas?, um projeto de ensino, pesquisa e extensão sobre mulheres na filosofia vinculado à UFRJ. O projeto publica periodicamente em suas redes verbetes escritos por graduandos em filosofia cujo objetivo é apresentar a vida e a obra de filósofas negligenciadas pela tradição de comentário. Ainda, o projeto reúne dados sobre a quantidade de mulheres nas instituições de ensino. Neste ano, oferecerei, no Quantas Filósofas, um curso de extensão inteiramente dedicado às filósofas brasileiras.

 

Tenho organizado, desde 2021, a série de vídeos Brazilian Women Philosophers/ Filósofas Brasileiras. Faço a curadoria e a edição dos vídeos juntamente com a professora Carolina Araújo, também da UFRJ. Em parceria com o projeto internacional Extending New Narratives, a série convida pesquisadores a apresentarem de forma sucinta os principais argumentos de filósofas brasileiras. Todos os vídeos são legendados em inglês, já que seu foco é a divulgação acadêmica para um público internacional.

 

Para 2023, meu objetivo é retomar a pesquisa acadêmica com fôlego. Pretendo iniciar um pós-doutorado justamente sobre o filósofo Poulain de la Barre. Gostaria não só de iniciar o debate sobre um autor pouco estudado no Brasil – mas que já vem sendo recuperado em outros países nos últimos anos –, mas também preparar uma tradução de sua obra para o português. Desejo, assim, colaborar com a crítica do cânone filosófico, demonstrando como a discussão de gênero, apesar de esquecida, não é novidade na história da filosofia.

 

 

 

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