Tessa Moura Lacerda
Sobre nossos mortos, de ontem e de hoje, e uma secretária de cultura
O nome de cada uma das 12.400 vítimas fatais do novo coronavírus está escrito em um memorial virtual. Lembrar cada um desses 12.400 nomes é lembrar que esse número gigantesco representa pessoas que perderam suas vidas, e que toda vida importa. Nas últimas 24 horas, foram 881 mortes. O projeto “Inumeráveis” nasceu para lembrar que por trás dos números, há pessoas, e se define como um “memorial dedicado à história da cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil”. A iniciativa, inicialmente abraçada por jornalistas e artistas quando havia 400 nomes homenageados, foi do artista Edson Pavoni.
A tristeza dessas mortes é ampliada pela condição imposta pelo vírus – que a ciência está estudando ainda, mas que sabemos que se propaga com uma velocidade enorme e se beneficia de aglomerações. São mortes solitárias e que não podem ser choradas pelos familiares e amigos em cerimônias de despedida, ritos que fazemos para viver o luto pela perda de uma pessoa querida. Sabe-se que pelo menos desde 300.000 anos hominídeos enterravam seus mortos. E embora não realizem funerais e cerimônias de despedida, os animais também demonstram dor e tristeza pela morte de seus iguais – golfinhos, elefantes, gatos e macacos estão entre aqueles que demonstram sofrimento com a morte de semelhantes. Nós, humanos, desenvolvemos ao longo dos séculos maneiras peculiares de homenagear nossos entes queridos a fim de assimilar a própria perda. Cerimônias e solenidades para celebrar a vida das pessoas que nos deixam. Será isso que nos faz humanos? A cultura? O que torna humana uma pessoa?
No último dia 7 de maio, a secretária de cultura do atual governo, Regina Duarte, numa demonstração de absoluta insensibilidade – muito condizente, aliás, com o governo Bolsonaro – pisou na cultura, pisou nos nomes de grandes artistas brasileiros, muitos vitimados pelo Sars-CoV-2 ou pela profunda decepção com o estado atual de coisas, pisou nas vítimas fatais do coronavírus no Brasil (naquele momento, havia 9.190 mortos), e em todos nós que nos importamos com essas mortes. Vivemos num país em que o presidente conduz a população para a morte com uma política genocida que nega a imensa gravidade da situação imposta por uma pandemia mundial, com o absurdo argumento de que “o país não pode parar”, sob o qual se esconde não apenas as imensas desigualdades do Brasil, mas o total desprezo, e ódio mesmo, de nossas elites pelo conjunto da população.
Aldir Branc, Flávio Migliaccio, Dona Neném, Daysi Lúcidi, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Rosa, Moraes Moreira, Daniel Azulay: questionada sobre por que a Secretaria de Cultura não prestou a devida homenagem a essas pessoas que tanto fizeram pela cultura do país, Regina Duarte disse que não quer carregar um cemitério nas costas. E exortou as pessoas a serem leves, dizendo ser leve, por estar viva!
O que nos faz humanos? A memória? A capacidade de lembrar e de transformar a memória em história? O que torna uma pessoa humana?
Regina Duarte diz que não quer olhar para trás. Ora, se o que dá sentido ao presente é o reconhecimento do passado e as narrativas, que são variadas, a respeito desse passado, então não existe presente solto no nada, o presente ganha significado também pela nossa maneira de narrar o passado, de lembrar o passado. Sem isso, qualquer projeto de futuro se torna míope. A cultura é também uma possibilidade de criação e rememoração do passado.
Mas a secretária de cultura não quer olhar para trás, nos diz para olhar para frente, e canta, durante a entrevista, “de repente é aquela corrente para frente!” Depois pergunta “não era bom quando a gente cantava isso?”. E sem esperar a resposta, gargalha. Uma gargalhada que quer se sobrepor ao comentário do repórter da CNN, que insiste, explicando que foi um período duro de nossa História, no qual houve muitas mortes e houve tortura. Regina minimiza a questão da tortura, como minimiza o fato de que Bolsonaro homenageia torturadores desde antes de ser eleito presidente. E acusa os repórteres: “vocês estão desenterrando mortos, vocês estão carregando um cemitério nas costas, vocês devem estar cansados. Fiquem leve, bola para frente.” Regina minimiza o fato de que, no mínimo, 20 mil pessoas sofreram tortura durante a ditadura civil-militar de 1964-85. Gargalha na cara dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, muitos dos quais jamais puderam enterrar seus mortos – assassinados sob tortura, jogados em valas comuns, jogados de avião no mar…
Essa gargalhada, expressão de um sentimento inominável, de uma crueldade sem tamanho, é a mesma que este governo oferece a sua população, quando deliberadamente condena as medidas sanitárias que governadores e prefeitos tentam adotar seguindo as recomendações da Organização Mundial de Saúde.
A ignorância deliberada em relação ao passado, como prega a secretária de cultura (surpreendentemente, de cultura!), explica, mas jamais justificará, o descaso a que estamos jogando enquanto conjunto da população brasileira durante esta pandemia mundial. Hoje o Brasil é o epicentro da pandemia, como mostra um estudo realizado por pesquisadores brasileiros da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Hoje 881 pessoas morreram vitimadas por esse novo vírus. 12.400 é o número oficial de mortos por Covid no Brasil, em 12 de maio de 2020.
O que torna humana uma pessoa? A sociedade civil, apesar do governo, tenta manter a memória de cada uma dessas pessoas que perdemos. Não estamos desenterrando mortos, mas chorando o fato de não poder enterrá-los. E são muitos! Assim como choramos pela impossibilidade de realizar o luto pelos mortos e desaparecidos políticos. Essas mortes, durante a ditadura, durante a pandemia, são tragédias sociais e políticas! Ora, um país que nunca soube lidar com os mortos da ditadura, agora minimiza as mortes de milhares de pessoas, mortes que são efeito de uma política genocida. A “banalidade” do fato da tortura e, mais que isso, das mortes sob tortura – banalidade, isto é, considerar corriqueiro, aceitável, natural algo que é monstruoso e desumano – mostra sua face agora no desprezo e na diminuição do significado dessas 12.400 mortes no presente. É quase inacreditável.
Não esqueceremos! O nome de cada uma dessas pessoas está escrito, a história de cada uma dessas pessoas precisa ser contada. Talvez precisemos cantar uma outra música, esta de Chico Buarque, “Apesar de você…”, e insistir numa narrativa do passado, para ressignificar nosso presente e ampliar, quem sabe, as possibilidades de futuro.
Tessa Moura Lacerda é professora de Filosofia da USP e filha do militante político, assassinado na ditadura, Gildo Macedo Lacerda (1949-1973).