Texto originalmente publicado no Edgardigital, veículo de divulgação da UFBA, edição 89
Diagnosticada pela primeira vez em 1910, com incidência hoje na faixa de uma pessoa por 627 baianos e, pior, de uma por 530 soteropolitanos, a anemia falciforme permanece quase invisível, mesmo na Bahia. Foi contra essa invisibilidade que Tharcia Purificação, 29 anos, quis investir em seu trabalho de conclusão de curso de graduação (TCC) em saúde coletiva, elaborando uma ferramenta com potencial para ir muito além de sua unidade, o Instituto de Saúde Coletiva (ISC). O que Tharcia fez foi um documentário de 50 minutos, denso e doloroso, mas esperançoso, com o poético título Nas teias de Anansi: do diagnóstico à resistência, apresentado na manhã do sábado, 4 de agosto, como passo final de sua graduação.
Comum em cursos de comunicação e artes, por exemplo, um TCC estruturado como uma narrativa audiovisual era algo inédito para o ISC, tanto que, ao receber a proposta de Tharcia, a antropóloga e professora Clarice Mota, sua orientadora, não tinha certeza se isso seria permitido, uma vez que não estava nas normas regulares para a graduação no Instituto. Entretanto, ela própria entendia que o documentário poderia abrir brechas, mesmo novos caminhos, para esse tipo de trabalho de estudantes e para a divulgação da doença falciforme.
“Sempre achei que o documentário tem uma possibilidade científica forte e há quem trabalhe exatamente com isso, embora não seja costume em saúde”, comenta Clarice. Ela conta que a ajudou a argumentar favoravelmente ao TCC-vídeo o co-orientador do trabalho, Altair dos Santos Lira, também antropólogo, professor substituto no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) e pesquisador do programa Comunidade, Família e Saúde: Contextos, Trajetórias e Políticas Públicas, do qual ela é vice-líder. Aliás, Lira é também fundador e presidente da Associação Baiana das Pessoas com Doenças Falciformes (Abadfal), organização que ele se empenhou em criar desde que tomou contato direto com o problema, há cerca de 18 anos, motivado pelo diagnóstico da filha.
“Um argumento que apresentei foi a possibilidade que o documentário traz de quebrar um pouco a invisibilidade da doença falciforme, até do ponto de vista da formação em saúde. Muitos entre nós se formam sem sequer saber que existe a doença, o que é paradoxal dada sua alta incidência aqui no estado, comparável ao que se registra na África”. Os números da anemia falciforme ou, como hoje se prefere, das doenças falciformes a que ela se refere são ainda mais impressionantes no Recôncavo baiano, em que a incidência é de uma pessoa por 150, e em especial no município de Cruz das Almas, onde atinge uma em 130 pessoas.
Seguramente um documentário poderia circular bem mais que um TCC apenas escrito e ter outro grau de alcance, outra possibilidade de capturar a atenção das pessoas, dentro e fora da universidade. O segundo ponto de sustentação na argumentação de Clarice Mota veio justamente de um outro vídeo, Faça parar essa dor, produção da Abadfal de 2013, junto com várias instituições, como a APAE Salvador, Prefeitura e Ministério da Saúde “Como é potente como ferramenta de educação!”, ela diz. Esse vídeo tem mais de 7 mil visualizações a essa altura e é ferramenta importante de aulas, inclusive no sistema de educação a distância.
Quatro trajetos
Tharcia Purificação, estudante da UFBA desde 2009 (fez Farmácia antes de Saúde Coletiva) observou todos os códigos consagrados e ritos normais de apresentação de um TCC na defesa de seu trabalho neste sábado, cumprida a primeira parte de instalação da banca na sexta-feira, 3. Nos 20 minutos que teve para expor sua pesquisa, valendo-se de um powerpoint, explicou que o documentário que exibiria adiante “relata a trajetória de vida de mulheres negras com doença falciforme em busca pelo cuidado”. Informou logo que a direção era sua, e a filmagem e edição de Robério Lopes, funcionário do ISC, enquanto as personagens eram Edineide Coelho, Evilusia da Conceição, Jucelita das Candeias e Jucidalva Gomes, “com narrativas subjetivas de si relatando a tecelagem das suas vidas”.
Bem mais tarde, quando as protagonistas do vídeo já haviam desaparecido da tela e se materializado na mesa à frente do auditório do ISC, todos saberiam que Edineide, cuja desenvoltura cênica chamara a atenção, é aluna de graduação do Instituto, e Jucidalva, aluna do mestrado.
A graduanda explicou que escolhera para trabalhar a doença falciforme tanto por seu significado epidemiológico em Salvador quanto pela possibilidade de flagrar o racismo institucional que se oculta por trás do desconhecimento, da desinformação e do silêncio que a cercam. Referiu-se também ao recorte de gênero que decidira fazer desde o começo, dado que há, em seu olhar, um ser mulher no Brasil diretamente impactado pelos processos da sociedade escravocrata que constrói historicamente esse país. “As mulheres são sempre muito atingidas nesse processo social”, disse. Pobreza, classe e raça engendram um nós na periferia com acesso mínimo a qualquer direito básico, “e esse local, essas vivências, também impactam a saúde”. Há um lugar socialmente construído, ela disse, “que leva ao racismo” inclusive no atendimento à saúde.
Mostrou numa linha do tempo que, se o diagnóstico da anemia falciforme ocorrera em 1910, e se ela servira desde então para uma série de estudos científicos relevantes, especialmente na Bahia, incluindo pesquisas de ponta de biologia molecular e especificamente células tronco (ver a propósito, https://www.edgardigital.ufba.br/?p=8732), só em 2005, depois de um avanço em 2001 com a inclusão do marcador específico para o problema no teste do pezinho de recém nascidos, se estabeleceria uma Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme.
O público que encheu o auditório do ISC ouviu de Tharcia que a anemia falciforme, originária da África, é a doença genética mais comum no Brasil e resulta de uma mutação num gene que faz proliferar hemácias (glóbulos vermelhos do sangue) em forma de foice, em vez de circulares, que trarão uma série de complicações sistêmicas (veja nos infográficos). Parte das populações de escravos que vieram para o Brasil desde o século XVII, uma das matrizes fundamentais da população brasileira, tinham a doença falciforme ou traço genético dela, e por isso são basicamente os pretos e pardos que sofrem com o problema.
Tharcia mostou qual foi seu objetivo geral e abordou a metodologia que seguiu em seu trabalho, em duas etapas: a seleção das participantes e a construção do roteiro e, em seguida, a filmagem, com momentos coletivos e entrevistas individuais. Deu mais detalhes da elaboração do documentário, que defendeu, primeiro, por “seu alcance social para além do universo acadêmico”, depois, pela valorização maior da oralidade, fundamental na produção e transmissão do conhecimento dos ancestrais entre as populações negras, e em terceiro lugar, pelo protagonismo que assegurou às mulheres “na produção do discurso sobre si”.
A par do debate e reflexão conjunta das quatro personagens que escolheu para o documentário antes das filmagens propriamente, Tharcia elaborou a pergunta disparadora da narrativa das vivências das protagonistas: “Como foi seu diagnóstico e como foi sua vida a partir daí?”.
É essa indagação que aciona as memórias de múltiplas dores, de medo ou de superação, o relato de descobertas e o delinear de planos, ao lado da construção de esperanças. As protagonistas se expõem e o quadro real da doença falciforme ganha mais nitidez.
Contra um discurso eugenista
Altair Lira destaca o valor de se ter em trabalhos acadêmicos a voz do protagonista posta diretamente na narrativa de sua experiência. Não por razões idílicas, mas porque essa voz carrega a possibilidade de reorientar tanto o olhar do pesquisador para o problema quanto as políticas pensadas para enfrentá-lo, além de talvez sensibilizar de forma mais ampla a sociedade para determinadas questões. “O tratamento, o acolhimento, no caso os portadores de anemia falciforme, por exemplo podem ser alterados, e até as reflexões no interior do próprio ISC sobre saúde coletiva podem ser enriquecidas”.
Clarice Mota observa como trabalhos semelhantes ao de Tharcia Purificação podem ser importantes para provocar a discussão sobre o tratamento dispensado às mulheres com anemia falciforme no próprio serviço médico, inclusive no que diz respeito a seus direitos básicos, e até os direitos reprodutivos.
“As chances de uma mulher com doença falciforme gerar um bebê com a doença são de 20% se ela tiver um parceiro também com traço genético do problema. Ela sozinha não determina o surgimento da doença no bebê. Sua gravidez é de risco sim, mas isso não pode autorizar que seja tratada com dureza, como acontece tanto. Pergunta-se friamente por que ela engravidou, diz-se que ou ela será salva ou a criança, não ambas”, relata Clarice Mota.
Em paralelo, a mulher que tem anemia falciforme não pode tomar pílula anticoncepcional. “Na prática, o discurso médico está pregando a abstinência, está investindo, assim, contra um direito básico de qualquer pessoa adulta. No fundo, está em cena um discurso eugenista”, ela completa.
Mal crônico, a doença falciforme não é, entretanto, uma sentença de morte, e o documentário de Tharcia Purificação, Nas teias de Anansi: do diagnóstico à resistência, aprovado como TCC no ISC, seguramente contribui para contar o que se passa com quem a carrega.
Em tempo: Anansi na mitologia Ashanti (África Ocidental, Gana) é um deus-aranha que decidiu tecer uma teia até o céu para comprar as histórias que Nyame, deus do céu guardava em seu baú de ouro. Ele queria que a terra deixasse de ser um lugar triste, sem histórias. Todos debocharam dele e de sua pretensão, mas Nyame prometeu que, se ele capturasse as quatro criaturas mais terríveis da terra e as levasse até o céu, atenderia seu pedido. Anansi, com a ajuda da mulher, Aso, levou as criaturas e ainda sua velha mãe até Nyame, que não teve outra saída, senão atender ao pleito.
Entregou a Anansi o baú de ouro que continha todas as histórias do mundo dizendo: “O pequeno Anansi, trouxe o preço que pedi por minhas histórias, de hoje em diante, e para todo o sempre, elas pertencem a ele e serão chamadas de histórias do Homem Aranha! Cantem em seu louvor!” E essa é história de como todas as histórias chegaram ao conhecimento do mundo, diz o mito.