Quando Victor Frankenstein montou sua criatura, utilizou partes de diferentes corpos para criar um “ser novo”. Se na época de Mary Shelley soubessem da existência do sistema imune, a autora de Frankenstein jamais teria proposto semelhante proeza. Por quê? Porque hoje sabemos que nossos corpos não aceitam nada que reconheçam como estranho, seja um vírus, uma bactéria, uma célula tumoral ou um órgão ou tecido que venha de outra pessoa. E essa linha de defesa que rejeita o que lhe é estranho está governada por nosso sistema imune.
Desde que somos muito pequenos, nosso corpo aprende a “reconhecer a si mesmo”. Dessa maneira, pode estar mais preparado para distintguir qualquer invasor estranho que se atreva a nos atacar. Isso é primordial, claro, na hora de destruir vírus e bactérias que podem nos causar muito dano. Mas por que combater um órgão que pode salvar nossa vida em um transplante?
O que é acontece é que nosso sistema imune é muito detalhista e encontra “inimigos” mesmo nas mínimas diferenças. E cada um de nós é diferente do outro, inclusive no nível celular. Só entre gêmeos idênticos (que compartilham o mesmo DNA) se pode realizar um transplante sem problemas. Às vezes o sistema imune pode não causar dano se o órgão transplantado provém de um familiar muito próximo, como irmãos ou pais, já que entre eles há mais semelhanças em nível genético do que em relação a outras pessoas.
E por que há tantos transplantes bem sucedidos apesar disso? Porque aprendemos a enganar o sistema imune com alguns truques para torná-lo “menos agressivo”. Para isso, se utilizam algumas drogas imunodepressoras (como os corticoides, por exemplo), que “adormecem” nossa imunidade para que não rejeite o transplante. E os pacientes receptores de órgão têm que se cuidar muito, porque também ficam mais suscetíveis a adoecer por infecções virais ou bacterianas.
É em parte por isso que, em tempos de pandemia como os que vivemos, quem tem um sistema imune forte e saudável deve usar máscara e manter distância de outras pessoas, já que podem sobreviver, inclusive sem sintomas, se se infectarem, mas também podem contagiar alguém cujas defesas estão fracas e não tem como se defender do coronavírus.
E como funciona o sistema imune? Queando nosso corpo termina de reconhecer a si mesmo durante a infância, ficam preparados os dois exércitos de células que vão nos defender de tudo que pareça não ser nós mesmos. O primeiro exército é formado por um tipo de glóbulos brancos do sangue conhecidos como linfócitos T. Dentro da ampla variedade dessas células, existe um grupo capaz de identificar o inimigo com grande precisão. Quando o invasor é reconhecido, os linfócitos T o atacam e destroem com diferentes táticas, seja com substâncias químicas ou “comendo” diretamente o inimigo ou as nossas próprias células que infelizmente já foram infectadas. Dessa última maneira se evita que as células doentes espalhem o organismo invasor para células saudáveis. Para que o ataque seja mais eficiente, outro grupo de linfócitos envia sinais químicos que funcionam como um pedido de ajuda para que venham mais células do sistema imune e, assim, fazer desaparecer o invasor. Quando isso ocorre logo depois de um transplante pouco compatível, o órgão começa a ser destruído, no que se conhece como “rejeição”.
Para que a imunidade seja mais eficiente, sobretudo ao longo do tempo, um pouco mais tarde entra em ação o outro exército que mencionamos. Essa tropa altamente eficiente está formada por um tipo de linfócitos conhecidos como células B, que estão encarregadas de gerar um tipo de proteínas muito variáveis conhecidas como anticorpos, que por sua vez têm como principal missão terminar de destruir o invasor e permanecer vigilantes ao longo do tempo, caso o inimigo volte a querer atacar. Assim, ante um segundo ataque, o corpo estará melhor preparado para se defender mais rápido.
É justamente o que fazem as vacinas. “Simulam” um primeiro ataque para que o sistema imune gere as defesas necessárias caso o verdadeiro inimigo apareça no futuro. E como se pode simular um ataque? Botando em nosso corpo (com uma injeção, por exemplo) pedacinhos do invasor, ou um inimigo inativado. Pode ser um vírus que mantenha sua estrutura (que é o que o sistema imune reconhece) mas seja incapaz de infectar por ter sido inativado, o que se pode fazer utilizando calor ou sibstâncias químicas. Muitas vezes basta um fragmento viral ou bacteriano (em geral proteínas), sobretudo aquelas partes que o sistema imune reconhece mais facilmente quando acontece uma infecção produzida pelo germe completo.
Esses pedacinhos em uma vacina são capazes de induzir sozinhos a produção de anticorpos sem nos causar qualquer dano, e esses mesmos anticorpos serão capazes de reconhecer o inimigo completo, caso ele se atreva a entrar nos nossos corpos.
Dependendo de muitos diferentes fatores, inclusive características do sistema imune de cada pessoa, essa “memória” pode durar desde alguns meses até o resto de nossas vidas.
Ciência Monstruosa é um projeto do pesquisador e comunicador científico argentino Alberto Díaz Añel, que o Ciência na rua está adaptando para o português. Toda sexta-feira, publicamos um texto aqui e nas nossas redes sociais. Confira abaixo os já publicados.
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