Fotos: Marta Santos
Adolescentes da Cidade Tiradentes vão à Faculdade de Saúde Pública da USP entrevistar pesquisadora
É certamente impossível saber que memórias guardarão oito adolescentes, moradores da Cidade Tiradentes, de seu encontro com a professora Dirce Marchioni, coordenadora do INCT Combate à Fome, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), a cerca de 40 quilômetros de distância de suas casas, na tarde da quinta-feira, 28 de novembro. Mas há alguma possibilidade de descobrir suas eventuais percepções e novos entendimentos sobre o que tem a ver fome e insegurança alimentar com ciência, pesquisa e produção de conhecimento científico em relatos que podem aparecer em breve, nas formas narrativas que livremente escolherem. É esperar para conferir.
De todo modo, já se pode nesse momento intuir que as meninas e os meninos curtiram a visita, a julgar por um charmoso vídeo de 3’35” que traz imagens da experiência, desde a ida na van para o desconhecido território da USP, passando pelas várias interações na faculdade e concluindo com a volta para casa na periferia da Zona Leste na mesma van, tudo amparado por Muleque de vila, música famosa de Projota que lhe serve de trilha do começo ao fim.
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O vídeo foi espontaneamente gravado, editado e distribuído a um pequeno grupo, no próprio dia do encontro, por Maria Eduarda dos Santos Yokota, a Duda, assistente administrativa da ONG Academia Carolinas, instituição tão chave no encontro na Faculdade de Saúde Pública quanto o Instituto Ciência na Rua e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Combate à Fome, independentemente das grandes diferenças de porte entre as três.
Duda, a par de explicar durante o encontro os objetivos e o intenso trabalho da Academia, era uma das duas adultas responsáveis pelos adolescentes na excursão — a outra era Giovanna Duarte Conzoni, professora de educação física da moçada. Simone Rego, também professora, a criadora, presidente e liderança central da Academia inspirada na escritora favelada Maria Carolina de Jesus (1914-1977), não conseguiu ir, presa que estava em outro compromisso.
É tempo de dizer que os adolescentes que foram entrevistar a professora Dirce Marchioni, titular de nutrição e epidemiologia na Faculdade de Saúde Pública, têm entre 12 e 19 anos e se distribuem neste momento da 6ª série do Fundamental ao duro tempo de vestibular. São alunos de diferentes escolas e têm um lugar de encontro para diferentes atividades culturais e educacionais na Academia Carolinas — que abriga também uma cozinha solidária com o desafio de distribuir, diariamente, 500 marmitas para pessoas vulnerabilizadas num bairro extremamente carente de tudo, com uma população total de cerca de 350 mil pessoas.
E quem são essas meninas e meninos? Em ordem crescente de idade, Samuel Lima da Silva (12 anos), Antony Caio Marques e Tifani Vitoria Santana da Silva (13), João Pedro Santana de Menezes e Pedro Henrique Rodrigues de Souza (15), Maicon dos Santos Coutinho Eugenio (16), Davi Viana Santos Silva e Maria Eduarda Mendes Flor (19).
A atividade que tiveram na Faculdade de Saúde Pública foi, na verdade, o terceiro de quatro encontros que integram as oficinas de pesquisa em jornalismo científico do Ciência na Rua. Elas se voltam a investigar a percepção de temas e notícias de ciência por adolescentes e jovens de periferias — supostamente pouco expostos em seu cotidiano a tais conteúdos —, e a subsequente (re)construção de relatos sobre esses assuntos a partir de seu próprio repertório linguístico, e em distintas formas narrativas de livre escolha. A produção desses relatos é o alvo do quarto encontro, enquanto os dois primeiros envolvem um diálogo com os adolescentes a respeito do projeto de pesquisa sobre o qual vão trabalhar, sempre ligado a um tema de seu interesse direto.
Vale observar que o Ciência na Rua integra institucionalmente desde 2023 o INCT Combate à Fome. Somada a isso, a crucial importância do tema da fome e da insegurança alimentar no Brasil e no mundo (inclusive em termos científicos, de comunicação pública e do jornalismo de ciência) tornava-o uma escolha óbvia para uma das oficinas previstas em 2024 e 2025.
Era fundamental, entretanto, para concretizá-la, encontrar uma organização do terceiro setor que atuasse na periferia urbana de São Paulo lidando tanto com jovens quanto com a questão da fome. E um Encontro de Periferias permitiu, em meados deste ano, o feliz encontro do Instituto Ciência na Rua com a valorosa Academia Carolinas.
Havia um projeto de pesquisa específico em cena quando a oficina começou, ligado à construção de indicadores de qualidade de dieta, na qual se considerara inclusive a questão dos alimentos ultraprocessados, central na discussão da qualidade da alimentação entre jovens e entre populações mais vulnerabilizadas. Dirce Marchioni fora a coordenadora desse projeto e, em princípio, nele ia se deter a atenção dos adolescentes entrevistadores.
Não foi o que se deu, pelo menos não exclusivamente. Em suas bem elaboradas perguntas trazidas por escrito de seu território, a moçada levantou questões sobre itens mais saudáveis para uma boa dieta, mas também olhou de forma muito mais ampla para o tema, interrogando desde as relações entre alimentação e saúde mental, alimentação e autismo, até as razões de facilidade de consumo de ultraprocessados na periferia vis a vis a dificuldade de consumo de itens saudáveis, com seus elevados preços.
Com tal estímulo, Dirce Marchioni conseguiu abordar ampla e profundamente a complexidade do fenômeno da fome, em suas raízes econômicas e em suas determinações políticas. Conseguiu falar de Josué de Castro e de sua obra seminal, Geografia da fome, da base de uma dieta saudável — plantas —, de conhecimento científico, das características, imperfeições e limites da ciência e da ação de políticas para vencer a fome e a insegurança alimentar. Com simplicidade. Acolhedora.
Uma hora de conversa não foi suficiente para todas as perguntas que eles tinham, e então foram aconselhados a enviar as questões pendentes à pesquisadora.
Os adolescentes tiveram outras atividades além de entrevistarem a coordenadora do INCT. Sempre guiadas por uma sorridente Beatriz Alves Leite, orientanda de iniciação científica de Marchioni, foram à horta de PANCs (plantas alimentícias não convencionais) nos amplos jardins da faculdade, experimentaram comer folhas de vinagreira, visitaram a cozinha que serve de laboratório aos estudantes de nutrição, e conversaram animados com a pesquisadora Natália Sanchez Oliveira, no Laboratório de Avaliação Nutricional de Populações (Lanpop). Ficou faltando no final uma visita à biblioteca, atrapalhada pela chuva pesada que começou a cair na cidade no final da tarde.