por Laura Araújo
Science Film Festival Brasil exibe filmes sobre equidade de gênero na ciência e propõe debates com crianças em ações nas escolas
A ciência manda avisar: procuram-se meninas com vontade de pesquisar – esse é o mote da quarta edição do Science Film Festival, aberto em 5 de outubro no Instituto Goethe, em São Paulo, com a exibição de dois filmes, seguida de um debate com cientistas mulheres. Até 20 de dezembro, o festival, que neste ano mira a equidade na ciência, exibirá 35 filmes, produzidos em 21 países.
“Esse tema não é específico da edição brasileira, é internacional. Entretanto, caiu muito bem aqui porque o assunto tem muito a ver com nossa realidade”, diz Beth Carmona, diretora da empresa Midiativa, organizadora do festival no Brasil, em parceria com o Goethe. Ela, lembra que. “o conhecimento científico faz parte da vida e do cotidiano” e destaca a potência transformadora de uma ciência construída de forma equânime. Quanto mais mulheres e outros grupos minoritários se apropriarem desse lugar, observa, “tanto mais diversa será a ciência e suas proposições”.
Os filmes selecionados abordam, a par da questão feminina, a representatividade de grupos tradicionalmente sub-representados no ambiente científico, como negros, indígenas e outras minorias. Na abertura do festival foram exibidos dois curtas: Cósmica, produzido na Paraíba durante a pandemia de Covid-19, traz uma menina muito atenta que escreve uma carta ao planeta Terra. Seus temas são emergência climática, o ser humano como agente desse cenário contemporâneo e cuidado com espécies animais e vegetais, ao mesmo tempo em que reflete sobre as dificuldades que enfrenta por ser uma garota – de fato, um ser extraterrestre que escolheu a forma de uma pequena homo sapiens em sua passagem por nosso planeta. São desafios pequenos aos olhos da jovem visionária, para quem todas as crianças são guardiãs da Terra.
Já o curta-reportagem “Mind The Gap (Cuidado com o Vão – (Não) Modelos)”, de Anna Sacco, produção alemã, aborda a predominância de homens sobre mulheres em todas as etapas da trajetória científica, ao redor do mundo, uma diferença que se torna mais e mais aguda à medida que se sobem os degraus da carreira. O filme também chama a atenção para as barreiras à atuação feminina em ciências exatas e tecnologia, mas constata que esse mundo está mudando.
Os dois filmes estimularam as reflexões das cientistas Carolina Brito, Lilian Bacich e Luciana Costa no debate que se seguiu, coordenado por Maria Guimarães, editora executiva de mídias digitais da revista Pesquisa Fapesp. As três pesquisadoras convergiram na visão de que as mulheres precisam quebrar uma série de mitos para prosperar em carreiras científicas, a começar por um dos mais arraigados em nossa cultura e que mais cedo aparecem na vida escolar, ou seja, o de que meninas naturalmente não costumam ir bem em matemática.
“Trata-se de uma barreira cultural, que começa no ensino infantil”, diagnosticou Lilian Bacich, coordenadora de pós-graduação em metodologias ativas do Instituto Singularidades. “A escolha de profissão de uma jovem no ensino médio, na verdade, se dá muito antes, e começa com o estímulo das professoras dos anos iniciais do ensino fundamental que, por serem mulheres, muitas vezes carregam elas próprias as marcas do machismo estrutural que afasta as mulheres das hard sciences”, observou.
Física de destaque na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e coordenadora do programa de extensão “Meninas na ciência”; Carolina Brito destacou que um estudo já demonstrou que o “ponto de virada” da mentalidade feminina sobre a capacidade intelectual do próprio gênero se dá entre os cinco e os sete anos de idade. Se nos primeiros anos escolares associam inteligência a mulheres, pouco tempo depois já têm a crença de que uma pessoa intelectualmente capaz será sempre um homem. “Existe uma perda de autoestima muito cedo. E vão se criando mitos, como o de que quem gosta de matemática é gênio. Por que uma guria que foi levada a acreditar que é ‘burrinha’ vai ter interesse em uma carreira desse tipo?”, questiona.
Arqueóloga pela Universidade Federal de Sergipe (UFSE) e mestranda em Arqueologia na Universidade de São Paulo (USP), Luciana Costa tomou sua própria experiência para examinar o tema da diferença entre homens e mulheres na carreira científica. Dentro de uma família matriarcal, ela cresceu na periferia de São Paulo sem referências de mulheres que faziam ciência. “Eu tinha dificuldade de sonhar, o que é muito recorrente em espaços como aquele em que cresci. São dificuldades materiais, mas também de perspectiva quanto a acessos para projetar futuros. Por isso os projetos educacionais dentro de escolas públicas, sobretudo os voltados para as meninas, são extremamente importantes, e também libertadores e potentes”, afirmou.
Embora questões estruturais levem tempo para mudar, o próprio fato de a desigualdade de gênero estar em discussão já representa um grande avanço, na visão das pesquisadoras. “Ela é um grande estímulo para as meninas tentarem conquistar espaço e desenvolver o seu papel”, disse Bacich. De acordo com ela, no dia a dia das escolas as meninas costumam ter mais iniciativa em apresentações de eventos, como feiras de ciência. E essa inclinação para a pesquisa e a divulgação do conhecimento pode ser mais bem cultivada, em vez de podada, na medida em que os educadores tenham consciência a respeito do gap de gênero na ciência.
Brito destacou também a parca diversidade em geral da ciência no Brasil. “Além de menos mulheres, existem poucos negros e indígenas, e poucas pessoas do norte do país. A diversidade é pequena e diminui conforme progride a carreira dos cientistas”, alertou.
Costa, que estuda o papel das mulheres no cangaço, destacou que a mudança de padrão quanto à participação feminina na ciência é difícil por possuir raízes muito profundas. “A violência de gênero é enraizada, a inserção das mulheres na educação foi tardia”, disse a pesquisadora, lembrando que as escolas brasileiras foram abertas a alunas do sexo feminino em 1827 por uma lei que, entretanto, não beneficiou meninas indígenas, negras ou escravizadas. “E quando as mulheres brancas chegavam na escola, eram incentivadas a estudar economia doméstica, costura. São questões muito arraigadas”. Segundo a pesquisadora, o fato de ser mulher e negra são fatores que pesam em seu esforço contínuo para demonstrar seu direito a espaço no ambiente acadêmico – inclusive no mundo das escavações arqueológicas, onde poucos imaginam mulheres atuando.
Na percepção de Brito, a consciência coletiva de que novos caminhos precisam ser abertos, e de forma urgente, é cada vez maior. “Até uns anos atrás, as mulheres tinham medo de se alinhar ao feminismo. Eu estive sempre em ambientes masculinos, e via isso como um fato da vida. A ficha caiu quando eu tinha 30 anos e vi, pela primeira vez, dados sobre o ‘efeito tesoura’”. Ela se refere exatamente a como as mulheres são cortadas da carreira acadêmica à medida que progridem. A democratização do ensino superior e a internet foram citadas como agentes de abertura de novas perspectivas para grupos minoritários na ciência.
Serviço
O festival é gratuito, com exibições presenciais e online via inscrição no site do evento. Todos os títulos da mostra estão disponibilizados para acesso sob demanda na plataforma Vimeo e podem ser exibidos em sessões coletivas em cineclubes, salas de aula e outros contextos educacionais. A presença nas escolas é, aliás, um dos principais objetivos do Science Film Festival.