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Um livro de receitas, memórias e histórias

Obra organizada pela bioantropóloga Mariana Inglez reúne receitas de iguarias da Amazônia paraense, mas não apenas

Tatu, mandioca, bacaba e tucunaré, alguns dos alimentos tradicionais ribeirinhos (fotos: Mariana Inglez)

Tucunaré frito, caldo de jiju, feijão-baião, cabidela de jabuti, mingau de crueira e doce de maxixe são algumas das receitas apresentadas em ‘Um rio de receitas beiradeiras’, livro lançado no fim de março e disponível gratuitamente para download neste link. A obra é fruto da pesquisa de doutorado da bioantropóloga Mariana Inglez, organizadora do livro, e traz muito mais do que as receitas.

Antes delas, apresenta um pouco da região, as diferentes localidades, os longos percursos para se chegar até elas e algumas histórias das pessoas que participaram do projeto. Como explica Mariana, “o livro foi pensado como uma forma de humanizar a pesquisa e criar uma recordação afetiva desse processo longo que é o desenvolvimento de uma tese de doutorado que precisou da colaboração de tanta gente, me recebendo em suas casas, se dispondo a falar de suas vidas e relações com a comida, algo tão íntimo. Falar de alimentação é falar sobre dificuldades econômicas e relações com o ambiente, mas também sobre memória e tradição.”

Mariana, doutoranda do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), estuda mudanças na alimentação para entender o processo de transição nutricional, a substituição do uso de alimentos frescos e locais por alimentos industrializados e ultraprocessados. Ela foi realizar sua pesquisa de campo em comunidades ribeirinhas do Pará: Portel, Melgaço, Pedreira, Laranjal, Cacoal e Ilha de Terra.

A ideia do livro surgiu logo no início da apresentação da pesquisa para as famílias que colaborariam com o projeto, no fim de 2019. Junto com as famílias, em especial com as mulheres chefes das casas, tentaram conceber algo que representasse uma memória da construção da pesquisa. “Eu particularmente gostaria que fosse algo que demonstrasse o protagonismo feminino em temas que envolvem a alimentação ou percepções sobre insegurança alimentar. Não me recordo exatamente em qual das casas, mas acredito que tenha sido com Juci, em Portel, que surgiu a ideia de um livro de receitas, que foi aceita com empolgação por todas as participantes. Cada uma já foi pensando em uma receita e me falando pra anotar, ou me entregaram anotações em papel”, contou a pesquisadora, por e-mail, ao Ciência na Rua.

Com a pandemia de covid-19 e a consequente impossibilidade de retornar ao campo para coletar dados, o livro que estava pensado para ser entregue ao fim do doutorado acabou sendo adiantado, aproveitando o timing do financiamento do Instituto Serrapilheira ao projeto de divulgação científica que Mariana coordenou, o ‘Evolução para Todes’.

Para Juci (Juciane Freitas), uma das colaboradoras, não foi fácil escolher qual receita acrescentar ao livro, já que eram muitas as que as mulheres da região aprenderam com suas mães e avós. “Acabei escolhendo a que tinha mais prática de fazer – e acabei fazendo até para a Mariana, que gostou muito.” Sua contribuição terminou sendo a unha, um salgadinho feito com farinha d’água, temperos e camarão. Ela destaca ainda a importância do registro para a culinária e para a cultura da região, já que muitos pratos típicos vão sendo esquecidos. “Quando eu era criança, era fácil encontrar uma “unha” pra merendar, as mães e avós faziam, ou até nas vendinhas, e agora, não. Então é importante para que essa receita não se perca e seja substituída por novas… Podemos somar.” Outra autora do livro, Mara (Maristela Balieiro), que colaborou com a receita de bolo de macaxeira, defende a importância de as receitas da região serem divulgadas “para que outras pessoas possam nos conhecer e ter prazer em comer também”.

Segundo Mariana, o livro é uma mistura entre seu diário de campo, dela mesma e do que estuda, com o registro de experiências que viveu junto com as outras pessoas envolvidas ou que essas quiseram compartilhar. “Também entendi que esse formato para um livro de receitas agregaria camadas que permitiriam a outras leitoras e leitores, de outros lugares do Brasil, se aproximarem do fazer científico de uma mulher pesquisadora atuando em áreas rurais da Amazônia Paraense, assim como do estilo de vida ribeirinho e das mulheres beiradeiras, que ainda são tão invisibilizadas.”

Para a pesquisadora, essa escolha dialoga com a abordagem etnográfica, da bioantropologia e da antropologia nutricional. “Estar em campo e pesquisar sobre alimentação é entender a interdisciplinaridade que envolve o tema das transições nutricionais e dos atravessamentos relativos ao acesso e/ou à escolha dos alimentos que ingerimos, o que envolve aspectos físico-biológicos, sociais, econômicos, culturais e das emoções e memórias.”

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