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Muito além do Ipiranga

Laura Araújo, para o Ciência na Rua

Novo livro de professor da USP explica antecedentes, fatos e desdobramentos da Independência do Brasil; ocasião do bicentenário enseja aprendizados e reflexão sobre o tema

Ao longo de 200 anos, o imaginário brasileiro acomodou a Independência do país a duas principais feições. Para alguns, foi um evento farsesco e artificial, no qual um príncipe português e seus ministros teriam arquitetado a separação entre Brasil e Portugal a salvo de qualquer intervenção popular. Para outros, o dia 7 de setembro de 1822 foi um momento genuinamente heroico e cercado de glória, quando Dom Pedro, espécie de pioneiro do patriotismo, teria libertado o Brasil do domínio estrangeiro. Mas o que aconteceu de fato? Nem uma coisa nem outra, esclarece o historiador João Paulo Pimenta no recém-lançado “Independência do Brasil” (Editora Contexto, 159 páginas). O professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) explica que, para além de narrativas simplificadas, o evento fundante do Estado brasileiro foi resultado de um longo processo que combinou fatores políticos, sociais e econômicos e mobilizou diversos atores e projetos.

“Independência do Brasil” integra a coleção História na Universidade – Temas Fundamentais. Apesar do nome, a história contada por Pimenta vai além do ambiente acadêmico. Não se trata de um livro repleto de notas de rodapé e constantes referências a outros autores e obras – a bibliografia está concentrada nas páginas finais –, e sim de uma narrativa fluida e natural. Ainda assim, o autor mantém à vista do leitor os critérios de se fazer história de forma acadêmica: objetividade, olhar crítico sobre as fontes e prudência na aplicação de conceitos estranhos à época estudada, entre outros. Em seis capítulos, o livro resgata o contexto nacional e internacional em que a Independência do Brasil viria a acontecer, o processo de preparação e viabilização da Independência e a consolidação do Estado brasileiro. Historiografia e memória construídas ao redor da Independência também são alvo de análise, em uma narrativa que se desenrola até momento presente. Neste bicentenário de Independência, o que o Brasil faz com o conhecimento do seu passado?

Um mundo transformado

Brasil não: América Portuguesa. Por mais de três séculos foi esta a denominação correta do nosso país. E, se não existia Brasil, tampouco existiam brasileiros. O que havia por aqui eram portugueses nascidos na América e que, quando muito, identificavam-se com a capitania de origem. Na Europa, reis detinham o poder absoluto. Este cenário mudaria em fins do século XVIII, naquilo que o historiador Eric Hobsbawn denominou Era das Revoluções. Pimenta toma este conceito para explicar o que eram o Brasil e o mundo há pouco mais de 200 anos, antes que a Independência encontrasse condições e meios para ocorrer. O Iluminismo, a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e os movimentos de independência em colônias francesas do Caribe como o Haiti foram diferentes elementos do mesmo processo revolucionário. Ao fim dele, o mundo ocidental se veria profundamente modificado. Instituições políticas e econômicas até então sagradas, como o poder absoluto dos reis e o colonialismo, começaram a ser questionadas e extintas.

Para parte do senso comum brasileiro, a população local da época seria uma massa indiferente a acontecimentos políticos. Mas a colônia portuguesa nas Américas nada tinha de alienada, ensina o autor. A Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana, ambas em fins do século XVIII, ressoaram os movimentos e revoluções em além-mar. Ainda que os brasileiros engajados da época não se enxergassem como um povo à parte da metrópole ou exigissem a cabeça de rei e senhores, eles estavam longe de ser representantes de um povo alienado. “A despeito das diferenças de suas histórias e memórias, tanto a Inconfidência Mineira quanto a Baiana se conectaram com a Era das Revoluções, elaborando projetos, tensões e conflitos típicos de seus contextos coloniais, e assim contribuíram para uma abertura política de horizontes de futuro”, escreve o autor. O que tampouco significa, como tentou se imputar depois, que alguma dessas agitações políticas tenha “ensaiado” a Independência.

Mas seriam as Guerras Napoleônicas o fator a impactar frontalmente os caminhos do Brasil. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 mudaria para sempre as feições da antiga colônia e, com o rei, um Estado europeu migrou para o continente americano. A abertura dos portos a navios ingleses enterrou o que seria conhecido como sistema colonial, e, em 1815, a antiga configuração na qual Portugal era um reino e o Brasil sua colônia foi extinta, dando lugar ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A essa altura, a Europa tentava recompor poderes após a queda de Napoleão Bonaparte. Em Portugal, ainda em 1814 o assunto do retorno da corte voltou à tona. Atores políticos portugueses consideravam que a pátria fora deixada de lado em favor do Brasil e, em meio à crise econômica, começaram a questionar a dimensão do poder real. Um movimento na cidade do Porto, em 1820, forçou a coroa a tomar uma decisão: comerciantes, militares, funcionários do Estado e profissionais liberais exigiram o retorno do rei e a convocação de uma assembleia constituinte.
Em 1821, Dom João de fato retornaria, deixando o filho no papel de regente em terras brasileiras. No entanto, uma série de fatores, entre eles decisões das Cortes de Lisboa contrárias aos interesses dos “portugueses do Brasil”, acabaram estimulando um projeto alternativo de poder e organização política: um governo autônomo, com sede no Rio de Janeiro e centralizado na figura de Dom Pedro. Tal mudança de paradigma, sustentada por motivações políticas e econômicas, levou anos para se consolidar.

Protagonismo popular e plural

Pimenta defende que o dia 7 de setembro e a famosa manifestação de Dom Pedro às margens do riacho do Ipiranga são um marco da memória, e não da história. Os desentendimentos entre os brasileiros e as Cortes de Lisboa vinham desde 1821. Parte dos representantes das províncias do Brasil na constituinte ficou contrariada com propostas do lado português, e a polarização entre os deputados teve reflexo no Brasil. A recente liberdade de imprensa fizera explodir o número de periódicos em circulação, criando condições para que população discutisse as novidades vindas de Lisboa. A contrariedade também estava presente no círculo de Dom Pedro. Intervenções portuguesas nos assuntos brasileiros e pedidos de grupos políticos de diversas províncias foram empurrando o príncipe regente para cada vez mais longe de Portugal. Em janeiro de 1822, Dom Pedro informou que pretendia ficar no Brasil e expulsou do Rio de Janeiro tropas do Exército português. Na prática, a Independência já estava caminhando. Uma comissão reunida por Dom Pedro passou um pente fino nas decisões das Cortes e, em junho, ele sinalizou que o Brasil teria a própria Constituição. A cena do rompimento com Portugal às margens do Ipiranga, depois romanceada e aumentada por diversos meios, não foi, portanto, o evento mais significativo do processo de 1822. Aos olhos da época, sua aclamação em praça pública no Rio de Janeiro em 12 de outubro, com o povo na rua e coro de “vivas!”, teria sido um marco muito mais significativo. O mesmo a respeito de sua coroação, em dezembro do mesmo ano – não por acaso, a capa do livro é estampada por esta cena, ilustrada por Jean-Baptiste Debret.

A diversidade de imagens da Independência se reflete em seu conteúdo. “O processo sempre contemplou em seu interior vários processos menores, várias independências. Essa pluralidade se referia a diversos projetos, regiões e agentes, o que implicava diferentes possibilidades de sujeição ou de ruptura: com as Cortes de Lisboa, com uma junta de governo provincial, com uma autoridade local qualquer, eventualmente até com senhores de escravos, proprietários de terras ou controladores de mão de obra”, escreve Pimenta. A Independência foi resultado de um acúmulo de tensões, conflitos e projetos de poder com manifestações em diferentes pontos do Brasil e classes sociais. A isso soma-se o fato de que nem todos os brasileiros aderiram prontamente ao projeto de Dom Pedro. Focos de resistência armada nos atuais estados da Bahia, Maranhão e Piauí foram combatidos pelas forças do Estado, provocando as guerras da Independência – sim, nós também as vivemos.

Passado vivo

“A independência do Brasil é sem dúvida um grande tema: atual, polêmico, rico de possibilidades e prenhe de conhecimentos. Seu estudo pode nos dizer muito a respeito daquilo que nosso país foi um dia, mas também pode nos ajudar a pensar o que ele pode vir a ser”, adverte o professor na introdução. Símbolos nacionais, datas comemorativas e o próprio senso de unidade e identidade brasileiros remontam a 1822. E esse é apenas um dos motivos para se falar sobre a Independência nesse bicentenário.

“O passado-presente de nosso Brasil sempre foi aberto a controvérsias de todo tipo; atualmente, e mais do que nunca, ele também é suscetível a falsificações, censuras e descaradas mentiras. Mas ele ainda continua aberto a verdades e explicações que precisam ser defendidas, valorizadas e constantemente esclarecidas (…) Vale constatar que a história da Independência continuará a ser uma história em construção, pois ela não é só aquilo que ela já foi, mas também aquilo que a sociedade brasileira faz e continuará fazendo dela”, defende o professor. O uso político-partidário do feriado de 7 de setembro de 2021 coloca um alerta sobre o evento deste ano, e convida todos os brasileiros a conhecerem o que de fato aconteceu em 1822. Nesse caminho, obras como esta “Independência do Brasil” serão valiosas.

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