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Uma aventura sob medida: a construção da Pesquisa Fapesp – capítulo IX
Divulgação científica

por | 16 out 2019

Leia aqui o capítulo VIII

A “carta do editor” ainda não era assinada. Tampouco deixava uma abertura de gênero para o profissional responsável por ela, do tipo “do/da editor/editora”, tão comum nos dias que correm. A função estava então no masculino, sem maiores espantos ou discussões, e era praxe generalizada em editoriais e expedientes de publicações jornalísticas, mesmo quando, em boa parte das redações, as mulheres já constituíam a maioria e passavam a ocupar postos de comando. Estávamos, como estamos ainda, embora um pouco mais atentas a isso, imersas numa ordem masculina naturalizada do mundo. Adiante, assinatura e gênero figurariam normalmente nesses textos de apresentação sucinta do conteúdo de cada edição da Pesquisa Fapesp.

Exatos 20 anos depois, entretanto, à parte o reparo feito, a “carta” de outubro de 1999 segue explicando com clareza e precisão a que vinha a revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Vejamos:

O nascimento de uma revista

Informativo alcança a maturidade e transforma-se

Edição 47
out. 1999

Notícias FAPESP transforma-se, a partir desta edição, na revista Pesquisa FAPESP. O fato marca, primeiro, um novo e importante passo na relação que esta Fundação vem se empenhando em construir com a opinião pública paulista – relação de respeito e de reconhecimento a seu direito de ser informada sobre o destino dos recursos públicos investidos em ciência e tecnologia neste Estado; ao direito de ser também informada sobre o significado das pesquisas financiadas pela FAPESP para a construção do conhecimento, a melhoria da qualidade de vida das pessoas, o aprimoramento da sociedade ou o desenvolvimento econômico deste país. Sim, a pesquisa científica e tecnológica tem em seu horizonte esses múltiplos alvos.
O surgimento da revista assinala, também, uma possibilidade de apresentação sistemática da pesquisa feita em São Paulo a todo o país, ampliando os canais de diálogo inter-regional e entre instituições, que podem representar contribuição importante ao desenvolvimento científico e tecnológico nacional. Desse diálogo faz parte, naturalmente, a abertura gradativa da revista a informações sobre a pesquisa feita em outros Estados, com objetivos similares ou complementares aos de projetos desenvolvidos em São Paulo.

Entendemos que Pesquisa FAPESP tem um vasto potencial para aproximar mais o mundo da pesquisa da opinião pública paulista, e mesmo nacional, porque está vocacionada para ser uma publicação de referência para a mídia. Há meses, a repercussão crescente do material publicado pelo Notícias FAPESP mostrava que aos poucos ele se transformara em fonte privilegiada de pautas, de consultas e de matérias para as editorias de ciência de jornais, revistas, emissoras de rádio e TV e agências de notícias com sede em São Paulo. O avanço que agora apresentamos em seu projeto editorial, conferindo-lhe uma dimensão inquestionável de revista de divulgação científica, deve contribuir para aprofundar seu caráter referencial – e, em conseqüência, estimular a concessão de mais espaço ou tempo da mídia nacional à produção científica brasileira.

A par desse papel, acreditamos que Pesquisa FAPESP terá significado especial para a comunidade científica nacional. Os pedidos de pesquisadores dos quatro cantos do país para receber o informativo de que ela se origina registraram crescimento notável nos últimos meses, e desconfiamos que, com a revista, a tendência deve crescer. Assim, se cerca de 15 mil pesquisadores paulistas constituíam o público predominante dos 22 mil exemplares do Notícias FAPESP, essa proporção logo poderá estar superada.
Isso, contudo, não esgota nossas expectativas quanto ao papel da revista na divulgação científica: estamos confiantes de que ela atenderá a necessidades de informação especializada, mas em linguagem clara, de empresários, executivos, professores, estudantes e profissionais liberais de todo o país, de quem também vínhamos recebendo cada vez mais pedidos de inclusão em nossa mala.

Um comentário final: para a equipe de profissionais que transformou o modesto boletim de quatro páginas e mil exemplares, lançado em agosto de 1995, nesta nova revista de 46 páginas e mais um encarte especial, este é um momento de alegria. Essa equipe confia que está veiculando material jornalístico diversificado e relevante sobre a produção científica e tecnológica paulista, elaborado com rigor profissional, dentro de um projeto gráfico sóbrio e elegante, desenvolvido por Hélio de Almeida, um dos artistas gráficos reconhecidamente mais talentosos de São Paulo – daí, por que não?, um certo orgulho profissional. Temperado pela certeza de que há muito ainda por fazer para o aperfeiçoamento desta revista, nova, mas enraizada no boletim que a originou. Por isso, com um nome novo – de revista mesmo e não mais de house organ – ela é número 47, e não número 1.

Em gestação consciente e deliberada desde o boletim número 35, quando Helio de Almeida fez a primeira capa para o Notícias, lembram?, e dividida agora em quatro editorias compostas por reportagens, notícias e notas, a revista passava a nomear toda a  sua equipe no expediente, com a devida definição de cargos. Nas 48 páginas trazia novas seções, com destaque, de saída, para a “Memória”, pensada no processo de desenvolvimento do projeto como uma página ou páginas de caráter marcadamente visual sobre algum episódio significativo da história da ciência em São Paulo, no Brasil ou, eventualmente, em qualquer parte do mundo. As imagens históricas teriam, em princípio, apoio de um texto mínimo, praticamente legendas, eu diria – mas na prática jamais tal pretensão foi efetivamente alcançada.

O que era para ser a excepcionalidade do começo tornou-se vício de origem e, mesmo trazendo ao longo do tempo imagens da mais alta relevância, a “Memória” foi sempre muito palavrosa, a narrativa textual impondo-se hierarquicamente às fotografias, desenhos ou qualquer outra ilustração usada. Fazer o quê? Na primeira edição fizera-se necessário explicar com muito mais detalhes do que uma legenda permitiria que aquela foto, sobre a qual o tempo fizera algum estrago, era o registro visual do nascimento da Fapesp, em outubro de 1960 – menos de dois anos depois, ela começaria a funcionar de fato. Sim, no grupo de senhores sérios que mostrava, o que ocupava a posição central, sentado a uma mesa assinando um documento, era o governador Carvalho Pinto.

“Uma imagem inaugural:o governador Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto sanciona, no dia 18 de outubro de 1960, no Salão Vermelho do Palácio dos Campos Elíseos,a lei número 5.918, instituindo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). À sua direita, o secretário da Saúde, Fauze Arape, e à sua esquerda, o advogado Hélio Pereira Bicudo, que secretariou os trabalhos da comissão responsável pela elaboração da lei.”, dizia o primeiro parágrafo do texto da Pesquisa Fapesp. Seguia:
“Por trás dessa imagem publicada no jornal paulista A Gazeta, danificada pelo tempo e por condições inadequadas de conservação, mas cujo valor histórico justifica ainda assim sua reprodução nesta seção de Memórias, há uma longa história de luta. Tratava-se de uma luta, liderada por homens com mais visão de futuro, para convencer grande parte de uma elite provinciana e indiferente, senão um tanto avessa à investigação científica, de que o investimento nessa área era vital para o desenvolvimento da sociedade.” O texto finalizava em tom um tantinho grandiloquente e com uma declaração do governador, por mais que justificadas razões, caríssima à Fundação. Vejamos:

“Adiante dessa imagem, mais que simplesmente a criação de uma agência pública de financiamento à pesquisa, encontra-se a construção de um sólido sistema de produção de ciência e tecnologia no Estado de São Paulo, de que essa agência – a FAPESP – é uma das pedras angulares.E isso justifica, sem dúvida,a declaração temperada de modéstia do governador Carvalho Pinto, anos depois desse registro fotográfico: “Se me fosse dado destacar alguma das realizações da minha despretensiosa vida pública,não hesitaria em eleger a FAPESP como uma das mais significativas para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país”.

Entre as novas seções, vale destacar também a “Arte final”, página de humor que pretendia fechar a revista com um tom para cima, irreverente, crítico – e engraçado, se possível. Iniciamos cheios de entusiasmo com um trabalho de Guto Lacaz, e por 51 edições, de outubro de 1999 a janeiro de 2004, grandes chargistas do país estariam compartilhando seu olhar singular com os leitores antes que encerassem a leitura da revista. A “Arte final” terminaria por cair, trocada por ficção, mais especificamente, por contos que guardassem alguma relação com a produção de conhecimento científico ou com seus ambientes. A expressão livre e, por vezes, a mais franca irreverência de chargistas e cartunistas não eram muito fáceis de ser absorvidas nas instâncias superiores da Fundação e entre alguns grupos de pesquisadores, assim, ante o constrangimento de solicitar seguidamente aos artistas que amenizassem o tom crítico ou simplesmente desistir, jogando a toalha quanto à manutenção da página, optamos pela segunda alternativa. Não estou certa de que tenha sido a melhor escolha, às vezes a insistência leva à colheita de frutos mais saborosos. De qualquer sorte, o conjunto de nomes que assinaram trabalhos naquele espaço é, sem sombra de dúvida, de provocar orgulho em qualquer editor e, neste caso, especialmente no editor de arte, Helio de Almeida, diretamente envolvido nas tarefas de propor os nomes, convidar o artista escolhido e ir dialogando com ele sobre o trabalho.

Importante é assinalar aqui que, em 2015, a Fapesp generosamente autorizou o Ciência na rua a republicar as charges em seu site, desde que, é claro, obtivesse em cada caso também a autorização do artista, obedecendo à legislação sobre direitos autorais.
Tornou-se, creio, mais evidente no número inaugural da Pesquisa Fapesp que as grandes reportagens sobre pesquisas relevantes voltadas ao conhecimento científico ou à inovação tecnológica em qualquer campo, concluídas ou em desenvolvimento, ou sobre temas fundamentais de política científica  e tecnológica, bem elaboradas ao longo de todo o ciclo de produção que reportagens implicam, seriam sempre as grandes peças de resistência da revista. E cada uma das quatro editorias deveria dispor sempre de uma grande reportagem com potencial para tornar-se tema da capa que, não sendo a eleita, teria ainda peso suficiente para figurar entre as chamadas da capa. Em termos práticos, a revista deveria ter pelo menos quatro reportagens de fôlego a cada mês. Na edição 47, a capa foi dedicada a um projeto sobre as bases genéticas da hipertensão, que envolvia então um grande número de pesquisadores sob a liderança do professor Eduardo Moacyr Krieger.

Todos esses detalhes e muitos outros foram objeto de inúmeras conversas com Helio de Almeida em seu belo escritório da rua Capitão Prudente, nos Jardins. Às vezes, Maria da Graça Mascarenhas, editora executiva do boletim, e Tania Maria dos Santos, assistente de Hélio, participavam das discussões. Outras vezes, ficávamos nós dois, entre o debate de conceitos, seções e os desenhos que ele ia naturalmente fazendo enquanto falava, numa parceria, de fato, essencial para que o projeto tomasse forma.

Tudo estava bem maduro quando levamos em fins de 1998 o projeto editorial e o projeto gráfico ao diretor científico da Fapesp, José Fernando Perez, que os recebeu com grande entusiasmo, pronto para, a partir disso, apresentar a proposta da revista ao conselho superior da Fapesp. Tínhamos algumas alternativas ligeiramente diferentes para a logomarca do título da publicação, já então devidamente registrado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Na diretoria científica fez mais sucesso a letra vazada de uma das propostas. Não era a que mais gostávamos e adiante evoluiríamos, com a concordância geral, para a logo de letras cheias e visualmente mais limpa e elegante que a revista ostenta ainda hoje, no frescor de seus 20 anos recém-comemorados.

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