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Uma epidemia para falar de outra
Divulgação científica

por | 1 abr 2020

Nova temporada do podcast 37 graus conta a história do zika vírus no Brasil, coincidência com a pandemia de covid-19 demandou adaptações

Bia Guimarães (esquerda) e Sarah Azoubel, gravando numa feira em Campinas (foto: Mariana Rodrigues)

Com ruído de rua ao fundo, uma jovem voz feminina testa o microfone, “alô, alô, alô”. Em seguida, a mesma voz: “Topa responder uma pergunta? Você lembra qual foi a epidemia que mais te marcou, que você mais ficou com medo?”. Um homem responde: “Acho que a que está marcando é essa daqui, agora, que eu nunca vi um negócio desse na vida”. Assim começa, após breve introdução gravada em estúdio, Epidemia, a terceira temporada do podcast 37 graus, criado por Bia Guimarães (a voz da pergunta), 27 anos, e Sarah Azoubel, 32.

A nova temporada, com episódios publicados às terças-feiras, estreou no último dia 17 e trata da epidemia de zika que atingiu o Brasil entre 2015 e 2016, com consequências que perduram até hoje. Quis o acaso que seu lançamento coincidisse com a chegada ao país de outra epidemia, dessa vez a pandemia global de covid-19, gripe causada por outro vírus, o Sars-CoV-2.

A coincidência obrigou a dupla de realizadoras a alterar os planos, modificar roteiros, entrevistar mais gente, para que, ao tratar de uma epidemia, pudesse estabelecer relações com a outra, que, afinal, é o grande assunto do mundo neste momento. “Foi um atropelamento, acho que para todo mundo, e para nós, inclusive”, diz Bia. “Parecia que estava tudo normal, eu e a Sarah fomos fazer um ‘povo fala’ em uma feira, aqui em Campinas, a maior aglomeração possível”. “Povo fala”, no jargão jornalístico, são aquelas breves entrevistas com pessoas na rua escolhidas aleatoriamente ou quase.

A escolha do tema para a temporada também foi um acaso, de certa forma. A ideia inicial era fazer um episódio sobre a epidemia de zika – as temporadas anteriores tinham um tema por episódio –, mas, conforme a pesquisa avançava, o assunto foi crescendo, era muita informação, muita gente envolvida, muitos pontos de vista interessantes para ficarem limitados a cerca de meia hora, e as realizadoras entenderam que tinham assunto para uma série.

O encontro

A história do 37 graus começa na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mais precisamente no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, o Labjor. Sarah é bióloga de formação e, quando foi fazer seu doutorado na Universidade da Califórnia em San Diego, em 2011, foi apresentada ao universo dos podcasts pelos colegas. Encantou-se com o formato, que ouvia durante as longas horas de trabalho repetitivo no laboratório. Quando voltou a Campinas, um pouco sem saber o que fazer e a fim de outros caminhos, foi parar na especialização em jornalismo científico do Labjor. Lá, conheceu Bia, jornalista formada na PUC de Campinas, que fazia mestrado em divulgação científica e cultural.

Ambas participaram do podcast Oxigênio, produzido por alunos do laboratório, e dessa experiência e interação surgiu a ideia de fazer um podcast narrativo, formato com técnicas mais apuradas de storytelling, apresentado a Bia por Sarah. Por volta de abril de 2018, começava a germinar o 37 graus. Dali a setembro, a ideia tomou forma. Em outubro, foi ao ar.

A primeira temporada, que teve três episódios pilotos e um bônus, foi gravada de forma mais amadora, em casa, mas a linguagem característica do podcast narrativo – definido por Ira Glass, criador do podcast This American Life, como “jornalismo literário em áudio”. “Essa coisa de ritmo, de alternar narração com a entrevista, com sons de arquivo, é muito usada. Os podcasts narrativos são super imagéticos, carregam o potencial de levar a pessoa junto, de criar imagens na cabeça das pessoas, isso depende de você construir cenas, gravar sons em campo, descrever o que está acontecendo, manter a pessoa engajada, usando essa alternância de texturas de som”, explica Sarah.

Com essa primeira amostra do potencial do projeto em mãos, era hora de tentar recursos para sua continuidade. No fim daquele ano,conseguiram apoio do Instituto Serrapilheira, por meio do programa Camp Serrapilheira (que também apoia o Ciência na rua). Ainda em 2018, as realizadoras tentaram ingressar no programa de treinamento do Google Podcasts Creator, não tiveram êxito, mas se animaram por terem chegado perto. Na rodada seguinte, em 2019, seriam selecionadas.

Apoios

Na segunda temporada, já com uma produção mais estruturada, foram cinco episódios e um bônus. Entre os temas abordados, assuntos inusitados como as carvoarias escondidas nas florestas cariocas, episódio que Bia usa de exemplo para explicar que o público do podcast é de pessoas interessadas em descobrir coisas novas. Durante o treinamento do Podcasts Creator, no segundo semestre de 2019, remoto e com três visitas de uma semana a Boston, a questão de conhecer o público e avaliar se o programa correspondia às expectativas foi bastante enfatizada. Para isso, fizeram questionário com ouvintes e chamadas de vídeo ou telefone com alguns deles, além de irem a lugares com potenciais ouvintes, como o Sesc, para conhecer melhor seus hábitos e interesses.

Com esse treinamento, a dupla conseguiu aprofundar ainda mais seu domínio da linguagem e chegou à terceira temporada, agora em parceria, que já vinham ensaiando, com o jornal Folha de São Paulo. Mas o aprendizado não para. “Nos baseamos em um modelo que já existia e fomos dando a nossa cara, aprendendo a fazer, é super trabalhoso, já passamos por vários procedimentos diferentes de como um episódio é montado e até hoje vamos mudando para tentar aperfeiçoar”, conta Sarah.

Epidemia

No momento, a dupla encara uma maratona para adaptar seus episódios à conjuntura da pandemia. “Conforme a série vai avançando, temos tentado relacionar mais o que está acontecendo agora com o que o Brasil viveu em 2015 e 2016, quando se descobriu que o Zika não era um vírus tão banal como se pensava, foi num contexto muito diferente mas que também deixou marcas muito impactantes na ciência e na sociedade”, diz Bia. Sarah completa: “Não faria sentido o podcast ser lançado parecendo que era de outra época, e era assim que soava para nós quando ouvíamos algumas das coisas mais antigas. As coisas estão mudando tão rápido que mesmo o que atualizamos uma semana antes, na semana do episódio temos que trocar”.

Elas inicialmente pensaram que o tema da temporada casaria bem com o verão, época de mosquitos, até serem surpreendidas pela proporção da pandemia de covid-19 e se verem obrigadas a fazer adaptações. “Quem quer saber de zika quando se está no meio de uma pandemia de coronavírus? Então estamos fazendo esse trabalho para conectar os pontos”, explica Sarah.

Assim como o Sars-CoV-2 agora, embora por razões distintas, o Zika era um vírus muito pouco conhecido, o que demanda uma grande quantidade de pesquisa científica para encarar o problema. “Pelo que conversamos com especialistas, essa situação de lidar com novos vírus e novas epidemias pode ficar cada vez mais comum, devido ao tanto de mobilidade humana que existe hoje e à degradação ambiental”, conta Sarah. “Essas duas epidemias são uma lição de que não podemos abaixar a guarda”.

Outra aproximação entre as epidemias diz respeito a seus impactos socio-econômicos, tema do terceiro episódio, lançado nesta semana. “A epidemia de zika teve um impacto de gênero muito forte, a questão das mães das crianças com a síndrome congênita do zika, que até hoje vivem uma situação de abandono. Uma epidemia não termina quando os casos caem e os jornais param de falar do assunto”, conta Bia. E prossegue: “Com a questão do corona, já conseguimos ver muito claro que os impactos que temos hoje vão demorar muito para ir embora, se é que vão. Uma epidemia é capaz de jogar luz sobre um monte de coisas que já estavam lá, mas não percebíamos”.

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