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Uma aventura sob medida: a construção da Pesquisa Fapesp – Capítulo III
Divulgação científica

por | 25 jul 2019

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No começo de 1996, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) podia exibir com orgulho uma espécie de atestado informal de instituição detentora do melhor sistema de avaliação de projetos de pesquisa científica do mundo. O título, digamos assim, fora concedido por Daniel H. Newlon, diretor do Programa de Economia da National Science Foundation (NSF), poderosa agência de fomento à pesquisa dos Estados Unidos. “Em minha opinião, nenhuma agência financiadora, incluindo a National Science Foundation, realiza um trabalho melhor no financiamento à pesquisa do que a Fapesp”, declarara ele numa conferência internacional em Washington, em maio do ano anterior, ressalvando que falava em seu próprio nome e não oficialmente pela NSF.

“Demonstração de reconhecimento similar já fizera a Science, em sua edição de fevereiro de 1995, numa reportagem sobre ciência no Brasil, onde o sistema de análise aparecia como uma das razões para os abertos elogios dirigidos à Fapesp”, informava o Notícias Fapesp 5, edição dezembro de 1995/ janeiro de 1996, que, com suas 12 páginas, quase se poderia chamar de alentada, comparativamente ao magro boletim inaugural. Entretanto, aqui vão correções indispensáveis a posteriori: primeiro, não era a edição de fevereiro, já que a Science, revista científica das mais importantes do mundo, editada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), é semanal, não mensal. Tratava-se da edição 5199, volume 267, de 10 de fevereiro de 1995, que trazia um extenso e extremamente animador conjunto especial de reportagens sobre a ciência na América Latina, incluindo, claro, o Brasil, na primeira metade dos anos 1990. Em segundo lugar, e atendendo a um justificável vezo editorial: não fica bem usar “onde” para fazer referência a “reportagem sobre ciência”, correto mesmo teria sido usar a expressão “na qual”.

A propósito, o belo editorial da revista naquela edição, assinado por Daniel E. Koshland Jr., carregava por título exatamente Science in Latin America, e era todo ele dedicado ao trabalho de fôlego de um grupo de repórteres que perscrutara a produção do conhecimento científico, do México ao Uruguai, para contar aos leitores o que melhor avançava no continente sobre o qual, enfim, sopravam os ventos estimulantes da democracia. Dizia ele em seu segundo parágrafo:

“Muito mudou na América Latina nos anos 1990. Governos democraticamente eleitos substituíram os mandatários militares da década de 1970, e economias florescentes dissiparam as crises econômicas dos anos 1980. Há sombras, sem dúvida, como a rebelião no sul do México e a instabilidade na economia do país. Mas como toda a América Latina toma medidas em direção ao bem-estar econômico e político, a Science decidiu que era hora de ver como a ciência está se saindo. Para o povo da região, a questão é crucial. O crescimento econômico futuro dependerá, assim como no mundo desenvolvido, de uma base de competência científica e técnica. Para os cientistas do resto do mundo, a América Latina – uma região com 20 países e quase 450 milhões de pessoas – é uma vasta fonte potencial de poder intelectual e recursos.”

Tempos luminosos, aqueles! A leve alusão a esse trabalho da Science no Notícias Fapesp de certa maneira resultava de o boletim conter, pela primeira vez, uma notícia diretamente ligada à diretoria científica da fundação, baseada em entrevista do diretor científico, o físico e professor da USP José Fernando Perez.

A edição 5 foi, na verdade, uma espécie de micro relatório de atividades da instituição em texto jornalístico, com tabelas, gráficos, uma série de dados relativos à expansão da concessão de bolsas e auxílios, orçamento e descrição dos novos programas. Por isso mesmo representava uma oportunidade para que, finalmente, eu me aproximasse da diretoria científica – quem poderia falar com mais propriedade sobre o funcionamento do coração da agência, ou seja, o processo de submissão, julgamento, aprovação e concessão de financiamento aos projetos de pesquisa senão seu diretor científico?

E ali, naquela diretoria estava – e eu o sabia – a chave do cofre da abundante matéria prima para notícias relevantes de ciência e tecnologia que facilitaria imensamente o cumprimento do plano de divulgação aprovado pelo Conselho Superior em novembro de 1995. Resultados ainda inéditos de pesquisa científica de alta qualidade – ou ao menos com publicação restrita aos papers ou artigos científicos – constituíam essa matéria prima de fazer brilhar os olhos de qualquer jornalista de ciência bem formado.

A chamada de primeira página “Assessores ad hoc são a pedra angular da diretoria científica” levava à página 6, onde se dava a palavra a Perez. Sob o título “Assessores viabilizam sistema de análise pelos pares” e após as explicações de que, ante a estrutura extremamente enxuta da diretoria científica poderia parecer mágica sua capacidade de examinar milhares de projetos por ano (mais de 12 mil em 1995), ele dizia nada haver de mirabolante nesse desempenho. Isso porque o pequeno grupo que compunha a DC estava apoiado “numa base singularmente espraiada, constituída por mais de seis mil pesquisadores: os assessores ad hoc da Fapesp”. Assim, dizia o diretor científico, “a verdadeira ‘figura mágica’ no processo de análise do mérito das solicitações é o assessor”. É ele quem “viabiliza o sistema de análise do mérito pelos pares”. Bastante extensa, a notícia detalhava toda a estrutura da DC e seu modus operandi, destacando que “pesquisadores – e nunca burocratas – examinam para a Fundação as propostas de outros pesquisadores. Esse sistema implantado há três décadas e continuamente aperfeiçoado é, certamente, um dos componentes importantes da credibilidade e do prestígio nacional e internacional desfrutados pela Fapesp”, dizia Perez.

A par dessa primeira demonstração de sensibilidade política que configurava o elogio aos cerca de 6 mil pesquisadores de São Paulo, de muitas outras partes do Brasil e do exterior, que então constituíam a base de assessores da Fapesp – afinal, era e é gracioso o julgamento por pares ou peer review, aquela altura um sistema menos conhecido que hoje pelo público em geral –, havia um segundo toque político na fala de Perez. E era justamente destacar o respeito internacional que a Fapesp granjeara, em larga medida por seu sistema de avaliação de projetos, a cargo essencialmente da diretoria científica.
Se turbulências de maior monta têm sido em geral raras ao longo da história da Fapesp, e a briga pública em torno da eleição de um representante dos institutos de ensino superior e de pesquisa do Estado para o Conselho Superior, a que fizemos referência no capítulo anterior, é uma dessas raridades, pequenas tensões e disputas de poder são absolutamente normais no cotidiano das instituições, por mais bem montadas e eficientes que elas sejam. E decerto a Fapesp não estava infensa a isso. Assim, em 1995 e começo de 1996 era perceptível no ambiente uma certa tensão entre diretor presidente e diretor científico em torno essencialmente das definições e modelos dos programas novos de financiamento à pesquisa de inovação tecnológica. A percepção dessa eletricidade, entretanto, não poderia impedir o esforço de trazer para dentro do Notícias Fapesp o que de mais relevante a Fapesp tinha a relatar à comunidade científica e, de forma mais geral, à sociedade, por meio da mídia, com a qual logo se trataria de começar a estreitar os laços. Por isso foi um passo fundamental nesse sentido, com frutos quase imediatos, como se verá, a entrada da palavra do diretor científico na publicação que estava sob a alçada do diretor presidente.

A efervescência daquele período, segunda metade dos anos 1990 e primeira metade dos anos 2000, a par de fenômenos sociopolíticos auspiciosos como o espraiamento da democracia em amplas regiões do planeta antes submetidas a violentas ditaduras, a que fez referência o editorial da Science sobre a América Latina, tinha sua face também científica. Que se mostraria, entre outros exemplos, no crescimento espetacular e no protagonismo da pesquisa genômica, em termos tanto de produção do conhecimento quanto do avanço tecnológico desse campo. Ou na expansão da compreensão sobre os gigantescos desafios que já estavam sendo postos pelas mudanças climáticas globais e pela necessidade dramática de preservação da biodiversidade do planeta.

No Brasil, abria-se um tempo em que finalmente se tornava possível planejar a longo prazo, condição indispensável aos planos de desenvolvimento da ciência. Depois da alucinação da economia nos anos finais do governo Sarney (1985-1989), com uma inflação na faixa dos 80% ao mês, após o fracasso do inicialmente bem sucedido Plano Cruzado, do Plano Bresser e do Plano Mailson, depois da política de confiscos e terra arrasada do governo Collor, “o Brasil finalmente tinha moeda, tinha ambiente de estabilidade para planejar”, como lembrou Carlos Henrique de Brito Cruz, o diretor científico da Fapesp, em entrevista recente.

Mas é tempo de dizer dos frutos que o Notícias Fapesp logo colheu ao ligar seu trabalho à matéria prima que poderia buscar na diretoria científica, sobre a qual eu disse saber, recuando um pouco no tempo para contextualizar um tanto esse relato. Em 1992, a Fapesp fazia 30 anos. Finda desde o começo de 1990 minha experiência de editora-chefe da Revista Brasileira de Tecnologia, do CNPq, cujo naufrágio está definitivamente na conta do ex-presidente Collor, eu me encontrava a essa altura editora de Tecnologia da Gazeta Mercantil, com a missão de dar densidade e graça a uma editoria a que poucos atribuíam peso. Por sorte, entre esses poucos estavam o vice-presidente da empresa, Roberto Müller, e o diretor de redação do jornal, Matias Molina, ambos jornalistas extraordinários. Uma tarde Molina me chamou e mostrou-me uma carta que o ex-governador Franco Montoro (1983-1987) escrevera ao presidente da empresa, Luís Fernando Levy, falando dos 30 anos da Fapesp, efeméride que merecia em seu entendimento ser noticiada dada a grande importância da instituição para o desenvolvimento de São Paulo, em suas três décadas de existência.

— Vamos tratar disso, mas não vamos dar notícia de aniversário. Queria que você descobrisse uma meia dúzia de projetos para os quais a Fapesp deu recursos e cujos resultados foram muito importantes para São Paulo em qualquer campo.
— Para quando?
— Tome o tempo que for necessário.

As palavras com certeza não são exatamente as mesmas que trocamos naquela tarde, mas era esse o espírito da coisa. Foi boa e necessária a magnanimidade de Molina quanto ao tempo para a execução da tarefa, altamente estimulante para mim, porque precisei de muitos dias para descobrir os assuntos que escolheria e os pesquisadores que entrevistaria. Por muitas razões, e a primeira delas era que a Fapesp não tinha nenhum profissional de comunicação para auxiliar na busca que eu deveria empreender. Até havia uma Gerência de Informação e Comunicação, mas as palavras nomeavam então outras competências, muito alheias ao universo jornalístico.

Assim, o então diretor científico da Fapesp, Flavio Fava de Morais, pela razão de ter contato direto e contínuo com os pesquisadores responsáveis pelos projetos de pesquisa que seu setor aprovava, e o então diretor administrativo, Joaquim José de Camargo Engler, sem cuja assinatura nenhum recurso era liberado para os projetos, ambos professores da USP, foram as minhas fontes para chegar às personagens certas. Contei en passant essa história na revista Pesquisa Fapesp, quando dos 50 anos da Fundação. Ali lembrei que um dos assuntos de que tratei foi a pesquisa do cancro cítrico, cujo controle fora tão fundamental para o desenvolvimento da citricultura paulista.

Era por isso que eu tinha certeza de que sem a estreita participação e colaboração da diretoria científica jamais se faria divulgação da Fapesp para valer ou um informativo de alto valor jornalístico sobre a mais relevante produção científica desenvolvida no estado de São Paulo. Da aproximação com Perez veio a decisão de publicar sempre que possível, a partir do número 6 , uma reportagem sobre algum relevante projeto temático. A primeira “Botânicos revelam a riqueza da flora paulista”, tratava da chamada flora fanerogâmica do estado de São Paulo. Ficou curioso? Quer saber mais? Veja em https://revistapesquisa.fapesp.br/1996/02/01/folheie-a-ed-06/. A reportagem trazia um Box sobre o que eram os projetos temáticos.

Em seis anos, 194 projetos apoiados

A partir desta edição, o Notícias FAPESP publicará, sempre que possível, resultados de projetos temáticos. Esses projetos distinguem-se dos demais apoiados dentro da modalidade tradicional de Auxílio à Pesquisa pela abrangência da pesquisa proposta, pelo padrão de experiência exigido das equipes que os desenvolvem e pela busca de resultados bem definidos, a serem atingidos num prazo máximo de quatro anos.

A linha de projetos temáticos foi criada pela FAPESP em 1990, algum tempo depois de uma série de reuniões de pesquisadores para revisão das estratégias de fomento à pesquisa, que vinham sendo adotadas pela Fundação. Concluiu-se, na ocasião, que o apoio a projetos individuais devia ser mantido, mas, tendo em vista o crescimento e a diversificação da atividade científica no Estado, decidiu-se que era oportuno encorajar projetos desenvolvidos em cooperação, por vários pesquisadores ligados a um ou mais departamentos ou instituições e com financiamento por períodos mais longos.

No ano passado, algumas normas que regem esses projetos foram flexibilizadas, sem prejuízo dos padrões de excelência exigidos. Assim passou-se a admitir que a equipe seja coordenada por um só pesquisador altamente qualificado, em vez de dois. Putra novidade introduzida no sistema foi a possibilidade de apresentação de projetos com a única finalidade de qualificar a equipe para os benefícios adicionais que são prerrogativa dos temáticos (agilidade no processamento de solicitações complementares relativas à vinda de professores visitantes, bolsas, participação em reuniões científicas, etc) sem a solicitação de recursos para desenvolvimento do próprio projeto. E finalmente, duplicou-se o número anual de rodadas, com os projetos podendo ser apresentados quatro vezes por ano (datas limites em 28 de fevereiro, 31 de maio, 31 de agosto e 30 de novembro).

Desde o início do programa, em 1990, até o final de 1995, a FAPESP apoiou 194 projetos temáticos, com a concessão global de R$68 milhões.

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