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Emília: o aplicativo de alfabetização feito por meninas

Laura Araújo

Aplicativo representa América Latina em concurso internacional; educadora destaca formação científica e humanística de estudante

Perguntar, formular hipóteses e testá-las: eis o passo-a-passo do método científico, que a paranaense Cecília Zanlorenssi Herold, de 13 anos, já conhece bem. Aluna do Colégio Marista de Maringá (PR), ela é uma das criadoras do aplicativo Emília, premiado pela Universidade de São Paulo (USP) na última edição do Tech Innovation For Girls – Summer School. Realizado entre fevereiro e abril deste ano, o curso de programação, tecnologia e empreendedorismo é promovido pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP São Carlos. Durante o treinamento, as alunas formam equipes e devem desenvolver um aplicativo. Ao final, os melhores projetos são escolhidos para concorrer na etapa internacional do desafio Technovation Girls. Esta é a próxima fase a ser enfrentada por Cecília e suas companheiras de grupo, Catarina, Ana e Alícia.

Se o aplicativo Emília chegou longe é porque vai ao encontro de uma grave necessidade da educação brasileira: amenizar os prejuízos à alfabetização causados pela pandemia. Segundo a ONG Todos Pela Educação, entre 2019 e 2021, o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever aumentou 66,3%, passando de 1,4 milhão para 2,4 milhões. Dados como esse ajudaram o grupo a definir seu objetivo na Summer School, com o acréscimo de que o aplicativo destina-se a pessoas de todas as idades. “A ideia precisou de bastante tempo para ser ‘concluída’, e para isso precisamos de muitas reuniões para chegar a um tópico específico. Escolhemos ajudar pessoas brasileiras que não têm um nível suficiente de alfabetização, já que essa é uma realidade do nosso país”, explica Cecília.

Planejar, testar, executar

O aplicativo foi desenvolvido na plataforma Thunkable, específica para a programação de aplicativos mobile. “O programa usa uma linguagem de blocos bem simples, e Emília foi desenvolvido em aproximadamente dois meses. Para facilitar o trabalho, o dividimos em várias etapas, como pensar o que seria tratado no aplicativo, desenvolver a identidade visual, programar e resolver bugs”, detalha Cecília.

A inspiração para o nome da solução veio da psicolinguista argentina Emília Ferreira. Aluna de Jean Piaget, Emília desenvolveu uma teoria da alfabetização segundo a qual as habilidades de leitura e escrita são construídas de acordo com uma lógica individual, sob influência da escola e da interação social de maneira ampla – um caminho complexo, marcado por avanços e recuos. Suas ideias fortaleceram a compreensão de que o aluno tem um papel ativo na alfabetização, enfatizando o protagonismo do sujeito que aprende. Esta mesma ênfase está por trás do aplicativo. “Nosso principal desafio foi encontrar uma maneira de abordar alguma solução para um problema social, que era o objetivo da TechSchool. Eu espero fortemente que o aplicativo consiga minimizar a taxa de pessoas que são funcionalmente analfabetas nas escolas. Esse é o nosso principal objetivo”, afirma a jovem programadora.

Os caminhos da curiosidade

A estudante Cecília Herold (foto: arquivo pessoal)

Novos desafios levam a lugares inesperados, conta a estudante que, após a experiência na TechSchool, está revendo os planos de entrar na faculdade de Direito. “Eu sempre fui bem em matemática, e participar do workshop me mostrou que existem muitas áreas para serem exploradas. Sempre gostei de jogos, aplicativos e inclusive virei monitora de matemática no colégio”, diz.

Lorena Zanlorenssi conta que a filha de fato sempre teve muita curiosidade pelos “porquês” da vida – um traço fundamental entre cientistas. “Cecília não sossega enquanto não satisfaz a dúvida que a impede de ter uma boa explicação para o que ela quer entender, sempre foi questionadora. Talvez tudo isso tenha sido importante para a inventividade que a levou ao prêmio”, acredita. Para Lorena, a premiação pela USP corrobora que a tecnologia é um universo que as meninas não devem ter receio em ocupar. “O reconhecimento é importante para ela e para todas as meninas que desejam se destacar em áreas assumidas como nichos masculinos. Foi uma emoção muito grande ter acompanhando o anúncio da premiação e a alegria dela e de suas parceiras de trabalho”, recorda.

Além disso, a união entre tecnologia e causa social enchem a mãe de orgulho. “O principal sentimento é a admiração. Primeiro, pela dedicação gigantesca dela durante todo o processo, em aulas, lives, reuniões, gravações, edições, conversas com professoras e reelaborações do projeto. Depois, pela aquisição e aplicação de conhecimentos em tecnologia na abordagem de um problema social tão sério quanto o analfabetismo”, destaca.

Ensinar para crescer

Um caso como o de Cecília e suas parceiras de grupo começa muito antes de um curso ou torneio de tecnologia. O incentivo dos adultos da família e da escola é importante para alimentar a curiosidade e incentivar a autonomia necessárias para levantar questões importantes e traçar soluções. “Permitir e encorajar a curiosidade das crianças é fundamental para que elas aprendam a argumentar, duvidar e buscar respostas. Acreditamos que isso se dá pela disponibilidade em dialogar com nossos filhos, escutá-los”, afirma Lorena.

Janaína Ciboto, professora de Matemática do Colégio Marista de Maringá, reforça o vínculo entre o mundo particular do aluno e a escola na formação científica. “A metodologia utilizada na construção do conhecimento científico estimula as interações discursivas. Desse modo, os conceitos espontâneos e experiências prévias dos alunos não são substituídos por conceitos científicos, mas reestruturados no âmbito da sala de aula”, explica.

O estímulo ao pensamento crítico fomenta conexões entre diferentes áreas do conhecimento, algo fundamental para a formação de alunos que compreendem, valorizam e defendem a ciência. “Outra perspectiva decorrente das interações discursivas arremete sobre a relação do ensino da área de Ciências, Sociedade e Tecnologia (CST) na formação do cidadão, que necessita de autonomia e capacitação para tomar decisões e participar de uma sociedade democrática e pluralista. A consciência crítica se constitui fundamentalmente pela ação acompanhada de reflexão sobre a realidade, promovendo um exercício democrático, crítico, reflexivo e dialógico, com interação social”, define.

Segundo a professora, metodologias centradas no aluno são fundamentais para a relação entre a teoria e a prática. Isso inclui conversas e troca de ideias durante as aulas. “A estratégia metodológica as interações discursivas, que representam o debate entre o grupo de alunos, possibilita esses momentos em que os conhecimentos científicos são organizados. As trocas de ideias possibilitam oportunidades de levar a uma aprendizagem construtiva”, destaca.

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