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Uma aventura sob medida: a construção da Pesquisa Fapesp – capítulo VII
Divulgação científica

por | 18 set 2019

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Entre as edições 25 e 46, ou seja, de outubro de 1997 a setembro de 1999, o Notícias Fapesp cresceu, gestou em suas páginas, passo a passo – sem muita clareza, a princípio, e deliberada e determinadamente, mais tarde –, a revista Pesquisa Fapesp, revelou a diversificação e expansão notável de alvos e práticas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo para fazer avançar a pesquisa paulista e, de forma especial, permitiu a seus leitores acompanhar gradativamente o processo de desenvolvimento do projeto pioneiro da genômica no Brasil, o da Xylella fastidiosa.

De uma análise daqueles anos entusiasmados, saltam da primeira página do boletim flashes da ebulição da Fundação que, entre tantos outros tópicos, abarca seu esforço para compreender a força e os limites da pesquisa científica levada a cabo em São Paulo tanto quanto o alegre sentimento de vitória ante a assinatura, em solenidade comandada no Palácio dos Bandeirantes pelo governador Mário Covas, dos 30 primeiros contratos de financiamento a projetos de inovação tecnológica em pequenas empresas.

O sentimento era plenamente justificado: se, com a criação do programa de apoio à inovação tecnológica em parceria (mais tarde popularizado pela sigla Pite) muito se alargara, em 1994-1995, o olhar sobre que agentes financiar para apoiar mais decisivamente o desenvolvimento científico e tecnológico do estado de São Paulo, em 1997 quebrara-se um paradigma da atuação histórica da Fapesp – não sem resistências, como bem lembrou em entrevista recente para esta reconstituição da história da Pesquisa Fapesp o então diretor científico da Fundação, José Fernando Perez. Porque, diferentemente do Pite, que concedia e concede o auxílio (financiamento sem reembolso) ao pesquisador dentro de uma instituição de pesquisa paulista para nela desenvolver um projeto de interesse da empresa, o Pipe, sigla que logo batizaria o novo programa de inovação tecnológica, eliminava a intermediação da instituição para conceder o auxílio diretamente a um pesquisador na empresa – com frequência, ele mesmo o dono da pequena empresa. A Fapesp, pela primeira vez, estava pondo em marcha “um programa especificamente voltado a projetos de pesquisa em empresas”, como destacaria logo ao abrir seu discurso no Bandeirantes o então presidente da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz. Se hoje isso soa tão normal, naquele momento, aos olhos de parte da aguerrida comunidade científica paulista, assumia contornos quase de um pequeno escândalo.

Há, sem dúvida, nesse tópico do Pipe, algo a apreender das especificidades do sistema paulista de ciência e tecnologia, que talvez seja mais diretamente do interesse de uma autora interessada em deslindar as bases políticas que permitiram o sucesso de um experimento editorial como a Pesquisa Fapesp do que do leitor, na internet, ao qual se prometeu o relato de uma verdadeira aventura na construção de uma revista de divulgação científica. Entretanto, certas percepções compartilhadas às vezes fazem sentido para o outro, então, vamos a elas.

A Fapesp sempre auscultou, de diferentes formas, a comunidade científica paulista, muito distante de qualquer caráter monolítico, na elaboração de seus programas e decisões de financiamento. Por vezes, auscultou em especial seus segmentos mais avançados, menos conservadores, mais antenados com a vanguarda de seus campos no panorama internacional, ainda quando suas propostas estivessem apenas levemente esboçadas. Em seus momentos mais inspirados, cruzou criativamente as aspirações dessa comunidade com as tendências internacionais e manifestas necessidades nacionais e lançou programas de indiscutível impacto científico e social. E nesse modo de ação, natural se tornou enfrentar e lidar com resistências. Sempre há, e não em pequeno número, os que preferem a manutenção do status quo aos desconfortos da mudança.

Entretanto, uma vez efetivamente consolidada uma proposta no âmbito executivo da Fundação e, na sequência, bem debatida até o ponto do consenso em seu conselho superior, com seus representantes de distintas forças e correntes tanto da comunidade científica quanto do campo político e empresarial mais afinados com o governador que os indicou, ela ganha uma força muito difícil de minar. Assim, há que se considerar as inspirações que vêm da base científica, a consistência e a defesa argumentativa de uma proposta apresentada pela instância executiva da fundação, o debate até a criação do consenso e a aprovação por unanimidade da proposta no conselho superior da instituição que antecedem e sustentam o aval político expressado numa recepção em palácio que transforma um programa em política de estado.

De uma certa maneira, é tudo isso que sutilmente se entremostra na primeira página da edição 28 do Notícias Fapesp, de janeiro/fevereiro de 1998. A cobertura do evento, prestigiado por secretários, reitores, prefeitos, empresários e pesquisadores, se estende por sete das 16 páginas do boletim, com direito à lista dos projetos aprovados e à íntegra dos discursos de Covas, do secretário Emerson Kapaz, da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, de Brito Cruz e de José Ellis Ripper, representante dos empresários.

Sobre o outro exemplo citado da efervescência daquele momento, a reportagem sobre indicadores – que se tornariam uma ferramenta fundamental no diagnóstico e nas definições de políticas públicas estaduais ou nacionais para o setor – traçava, em seis páginas das 16 da edição 27 do Notícias Fapesp, um alentado panorama da produção de C&T em São Paulo. Vale muito destacar, nesse momento de penúria e ataques à produção científica brasileira patrocinados pelo governo federal, que, naquele momento, o estado de São Paulo destinava recursos da ordem de US$ 2 bilhões a ciência e tecnologia.
O texto explicava que esse total provinha “de três fontes: o governo estadual, o governo federal e as empresas. Em linhas gerais, há um equilíbrio entre elas – cada uma destina a essa área ao redor de US$ 700 milhões por ano”. Acrescentava que havia, entretanto, nuances nesses grandes números. “O governo estadual coloca mais dinheiro do que o governo federal no sistema paulista de inovação, como nenhum outro Estado faz”, dizia Sandra Brisolla, coordenadora do estudo. Em 1995, a diferença a favor do governo estadual fora de US$ 81,13 milhões.

O total do investimento em São Paulo equivalia a “pouco mais de um terço dos investimentos nacionais”, o que lhe permitia responder por praticamente metade da produção científica nacional medida por artigos científicos publicados em revistas internacionais indexadas (6.708 artigos ou 47,25% do total nacional) e por exatos 50% das patentes solicitadas ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), ou seja, 3.531. Nas patentes concedidas, São Paulo tinha cravado até aquele momento 623, correspondendo a 66% do total para o país. “A responsabilidade do Estado na formação de pesquisadores se torna evidente quando se verifica que as instituições paulistas formam 33% dos mestres e metade dos doutores do Brasil”, dizia a reportagem.

Com fartura incomum de gráficos e tabelas, segundo o Notícias Fapesp, o trabalho analisara, “entre outros itens, a origem e a distribuição dos investimentos, a quantidade e a qualificação dos recursos destinados à Ciência e Tecnologia e a produção científica e tecnológica do Estado, inclusive com um refinado perfil do pesquisador paulista”.

A par do Pipe e dos indicadores, vários outros programas relevantes da Fapesp nesse período vão ganhando um corpo mais visível ou uma imagem mais nítida pelas páginas de seu informativo mensal – voltaremos a eles em outro momento do percurso. Mas foi o projeto da X. fastidiosa que, como nenhum outro, foi se mostrando, se revelando ao público que dele desejasse saber, à medida mesmo de sua construção.

Ao ser anunciado de forma vigorosa e com múltiplos detalhes sobre sua organização e objetivos científicos, na edição 25 do Notícias Fapesp, o audacioso projeto pioneiro da genômica no país já passara por forte oposição de parte da comunidade científica paulista, inconformada com a decisão da Fapesp de aplicar até US$ 15 milhões num único projeto de biologia molecular – lembremos, no entanto, que havia então quase uma paridade entre real e dólar naquele momento e que o custo final terminou pouco acima de US$ 12 milhões, salvo engano. Mas ele nasceu forte, a despeito disso, dentro daquele mesmo escopo observado acima relativamente ao Pipe.

O coro de descontentes se reduziu bastante enquanto o projeto se desenvolvia, mas nunca cessou de todo, como se para alguns fosse impossível compreender o quanto significava em termos da abertura de uma fronteira nova na ambição e mesmo no modo de se produzir ciência no país, e mais impossível ainda admitir que o financiamento do genoma da X. fastidiosa não implicava redução no apoio a outros projetos relevantes submetidos à Fapesp. A rigor, nada de muito estranho.

Já na edição 27, de dezembro de 1997, o Notícias Fapesp publicava a relação dos 30 laboratórios de pesquisa escolhidos para tocar o projeto, dentre os 100 que haviam se inscrito. O trecho inicial da reportagem dizia: “No dia 19 do mês de novembro passado, cerca de sessenta pesquisadores – coordenadores ou integrantes das equipes dos laboratórios paulistas selecionados para participar do Projeto Genoma-FAPESP – estiveram na sede da Fundação para a primeira reunião de trabalho de todos os participantes do Projeto, que deverá, até o ano 2000, realizar o seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da Clorose Variegada de Citros (CVC), doença popularmente conhecida como amarelinho, que ataca os citros”.

Sim, o português ainda fazia uso do trema e as matérias sobre a X. fastidiosa foram naturalmente ricas no uso e abuso do sinal gráfico, como se pode conferir. No segundo parágrafo, o texto explicava que, “dentre os laboratórios de seqüenciamento, há laboratórios de entidades públicas e privadas, de várias regiões do Estado, selecionados, de acordo com o diretor científico da Fapesp, José Fernando Perez, com base em três critérios: quinze deles pela documentada experiência em seqüenciamento genético, oito, por atuarem na área de patologia vegetal, que é a que deverá primeiro apropriar-se dos resultados da pesquisa, e sete, por possuírem grupos com experiência científica bastante qualificada, com interesse e possibilidade de incorporar os conhecimentos adquiridos nesse projeto às suas linhas de pesquisa”.

Em março de 1998, o Notícias Fapesp 29 anunciava os primeiros resultados do projeto nos seguintes termos:

“O Projeto Genoma-FAPESP, primeiro projeto de completo seqüenciamento genético de um organismo que vem sendo desenvolvido fora do eixo Estados Unidos-Europa-Japão, já começou a apresentar resultados. No mês de fevereiro último, e até a segunda semana deste mês de março, foram seqüenciados os primeiros 24 mil nucleotídeos, ou pares de base, da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da Clorose Variegada de Citros (CVC), doença popularmente conhecida como ‘amarelinho’, que ataca os pomares de citros”.

Acrescentava que a realização fora do Laboratório de Genética do Câncer, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, e ocorrerra quatro meses antes do previsto: “pelo cronograma do Projeto, lançado em 14 de outubro do ano passado, os primeiros resultados de seqüenciamento deveriam ser obtidos por volta do mês de julho”.

Em seguida observava que, “de acordo com o Dr. Andrew George Simpson, do Instituto Ludwig e Coordenador de DNA do Projeto Genoma-FAPESP, embora os 24 mil nucleotídeos seqüenciados sejam uma pequeníssima parcela dos 2 milhões que compõem o genoma da bactéria, a sua produção veio demonstrar que todas as etapas do Projeto – cultivo da bactéria, produção do seu DNA, preparação das bibliotecas (ou seja, o genoma na forma a ser seqüenciado) e seqüenciamento – foram cumpridas com sucesso”.

Explicava em seguida que “outro importante resultado obtido fora o domínio da tecnologia de cultivo da bactéria em grande quantidade e com alto grau de pureza, para produção do DNA pelo Laboratório de Biotecnologia do Centro de Citricultura Sylvio Moreira, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) “chefiado pelo Dr. Marcos Antônio Machado”. E Simpson observava que até o projeto começar, não havia no estado “nenhum grupo capaz disso”. O cultivo da Xylella fastidiosa com alto grau de pureza, segundo o texto, possibilitara ainda “a identificação de três novos genes da bactéria, até então desconhecidos”.

Os textos sobre o projeto se multiplicam. A edição 31, de maio de 1998, que introduz discretamente cores no informativo impresso – o papel offset já fora abandonado –, a par de abordar seu significado para impulsionar a ciência brasileira, já traz os textos sobre os dois novos e importantes projetos genômicos abertos pela Fapesp na esteira da competência iniciada com a X. fastidiosa: o genoma câncer e o genoma cana-de-açúcar. A edição 35, de setembro, anuncia novos passos importantes no caminho do sequenciamento completo do genoma da bactéria e publica a tradução para o português de artigo de Perez e Simpson publicado originalmente na Nature Biotechnology. A edição 36 anuncia uma nova fase para o projeto: “O Projeto Genoma Xylella está entrando em uma nova fase. No meio do caminho para a identificação das funções biológicas dos cerca de mil e duzentos genes da Xylella fastidiosa, a FAPESP está propondo mais um desafio: o avanço das pesquisas com novas hipóteses sobre a Clorose Variegada de Citrus (CVC) – doença provocada pela bactéria -, para a organização do projeto Genoma Funcional”.

A cada edição, a iniciativa de São Paulo num programa genômico vai ganhando novos contornos e seu boletim mensal também. Na edição 39, de janeiro/fevereiro de 1999, junto com uma reportagem sobre a reta final do genoma da X. fastidiosa, outra sobre os avanços do genoma câncer e o anúncio do começo do programa Biota Fapesp, o Notícias Fapesp, já com 24 páginas, cores, a primeira capa do designer Hélio de Almeida e já algumas intervenções suas nas páginas internas, dá pistas de que o nascimento da revista da Fapesp, com algumas dores no transcurso final da gestação, está próximo.

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