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A fome e a insegurança alimentar no Brasil exigem combate transdisciplinar

Por Mariluce Moura*, com ilustração de Nara Lacerda

Um novo INCT liderado pela USP se une aos esforços para produzir conhecimentos e inovação inspiradores a uma política de estado permanente contra a fome e a insegurança alimentar

A fome, disseram Silvia Helena Galvão de Miranda e Marcelo Cândido da Silva em artigo publicado no Estadão em 8 de maio passado, “está presente no Brasil desde a sua mais grave e dolorosa forma, quando as pessoas não têm acesso sequer a uma refeição diária, até aqueles casos em que, embora se alimentem, estão mal nutridas. É a insegurança alimentar em seus diversos níveis, que gera problemas de saúde pública, da subnutrição à obesidade.”

Os dois pesquisadores, professores titulares da Universidade de São Paulo (USP) – ela da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e ele da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) -, abordavam ali os resultados do trabalho de um grupo (GT) criado pela reitoria da USP que ambos coordenaram de setembro de 2021 a janeiro de 2023. Resultados robustos, registre-se, para os quais se empenharam 26 pesquisadores da universidade, apresentados num relatório que contém 39 propostas voltadas a políticas públicas de combate à insegurança alimentar e à fome.

Esse documento, entretanto, não guarda todos os resultados acadêmicos e institucionais do trabalho.

Os estudos do GT, além de uma análise das características da fome que abate o Brasil e das propostas de políticas públicas para enfrentá-la, orientadas pela concepção de que é essencial articulá-las para que o combate à fome e à insegurança alimentar se torne uma política de estado duradoura, deu origem a um novo e maior aglomerado dinâmico de pesquisa, não previsto em sua gênese nem em boa parte do percurso do grupo. Trata-se do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Combate à Fome, oficialmente lançado junto com a apresentação do relatório do GT, em 26 de abril passado, e cuja criação fora aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no final de dezembro do ano passado.

 

Esse novo instituto, com o nome completo “INCT Combate à Fome: Estratégias e políticas públicas para a realização do direito humano à alimentação adequada – Abordagem transdisciplinar de sistemas alimentares com apoio de Inteligência Artificial”, tem pela frente o desafio de contribuir de forma decisiva para ampliar os conhecimentos produzidos em seu campo transdisciplinar de pesquisa, inclusive suas possíveis aplicações, e torná-los socialmente mais influentes.

Certamente isso será tanto mais efetivo, como tem destacado a coordenadora do novo instituto, a pesquisadora Dirce Maria Lobo Marchioni, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, quanto mais intensa for a articulação do INCT com os vários setores responsáveis pelas políticas públicas de combate à fome e mais fecundo seu diálogo com a sociedade. Tem-se em mente, claro, a sociedade como um todo, que precisa ser informada e sensibilizada sempre sobre as várias facetas dessa macro questão nacional, mas em especial os segmentos sociais mais vulneráveis, que têm um caminho a percorrer para se apropriar da compreensão da garantia de uma alimentação saudável como direito básico e inalienável de todas as cidadãs e todos os cidadãos.

 

Registre-se que a fome não é objeto de pesquisa novo nem incipiente no Brasil. Faz já 70 anos que o sociólogo Josué de Castro lançou o seminal Geografia da Fome, e desde então ela se manteve como foco de estudo de grupos de pesquisa espalhados pelo país todo. Três décadas depois, como lembrado por vários dos palestrantes no evento de 26 de abril, na Biblioteca Brasiliana Guta e José Mindlin, na USP, foi a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” que a recolocou no centro dos debates e de uma mobilização nacional inédita. Lançada e liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, um intelectual e ativista pelos direitos humanos, armada com seu poderoso slogan, “quem tem fome tem pressa”, a campanha desmascarou um pouco mais a real natureza da ditadura que se apagava (1964-1985), apressando talvez o seu fim, e inspirou novos estudos sobre o problema.

“Desde a Constituição de 1988 houve uma considerável ampliação das políticas públicas e de ações da sociedade civil no combate à fome e à insegurança alimentar”, observaram no artigo já citado do Estadão os coordenadores do GT da USP. Comemorou-se a saída do país do mapa mundial da fome em 2014. Mas seu retorno, poucos anos depois, praticamente ao mesmo lugar, em decorrência da destruição do conjunto dessas políticas pelos governos de direita e extrema direita que assumiram a condução do país após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, elevaram a fome à condição atual de incontornável e dramática questão estratégica.

Ora, 33 milhões de pessoas passando fome (com a incorporação de mais 14 milhões delas ao triste contingente que permanecera nessa situação, mesmo com as políticas públicas adotadas) e cerca de 125 milhões de brasileiras e brasileiros em situação de insegurança alimentar configuram, de fato, uma tragédia. A consciência a esse respeito exige uma abordagem transdisciplinar audaciosa e inovadora. E é exatamente a isso que visa a configuração do INCT Combate à Fome em seus cinco eixos de trabalho articulados, nos quais se distribuem, até agora, 78 pesquisadores de várias universidades brasileiras, mais uma dezena de estrangeiras e outras poucas instituições de pesquisa.

De forma muito sintética, os eixos são Saúde e Nutrição; Políticas Públicas; Cadeia de Valor; Inteligência Artificial; e Comunicação. Com os estudos próprios propostos por cada eixo e seus subeixos, será sem dúvida um bom aprendizado articulá-los desde o começo e em diferentes momentos (tendo em mente o conceito de transdisciplinaridade), dentro de uma variedade ambiciosa de objetivos comuns. Incluem-se entre eles (1) investigar a insegurança alimentar, os desafios e estratégias para atender o direito humano à alimentação adequada; (2) identificar os fatores que determinam a produção sustentável de alimentos, a redução dos gargalos ao abastecimento e distribuição de alimentos saudáveis e a diminuição das perdas e desperdícios; (3) investigar os determinantes sociais vinculados aos resultados de políticas públicas de alimentação e nutrição; (4) pesquisar, desenvolver e aplicar ferramentas e técnicas computacionais para coleta, fusão, processamento, armazenamento, análise, extração do conhecimento e disseminação de dados e informações sobre fome e insegurança alimentar em ambientes urbanos.

Inteligência Artificial e Comunicação, a par da produção de conhecimentos e inovação em suas próprias esferas, são entendidos como eixos transversais do conjunto do trabalho do INCT.

 

O que são INCTS, afinal?

Vale um papo rápido sobre que estruturas, afinal, são essas nomeadas por uma sopa de letrinhas bem conhecida dos pesquisadores, mas não muito familiar em outros territórios.

Esses institutos foram lançados como um programa pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), via CNPq, em 2008, com a adesão das fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs), que teriam que oferecer uma contraparte ao financiamento federal. O objetivo era, desde o começo, facilitar a reunião de múltiplos grupos de pesquisa para alcançar objetivos mais ambiciosos na produção de conhecimento e na geração de inovação em áreas estratégicas, seja para o desenvolvimento da própria pesquisa científica seja para avanços socioeconômicos considerados fundamentais. O aporte inicial de recursos proveria o funcionamento por cinco anos, renovável, após avaliação rigorosa dos resultados obtidos.

Dessa forma, em duas rodadas, a segunda em 2015, chegou-se ao total de 104 INCTs distribuídos pelo país. A seleção de 2022 resultou na aprovação de outros 58 institutos, entre eles, o INCT Combate à Fome. O texto disponível do CNPq sobre o resultado do edital, publicado em dezembro do ano passado, dá uma boa visão atual desse programa.

“Os INCTs apoiados deverão desenvolver projetos de pesquisa de alto impacto científico e tecnológico, priorizando a interdisciplinaridade, além de forte interação com o sistema produtivo, setor público e com a sociedade”, informa.

Adiante, explica que “a aprovação destes INCTs promove a ampliação de temas e áreas estratégicas para o país, como segurança alimentar, agricultura de baixo carbono, saúde única (one health), desigualdades e violência de gênero, inteligência artificial, nanofármacos, entre outras”. Lembra que o programa “caracteriza-se por grandes projetos de pesquisa de longo prazo, em redes nacionais e/ou internacionais de cooperação científica”, de olho em seu impacto científico e na formação de recursos humanos”.

Os104 INCTs que já estavam então em funcionamento, diz o informe, atuam “em diferentes áreas do conhecimento, envolvendo milhares de pesquisadores e bolsistas em temáticas complexas, em diferentes laboratórios e centros que integram as redes de pesquisa”.

 

Mulheres pobres e negras, o grupo mais vulnerável

Os coordenadores do INCT Combate à Fome e de seus eixos têm se referido com frequência ao grande volume de pesquisas relevantes sobre a questão da fome no país e ao número significativo de grupos de pesquisas a ela dedicados. A propósito, na segunda-feira, 15, a Agência Bori divulgou resultados vindos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo o relato, Arthur Saldanha, pesquisador de pós-doutorado da dessa universidade reforça a necessidade de se considerar a experiência de mulheres negras na formulação de políticas públicas de combate à fome e à insegurança alimentar, dado que “são as que mais enfrentam obstáculos no acesso a alimentos de qualidade”.

O relatório de Saldanha, informa a Bori, faz parte de uma série de estudos do grupo de pesquisa em Sociologia das Práticas Alimentares (Sopas), e demonstra que a vulnerabilidade das mulheres negras acontece porque “raça, gênero e cor são os fatores que mais influenciam na insegurança alimentar e nutricional no Brasil”, Na base disso, estão “baixa renda, menor grau de escolaridade e diferença salarial entre homens e mulheres, que levam ao aumento do trabalho informal e à redução do poder de compra”. Assim, o acesso a alimentos de qualidade é dificultado ou mesmo impossibilitado e diminui o número de refeições diárias.

 

O relatório de pesquisa divulgado pela Agência Bori que, aliás, inspirou a ilustração publicada pelo Ciência na Rua, nos leva de volta ao texto de Miranda S. H. G. e Cândido citado no início:

“Embora muito se fale sobre a indisponibilidade na oferta de alimentos como causa da fome, o caso brasileiro ilustra uma situação distinta. No Brasil, a fome deriva principalmente da falta de renda, seja pela ausência de oportunidades de empregos, de capacitação para os empregos existentes ou pelas limitações de acesso a recursos produtivos. Logo, cabe reforçar a necessidade de políticas de criação de empregos e a promoção do crescimento da economia.”  Certeiro.


Mariluce Moura integra o time de pesquisadores do INCT Combate à Fome e o Instituto Ciência na Rua é uma das suas instituições participantes

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