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A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) estava em visível ebulição em 1996. Ainda assim, certamente ninguém imaginava naquele ano e ao longo do primeiro semestre de 1997, nem mesmo os responsáveis mais diretos pelo futuro feito, que ela iria provocar um acontecimento de monta em sentido lato, um forte sacolejo, se quisermos, no modo de fazer e nas ambições dos projetos científicos elaborados no Brasil.
E não só nos projetos: o acontecimento espalharia seus efeitos sobre a nascente comunicação da Fundação, de múltiplas formas, alcançaria a cobertura de ciência da imprensa paulista, da mídia nacional e internacionalmente seria tratado com destaque raro na comunicação da ciência e no jornalismo científico. De que estamos falando? Do projeto pioneiro da genômica no Brasil, o da Xylella fastidiosa – em meu olhar, tão poderoso na concepção e nos impactos produzidos que o transformei no motor de minha tese de doutorado, O encontro anunciado: a mídia na construção das imagens da tecnociência brasileira.
Voltemos, no entanto a tempos imediatamente anteriores ao projeto X. fastidiosa. Depois da saída de Oscar Sala (1922-2010) da presidência do Conselho Superior – e da Fundação, por consequência –, quem assumiu essa posição, em agosto de 1995, foi Francisco Romeu Landi. Professores ambos da Universidade de São Paulo (USP), Sala era integrante de uma reconhecida geração de brilhantes físicos brasileiros — entre os quais César Lattes, Roberto Salmeron, Marcelo Damy de Souza, Mário Schenberg e Jayme Tiomno –, quase todos opositores do regime nos anos da ditadura militar (1964-1965), o que levou alguns ao exílio, e Landi era engenheiro respeitado entre seus pares, colega de turma do então governador Mario Covas e ex-diretor da Escola Politécnica da USP.
O novo presidente ficaria, no entanto, pouco tempo no cargo: Nelson de Jesus Parada estava deixando a função de diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da Fapesp (CTA) ao fim de sua primeira gestão, sem intenção de disputar um segundo mandato, e Landi, afeito a funções executivas, propôs ao Conselho Superior, que naquele momento presidia, incluir seu nome na lista tríplice de candidatos ao cargo que seria enviada ao governador. O Conselho naturalmente acolheu a postulação e a votação, em 31 de julho de 1996, o pôs no topo da lista.
Apenas seis dias depois, ele foi nomeado diretor presidente pelo governador Mário Covas. O Conselho Superior teria agora a incumbência de escolher seu novo presidente. A lista tríplice para tanto foi votada em 28 de agosto e em 3 de setembro Covas já nomeava o primeiro da lista que lhe fora encaminhada: Carlos Henrique de Brito Cruz, o mais jovem dos conselheiros da Fundação e já dono, àquela altura, de um currículo respeitável como pesquisador e gestor.
Brito Cruz tornara-se membro do Conselho Superior em agosto de 1995, na cota dos seis conselheiros da Fapesp de livre escolha do governador do Estado – outros seis resultam de escolha da comunidade científica. Passava a ocupar a vaga deixada por Oscar Sala. No mesmo ato, Covas nomeara para a vaga deixada pelo economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor da Unicamp e ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico de São Paulo (governo Orestes Quércia, 1987-1990), o então secretário adjunto da mesma Secretaria, Mohamed Kheder Zeyn. Brito tinha então 39 anos, encontrava-se na função de pró-reitor de Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), depois de ter sido diretor do Instituto de Física Gleb Wathagin (1991-1994).
Formado engenheiro pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), mestre e doutor em física pela Unicamp, perto dos 30 anos Brito fora por um ano e meio visitante residente nos Bell Labs, então vinculados à AT&T (hoje, à Nokia), e certamente essa experiência teve influência duradoura na maneira notavelmente balanceada com que sempre lidou com o binômio ciência & tecnologia. Esse equilíbrio lhe permitiu, em distintos momentos e mantendo uma coerência essencial, fazer pesar ora sua defesa da busca livre do conhecimento – reconhecendo, inclusive, o direito legítimo de cientistas terem assegurada a possibilidade de explorar mesmo as ideias aparentemente mais loucas e delirantes –, ora o investimento decisivo na inovação tecnológica e, com mais frequência, a combinação criativa entre esses polos.
Em sintonia fina com José Fernando Perez, o entusiasmado diretor científico em relação a quem todo adjetivo sempre soa um tanto insuficiente – dada a impressionante intensidade de seu estilo dinâmico –, o novo presidente teria um papel fundamental no desenvolvimento da comunicação da Fapesp, que passara à responsabilidade direta de Landi, o novo diretor presidente da Fundação. Aliás, de forma geral o Conselho Superior sob a liderança de Brito Cruz mostrava-se favorável aos desdobramentos que iam sendo propostos dentro da política de comunicação, com destaque para seu vice-presidente, o historiador José Jobson de Andrade Arruda, declaradamente um entusiasta dos avanços debatidos. E uma das raras vozes de oposição nesse sentido, por razões não muito claras, era a o conselheiro Mohamed Zeyn.
Expansão e consolidação
As reportagens sobre os projetos temáticos no Notícias Fapesp, a partir da edição 6, vão permitir que se vá a pouco e pouco oferecendo um olhar panorâmico sobre o cenário da pesquisa e de seus líderes no estado de São Paulo. Os estudos sobre doença de Chagas, as estratégias inteligentes de vacinação no estado, a pesquisa da leprose dos citros que garantiu prêmios nacionais e internacionais a Victória Rossetti, os micronutrientes e microelementos tóxicos com seus impactos na agricultura paulista, as especificidades da cultura empresarial brasileira, a repetição da experiência da condensação de Bose-Einstein em São Carlos… Temas muito distintos vão revelando a amplitude da pesquisa em São Paulo.
É já nesse momento que entrevistas, textos e edição, ainda realizados por uma só pessoa a cada mês – eu mesma, trabalhando com grande prazer e liberdade – vão permitindo firmar o que se mostraria como uma das bases fundamentais desse notável experimento editorial que a revista Pesquisa Fapesp iria se tornar: a adesão firme e entusiasmada da comunidade científica paulista, com raríssimas exceções, ao projeto. Anos depois, em 2000, num congresso de jornalismo científico na Argentina, eu sustentaria que a revista assentava-se claramente sobre um tripé, formado pela agência de fomento que a bancava, pela comunidade científica paulista e por um grupo profissional de alto nível composto por jornalistas especializados, designer, fotógrafos, ilustradores e revisores. Não diria nada diferente, hoje.
Na arte do boletim, em gradativa expansão de páginas e tiragens foram se sucedendo Paulo Saloni, Paulo Batista, até que na edição 12 conseguimos contratar os serviços de Waldir Oliveira. Ele fora o editor de arte da Revista Brasileira de Tecnologia (RBT), em sua fase final, por indicação do artista gráfico Hélio de Almeida, a quem procurei no momento em que organizava em São Paulo a redação para a retomada daquela publicação do CNPq, em 1989. Hélio, que adiante viria a ser personagem chave na concepção da Pesquisa Fapesp, me fora apresentado por José Roberto Nassar, meu ex-chefe dos anos em que fora correspondente da revista Exame em Salvador.
Com Waldir Oliveira, a cara do Notícias Fapesp muda de forma sensível. A primeira página, visualmente mais limpa, ganha em impacto, e na edição 20 registramos a alegria de ter nela um trabalho feito especialmente para a publicação por Laerte, àquela altura um artista já consagrado. Seu belo e bem humorado desenho ilustra a manchete “Uma nova tecnologia de produção de mudas de citros livres de doenças”. Também a partir da edição 12, a página 2 passa a ser dedicada a notas curtas, contribuindo para um sentido de mais dinamismo do boletim.
Os avanços visuais, entretanto, não nos livraram de pronto dos enormes problemas gráficos – ou melhor, de gráfica – que enfrentávamos a cada mês. Explico: a Fapesp era obrigada a fazer tomada de preços a cada mês para o serviço de impressão do boletim, e valia exclusivamente o critério de menor preço na escolha da empresa. O problema só seria definitivamente resolvido quando a publicação, já uma revista a essa altura, se tornou projeto especial de pesquisa e divulgação científica da Fundação, submetido a cada ano à avaliação, não de um, mas de três assessores, e, como tal, detentor da prerrogativa de considerar o critério de capacidade técnica a par do critério de preço na contratação dos serviços especializados. De todo modo, a tomada de preços seguiu sendo feita a cada mês.
Daqueles primeiros tempos ficaram-me na memória cenas um tanto hilariantes de eu mesma enfiada em gráficas precárias na periferia de São Paulo, quase sempre em fins de manhãs de sábado, discutindo com o proprietário e arrancando de pequenas máquinas enferrujadas os exemplares às vezes esverdeados do Notícias Fapesp, e saindo com os fotolitos na mão, correndo em busca de uma outra gráfica, igualmente pequena e precária que, por sorte, resolveria rapidamente o serviço.
A par do panorama geral da pesquisa paulista, era a política de ciência e tecnologia de São Paulo, em especial aquela parte conduzida diretamente pela Fapesp, que ia emergindo das páginas do boletim. Anunciavam-se os efeitos do programa – enorme e notável – de recuperação e expansão da infraestrutura dos laboratórios de pesquisa e do acervo das bibliotecas de universidades e institutos do estado a que a Fapesp dera a partida em 1995; contava-se sobre o programa de apoio a jovens pesquisadores em centros emergentes, uma política das mais importantes para a fixação de jovens doutores nas instituições paulistas; detalhavam-se os avanços do programa de apoio à inovação tecnológica em parceria entre instituições de pesquisa e empresas; explicava-se o que cabia no programa de apoio a pesquisas voltadas ao ensino público de primeiro e segundo graus; anunciava-se o programa dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão, os Cepids… E muito mais estava por vir.
De volta à construção jornalística propriamente, é prazeroso lembrar que na edição 15 comecei finalmente a sair da solidão na feitura das entrevistas, elaboração de reportagens e notas. Já não recordo com precisão, mas devo ter convencido o professor Landi de que valeria a pena pagar por um ou outro free-lancer. A Fapesp, com sua limitação estatutária de gastar no máximo 5% de seu orçamento com despesas administrativas, era extremamente rigorosa com investimentos novos, mesmo os muito modestos, a ponto de dispensar tomadas de preço.
Seja lá como tenha sido, na edição 15 aparece no quadro da equipe responsável, “Colaboração: Marcos de Oliveira”. Não está assinada, porque nenhum texto jornalístico era então era assinado, mas a reportagem de sua lavra, na página 4, sob o chapéu “Novos materiais”, carrega o título ousado “Pesquisadores desenvolvem plástico de século XXI”. A manchete de primeira página que remetia à matéria anunciava, “País pode ter em breve tecnologia própria de produção de fibra de carbono”. Marcos de Oliveira seria adiante e até 2018 o editor de tecnologia da Pesquisa Fapesp.
Voltaremos a essa evolução das colaborações e à constituição do corpo jornalístico do Notícias Fapesp no próximo capítulo. Para encerrar, vale registrar que a partir da edição 18, de março de 1997, o boletim se anuncia em sua primeira página como um espaço aberto ao debate sobre a política e os rumos da ciência e da tecnologia em São Paulo e no país. “Nossa intenção é levar, aos leitores deste informativo – em sua maioria, pesquisadores paulistas – , diferentes visões sobre C&T, diferentes opiniões e análises sobre esse vasto tema, elaboradas por políticos, administradores públicos, empresários, cientistas, engenheiros e outras personagens com poder de influência sobre a formulação de estratégias para o desenvolvimento”, diz o texto assinado pelo diretor presidente, Francisco Romeu Landi. Logo abaixo está a importante notícia “Butantan vai produzir vacina contra meningite C”. E na página 3, o artigo de ninguém menos que o governador Mário Covas que abre o debate, “Uma visão de ciência e tecnologia em três versões”.