Em outubro próximo, a Pesquisa Fapesp faz 20 anos no formato de revista propriamente. Se a esse percurso, entretanto, for incorporada a fase Notícias Fapesp, com seus 46 boletins que pouco a pouco gestaram a revista, a rigor, já em agosto ela completa 24 anos. A sequência numérica das edições até o presente, a propósito, reflete a tomada do boletim número 1 como marco inaugural, em atenção às boas normas de indexação recomendadas, na época, pela bibliotecária Rosely Favero. De qualquer sorte, completar duas décadas redondas no formato revista não é um fato trivial no trajeto do belo veículo de jornalismo científico e divulgação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, muito ao contrário – e vale todas as celebrações que à data se dediquem.
Assim, não é exatamente por coincidência que desde março venho me dedicando a um projeto de pesquisa de pós doc, supervisionado por Carlos Vogt, coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp), e com algumas luzes da ciência política, na qual sou leiga, a serem solicitadas a André Singer, intitulado “As bases políticas de um experimento editorial: revista Pesquisa Fapesp”, que espero levar a cabo com o concurso de muitas vozes.
Na apresentação da proposta eu contava que vinha alimentando há alguns anos o propósito de escrever uma história desse experimento levado a cabo por uma agência pública de fomento, notavelmente bem sucedido, a ponto de ter se tornado a grande referência nacional da mais relevante produção científica brasileira no âmbito da divulgação e do jornalismo científicos.
Pensava a princípio, eu dizia ali, em uma narrativa que, a partir da experiência vivida, entrelaçaria a história estrita do nascimento e desenvolvimento da publicação, inclusive sua capacidade de gerar uma certa gama de spin-offs, a análises do ambiente mais geral de ciência e tecnologia em São Paulo e no país.
No esboço inicial dessa recuperação da história, cheguei a definir um título para o livro que daí resultaria: Uma aventura sob medida: a construção da revista Pesquisa Fapesp. Creio que isso permite um certo vislumbre de meu fascínio pela evolução do veículo. Entretanto, à medida que escrevia as primeiras páginas, percebia que o próprio sucesso do projeto pedia uma compreensão mais refinada e profunda do ambiente e da dinâmica das forças políticas que asseguravam extraordinária estabilidade e certeza de continuidade à publicação da Fapesp, independentemente de eventuais turbulências. Já começando o trabalho de pesquisa, isso terminou por me levar mais longe do que pensava – à década de 1930, quando um novo arranjo de forças em São Paulo, em meio à experiência da derrota da revolução constitucionalista de 1932, vai se unir em torno da criação da Universidade de São Paulo, a USP, mais do que sólido fundamento do que em algumas décadas seria o poderoso sistema paulista de ciência e tecnologia.
Boa parte da escrita que surgirá dessa investigação terá decerto estofo mais acadêmico, entretanto, a aventura que queria compartilhar também será narrada. E são episódios dela, enfeixados sob aquele título que imaginei lá no começo, que hoje e nas próximas 11 semanas pretendo trazer aos leitores que acompanham o Ciência na rua. Aí está:
Uma aventura sob medida – I
A construção da revista Pesquisa Fapesp
Aquele julho estava particularmente seco em São Paulo, com uma temperatura média de 18,6 graus celsius, de acordo com a série histórica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Haveria a destacar uma intensa chuva de granizo na zona oeste, num sábado, 22, especialmente na Vila Madalena e no Alto de Pinheiros, a ponto de deixar 1,5 metro de gelo acumulado na rua Girassol – palavra da Folha de S. Paulo, dando o crédito da informação ao “administrador regional de Pinheiros, Lauro Rolim Corrêa”.
Numa manhã cuja data precisa do mês já não me é dado lembrar, o professor da Unicamp Nelson de Jesus Parada, engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em 1963, doutorado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em 1968, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) de 1976 a 1986, entre outros cargos relevantes no setor público federal, e então diretor-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), chamou-me à sua sala no térreo da sede da instituição, no Alto da Lapa.
Ele estava entrando no terceiro ano de seu mandato orientado por dois desafios, entre outros: reunir subsídios convincentes para que o conselho superior da Fapesp aprovasse um programa de apoio à pesquisa de inovação tecnológica em empresas, proposta a que boa parte da comunidade científica paulista então se opunha; e definir meios para que a instituição ganhasse uma visibilidade pública que não tinha, a despeito do reconhecimento, inclusive internacional, de sua excelência como agência de fomento à pesquisa. Foi, assim, buscando no segundo semestre de 1994 reforços para o primeiro desafio, que Parada encontrou na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo o engenheiro Marcos Francisco de Almeida, profissional vinculado à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), então lotado na secretaria, àquela altura comandada pelo jornalista Roberto Müller Filho, vice-presidente licenciado da Gazeta Mercantil, o mais importante jornal de economia do país à época.
Tornava-se cada vez mais claro no decorrer de 1994 que, nas eleições de outubro, o velho PMDB cederia a cadeira de governador e numerosas outras da estrutura político-administrativa estadual ao partido que gestara, o PSDB – só não se podia então imaginar quão longa essa cessão seria. Mario Covas era o nome mais forte numa eleição concorrida, que iria ao segundo turno e terminaria deixando em segundo lugar Francisco Rossi (PDT), em terceiro, José Dirceu (PT) e praticamente na lanterninha o candidato do PMDB, Barros Munhoz. Os quatro nomes que ao dele se seguiam não alcançavam, juntos, 5% dos votos válidos, portanto, eram marginais na disputa. Dentro desse cenário, os profissionais que estavam cedidos por outras instituições ou prestavam serviços nos órgãos de governo do Estado moviam-se no sentido de definir o que fariam a partir de janeiro de 1995, porque grandes mudanças de staff iriam ocorrer. E nele Parada convidou Marcos de Almeida para assessorá-lo na Fapesp.
O convite foi aceito, mas deixemos já dito que, com toda a experiência prévia do diretor-presidente em pesquisa espacial, não foi em céu de brigadeiro que transitou sua proposta para o apoio da Fapesp à inovação tecnológica. Turbulências dariam um novo percurso ao programa, do qual voltaremos a falar adiante.
Nesse ponto começo eu, que passara o ano de 1994 como assessora de Roberto Müller, depois de cerca de três anos como editora de tecnologia da Gazeta Mercantil, a entrar nessa história. Porque Parada falara a Marcos de suas intenções de dar alguma visibilidade pública à Fapesp e ele, que me conhecera na Secretaria, sugerira meu nome para assessorar a fundação visando a esse segundo desafio. Formávamos, com outros colegas, um time afinado em volta de Müller, num momento importante para as três universidades estaduais paulistas (a USP, já citada, a Universidade Estadual de Campinas-Unicamp e a Universidade Estadual Paulista-Unesp), quando se trabalhava, em meio a greves e manifestações estudantis, na proposta de elevação do seu percentual orçamentário para 9,57% do ICMS, afinal aprovado em 1995, por Covas.
Àquela altura, dos 25 anos dedicados à profissão, principalmente ao jornalismo econômico, eu acumulava parcos sete anos em jornalismo científico que, entretanto, incluíam, além dos dois postos citados, assessoria de imprensa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), concepção e desenvolvimento do novo projeto editorial, transferência da redação para São Paulo e chefia de edição da revista do Conselho, a Revista Brasileira de Tecnologia (RBT), definitivamente descontinuada com a chegada de Fernando Collor de Mello à presidência da República em janeiro de 1990. E, em suma, foi por indicação de Marcos Francisco de Almeida que cheguei à minha grande aventura nesta seara. Devo isso a ele.
Voltemos ao fio narrativo longamente deixado em suspenso. Desde o começo de abril de 1995, quando afinal Parada me contratara diretamente por meio de um dos projetos de pesquisa que coordenava para dedicar 10 horas por semana a fazer assessoria de comunicação, eu estava sempre por perto, numa salinha próxima a seu gabinete. Ponderara naquele começo que o tempo de prestação de serviço proposto era muito exíguo para o que a Fapesp precisava naquele momento: projetar para a sociedade, principalmente via mídia, a imagem de sua excelência. Na verdade, era quase nada, se levado em consideração o riquíssimo manancial de informações sobre produção científica de que dispunha para difundir o trabalho fundamental da instituição na produção do conhecimento científico em São Paulo e, indiretamente, no país todo. Mas topara o tempo exíguo. A dinâmica própria do serviço logo o estenderia.
Parada convidou-me a sentar em uma das cadeiras à frente de sua mesa de trabalho e estendeu-me o primeiro número de um house-organ que acabara de chegar da gráfica. O veículo deveria marcar o começo de uma relação mais aberta e sistemática da Fapesp com a comunidade científica paulista. Não sei de quem fora a indicação da pessoa ou agência que produzira o boletim. Tenho certeza de que meu olhar transitou instantaneamente de curioso a consternado ao examinar o exemplar que ele me passara.
— O que você acha?
— De verdade, professor? Que o melhor a fazer é jogar tudo no lixo antes que alguém veja algum exemplar.
Parada ponderou que já dera sua palavra ao Conselho Superior de que teria o boletim para distribuir ainda em julho. Argumentei que seguramente faria mais mal à imagem da Fapesp distribuir um produto tão tosco do que ele descumprir o prazo. Propus fazer de forma rápida um novo boletim para apresentação ao Conselho em agosto e imediata distribuição. Ele aceitou e fiz. Algo muito simples, mas que não envergonharia a Fundação.
Gosto às vezes de me deter no imponderável e no efeito impensável dos pequenos atos… Era impossível imaginar que nesse diálogo e na decisão que se seguiu estávamos plantando a primeira semente da Pesquisa Fapesp – que em alguns anos se tornaria a mais influente revista de divulgação científica do país – e, ao mesmo tempo, definindo minha carreira e delineando parte substancial da minha vida pelos próximos 20 anos.