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Os órfãos da pandemia

Evanildo da Silveira

Mais de um milhão de crianças e adolescentes no mundo perderam um dos pais ou o principal cuidador

Entre 1° de março de 2020 a 30 de abril de 2021, foram registrados em todo o mundo mais de 145 milhões de casos de covid-19, que causaram mais de três milhões de mortes. Esta é a pandemia visível, conhecida por todos. Mas há uma outra silenciosa, oculta: a de crianças, de até 17 anos, que ficaram órfãs. No mesmo período, de acordo com um estudo publicado no periódico científico The Lancet, em 31 de julho, cerca de 1,13 milhão perderam um dos pais ou seu principal cuidador, principalmente avós, mortos pelo vírus Sars-CoV-2. No Brasil, esse número chegou a pelo menos 130.363. As consequências para a vida delas podem ser graves e duradouras.

Ainda de acordo com o estudo, coordenado por Susan Willis, do Centro de Controle de Doenças, dos Estados Unidos, dos 21 países analisados, o Brasil era o terceiro com maior número de órfãos da covid-19, com 2,4 para cada mil brasileiros menores de idade. A situação era mais grave no Peru, o primeiro colocado, com 10,2 por mil, seguido pela África do Sul, com 5,1. Os autores do trabalho alertam, que “evidências de epidemias anteriores mostram que respostas ineficazes a essas mortes, mesmo quando há um pai ou cuidador sobrevivente, podem levar a resultados psicossociais, neurocognitivos, socioeconômicos e biomédicos deletérios para as crianças”.

O psicanalista Christian Dunker, professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), alerta que as consequências imediatas de uma orfandade, ainda que variem conforme a idade em que isso acontece, de crianças muito pequenas até as que tiveram uma primeira experiência lembrável desse encontro com os pais, é sempre potencialmente traumática. “A perda precoce inverte uma expectativa de cuidado e segurança esperada do outro”, explica. “Isso pode dificultar a formação de laços de confiança intersubjetiva no futuro”, explica.

De acordo com a doutora em Enfermagem, Regina Szylit, diretora da Escola de Enfermagem da USP, as consequências da orfandade dependem dos recursos que estiverem disponíveis para a criança lidar com a perda e o luto. “A maneira de lidar com o sofrimento de forma construtiva não é evitá-lo, e sim favorecer a conversa, compartilhando os sentimentos”, diz. “O órfão percebe quando ocorreu uma morte, e não falar sobre ela pode provocar medo, insegurança. O apoio psicossocial e econômico pode ajudar as famílias a cuidar de crianças sem cuidadores.”

Ela reconhece, no entanto, que falar de morte com crianças não é fácil. “É difícil explicar uma coisa tão dolorida, que nós mesmos não entendemos muito bem, mas é preciso falar”, diz. “Uma pessoa próxima da criança, que tenha um vínculo com ela, poderá contar sobre a morte do(s) pai(s). Se for alguém próximo, que também esteja sofrendo muito, é preciso se acalmar primeiro.”

De acordo com Regina, não existe cartilha para contar, mas se sabe que o uso de uma linguagem simples, que a criança entenda, ser honesto e usar a palavra morte é importante. “As metáforas como ‘foi viajar’ ou ‘dormiu para sempre’ não funcionam tão bem. A sinceridade é primordial com as crianças. Elas precisam passar pelo luto também, por menores que sejam, elas conseguem entender que aquela pessoa não volta mais. A participação dela nos rituais de velório, enterro, cremação e até mesmo a visita a um parente doente é uma questão que foi modificada pela pandemia. Os rituais podem ajudar no processo do luto.”

A cientista social Glaucia Marcondes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Antropologia e doutora em Demografia, diz que além do abalo provocado por mortes inesperadas de pessoas que desempenham ou desempenharão papeis importantes na vida familiar, a orfandade pode acarretar mudanças significativas na rotina diária de cuidados e estabelecer novos responsáveis pelas crianças. “Dependendo da idade, há demandas específicas de cuidados, maior ou menor dependência de presença física e de tempo gasto para a realização de atividades”, explica. “Esse rearranjo da vida de forma imprevista, urgente e necessária pode desencadear uma série de tensões, preocupações, pressões financeiras e emocionais para todos os envolvidos.”

Para crianças que permanecem sob os cuidados e a rotina cotidiana do mesmo grupo familiar anterior à morte dos pais, no entanto, o rearranjo das responsabilidades e dos cuidados pode ser um processo com menos tensões e alterações na vida e nas referências das crianças. “Mas para aquelas que tiveram sua rotina modificada abruptamente, foram obrigadas a conviver com pessoas que não faziam parte do seu dia a dia ou que ainda não tinham estabelecido laços de afeto e confiança, o processo pode acarretar maiores dificuldades”, diz Glaucia. “Pode se cercar de uma série de estressores que podem impactar na interação social, na saúde, no aprendizado.”

As consequências de se ficar órfão vão muito além do momento da morte dos pais ou cuidadores. Elas podem ser duradouras. “A perda acaba sendo um marco, que muitas vezes traz uma experiência de profunda vergonha”, diz Dunker. “Muito frequentemente a pessoa interpreta que ela foi deixada, porque o outro não gostava tanto assim dela, que era menos amada. Isso produz uma pergunta, um pouco inevitável: ‘o que eu fiz para que isso acontecesse? O que eu tenho ou não tenho para que isso acontecesse?’”

Muitas vezes a pessoa sabe que ela não fez nada, que isso foi um acontecimento fortuito, que não poderia ter sido evitado. Mas mesmo assim, continua com o sentimento de que “bom, eu fiz alguma coisa então eu tenho vergonha” ou “então eu tenho culpa”. E isso vai, às vezes, se confirmando na experiência de vida. “Então, ela vai pra escola, e vê outras que crianças têm pais e ela não”, explica Dunker, “No Dia dos Pais ou das Mães, eles não estão lá. Isso cria um sentimento de que ela não pertence a uma comunidade, dita normal.”

Segundo Glaucia, esse quadro de orfandade pode ser mais grave em um contexto de pandemia, cercado de incertezas para grande parte das famílias sobre a manutenção dos empregos, do sustento financeiro, da própria preservação de boas condições de saúde, das restrições de circulação, convivência e de amplo contato social. Isso pode tornar ainda mais difícil os processos de rearranjo familiar e da vida das crianças que perderam seus pais. “É inegável que um dos efeitos desse contexto é que mortes desse tipo, que são em grande medida evitáveis, representam perdas inestimáveis tanto para as vidas individuais, para as pessoas que perderam seus entes tão queridos, crianças que perdem seus principais referenciais afetivos e de suporte quanto para toda a sociedade, que vê a ampliação das vulnerabilidades sociais de um contingente importante delas e de suas famílias”, explica.

Regina, por sua vez, lembra que ainda não se conhece a dimensão das consequências da pandemia em um país. “Evidências de epidemias ou catástrofes anteriores mostram que a perda de pais ou cuidadores aumenta o risco de estresse pós-traumático e depressão”, diz. “Essas consequências podem ser agravadas pelo isolamento relacionado ao distanciamento social imposto pela pandemia, como fechamento de escolas e impossibilidade de participar dos rituais e práticas de luto. É essencial apoiar abordagens eficazes de luto, incluindo grupos de apoio psicossocial, capacitando cuidadores sobreviventes para facilitar o luto adaptativo, comunicação aberta na família e escolas.”

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