Por Erik Nardini
Produto desenvolvido a partir de células de animais vivos pelo Senai-Cimatec é promissor
Criar carne de laboratório, a lab-grown meat ou cultured meat para os falantes de língua inglesa, é uma experiência em curso em várias partes do mundo. Europa, América do Norte e Ásia – e aí, principalmente Singapura, único país que até o momento comercializa o produto – já apresentaram suas inovações em carne cultivada ao ambiente tecnocientífico e ao mercado. Agora, um grupo brasileiro de pesquisadores liderado pelas engenheiras Josiane Dantas e Tatiana Nery no Instituto de Sistemas Avançados de Saúde do Senai-Cimatec (Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia), em Salvador, começa a difundir seus avanços nessa mesma rota.
Saiba-se logo que, apesar de soar estranho, esse produto de laboratório é carne de verdade, obtida a partir de pequenas frações de células de bovinos, suínos, aves ou peixes saudáveis. O trabalho seguinte é fazer com que as células se multipliquem para serem, então, moldadas em bioimpressoras, assegurando-se de que ganharão nessa etapa a aparência a que estamos habituados – até aí nada lembra sequer remotamente um pedaço de carne de qualquer animal, tudo que se tem são partículas soltas.
O processo começa com a obtenção de células musculares e de gordura dos animais por biópsia, uma extração de material similar à usada em pessoas, por exemplo, para exame de cistos e tumores. “Essa técnica tem sido cada vez mais estudada para chegar a modelos que protejam os animais e sejam o menos invasivo possível”, diz Dantas. Em resumo, os animais seguem com a vida normal após o procedimento.
A escolha dos doadores do material na pesquisa do Senai-Cimatec recai sobre animais jovens, donos de células com maior desempenho e capacidade de replicação. Outros grupos de pesquisa trabalham com a coleta de células tronco que, numa segunda etapa, são diferenciadas entre células musculares e de gordura, cujo equilíbrio será sempre importante para garantir a aparência e o sabor de um bife tradicional.
Há, claro, nas pesquisas da carne cultivada uma busca por “replicar e aumentar o volume de células produzidas, a partir de uma pequena porção de material”, diz Tatiana Nery, gerente da área de alimentos do Senai-Cimatec. Hoje, isso ainda não é possível, mas a ideia está no horizonte tecnológico. As células funcionariam como a “massa madre” da panificação, o fermento ancestral que alimenta novas fornadas de pão, para a proteína animal. Entretanto, visando à qualidade do processo no longo prazo, essas culturas celulares devem ser reiniciadas com frequência para evitar contaminações e variações genéticas.
Segundo Rosana Goldbeck, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (FEA/Unicamp), a chave para esse intento parece estar no isolamento de células robustas e geneticamente favoráveis a um desempenho consistente ao longo de muitos ciclos de produção. A produção que se poderia chamar de “infinita” de proteína animal viria “a partir de uma determinada linhagem celular”, explica. Essa estratégia “deve contribuir com a redução dos custos da carne cultivada”, acrescenta.
Dos tanques à impressora
O ambiente em que se multiplicam as células extraídas por biópsia são os biorreatores, espécie de tanques com capacidade desde mililitros a centenas de litros. Seguros, esses equipamentos largamente utilizados na produção de alimentos cotidianos, como iogurtes, manteigas e cervejas, permitem o estrito controle do grau de acidez da solução (pH), de sua temperatura, oxigenação, agitação e outros fatores críticos para a indústria de base biotecnológica.
Dentro deles, as células são cultivadas numa mistura líquida complexa que busca simular nutrientes, reações e condições de crescimento do corpo dos animais e, assim, propiciar o ambiente para que possam se replicar e, adiante, formar proteínas. Depois de quatro a cinco dias nos biorreatores, ou até que os pesquisadores estejam satisfeitos com o grau de replicação, a aparência e outras características da matéria-prima, entra em cena a tecnologia de bioimpressão, implantada na instituição de Salvador com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Em síntese, as células em suspensão (meio líquido) são depositadas num hidrogel, composto por biomateriais comestíveis e biocompatíveis usados normalmente na indústria de alimentos. Já aí a geometria e a forma de bife são importantes para definir o tamanho e a textura do produto impresso. “A bioimpressora vai depositando as camadas de músculo e de gordura de acordo com a geometria e tamanho que definimos no começo da impressão”, explicam Josiane Dantas e Tatiana Nery.
Alguém já provou no Senai-Cimatec essa carne impressa e, em teoria, pronta para o consumo? Não! “Estamos muito curiosas, mas aguardando alguns protocolos internos de segurança para iniciar a degustação”, contam as pesquisadoras.
O produto vai pegar?
O brasileiro em geral é carnívoro. Segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento, cada um de nós deverá consumir o equivalente a 24,8 quilos de carne em 2022, numa média de dois quilos de proteína animal por mês. Parece bastante, mas a queda tem sido acentuada ao menos desde 2012, quando o consumo per capita de proteína bovina alcançava os 35 quilos por ano.
Razões para essa redução podem ser encontradas em uma porção de fatores. O primeiro tem a ver, sem dúvida, com aumento de preços e aumento da pobreza no país, que recentemente voltou ao mapa mundial da fome. Há também cada vez mais gente preocupada com questões ambientais e com a pegada de carbono associada ao consumo de carne. Outros estão mudando os hábitos alimentares por razões de saúde, em especial os riscos de problemas cardíacos associados ao consumo desmedido de produtos de origem animal.
Há, ainda, outro ponto que não se deve negligenciar: o bem-estar dos animais. Afinal, cada pedaço de carne no prato representa vida abatida em nome da lei do mais forte que dita a cadeia alimentar. No caso de embutidos, diferentes animais morrem para dar origem à carne compactada.
De todo modo, por enquanto não é possível pedir no açougue um quilo de carne de laboratório fatiada no capricho. O produto ainda não está disponível e estima-se que seus custos sejam ainda bastante elevados. Dados do mercado reportam que os primeiros protótipos de um hambúrguer obtido de células cultivadas chegaram a custar US$ 200 mil, em 2016, segundo as pesquisadoras do Senai-Cimatec. “Hoje startups relatam conseguir produzir o mesmo hambúrguer por US$ 100”, diz Josiane Dantas. Portanto, ainda é caríssimo, inviável em termos de mercado.
Outros dados consolidados em um artigo científico de revisão (Rubio et al., Nature Communications, 2014) revelam uma faixa de valores entre US$ 11 e US$ 520 por quilo, dependendo do processo e do meio de cultura empregado. “Com os esforços dedicados ao processo, espera-se uma maior paridade com os preços da carne convencional no futuro”, acredita Goldbeck. Dantas concorda que, à medida que a tecnologia avance, esses números tendem a entrar em queda livre – algo comum a todo tipo de tecnologia
Aliás, o Senai-Cimatec desenvolveu sua própria tecnologia para a carne de laboratório ao constatar que a literatura sobre o assunto era insuficiente. “Existem pouquíssimos trabalhos científicos com detalhes técnicos que possam ser replicados”, conta Josiane Dantas. O plano agora é continuar aperfeiçoando o projeto e vencendo obstáculos antes de licenciar a tecnologia para empresas interessadas em escalonar a produção. São desafios, por exemplo, a textura, cor e sabor, que devem transmitir a sensação de que se está ingerindo uma carne convencional. “É por isso que o projeto conta com uma equipe multidisciplinar, para incluir diferentes competências até chegarmos ao produto ideal”, comenta a engenheira Tatiana Nery.
Se a carne de laboratório será importante para a proteção ao meio ambiente e à vida animal, se, como observa Tatiana Nery , dados demonstram que “a tecnologia gera uma menor emissão de gases de efeito estufa em comparação com a prática atual de produção de carne, além de um menor consumo dos recursos hídricos e de uso de solos, por exemplo”, ela também tem seu calcanhar de Aquiles. Segundo Rosana Goldbeck e Bárbara Flaibam, mestranda em Engenharia de Alimentos da Unicamp, se há benefícios como apontado por Nery, os índices de consumo de energia elétrica dessa tecnologia, motivados pelo uso dos biorreatores, têm gerado discussões. “Mas é algo que pode ser contornado com a aplicação de fontes renováveis de energia”, assinalam.
Resta saber como o agronegócio reagirá à carne de laboratório. A Associação Brasileira de Criadores (ABC Criadores) não atendeu aos pedidos do Ciência na Rua para fazer um comentário a respeito de como vê a carne cultivada. Os mais recentes dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) indicam que a agropecuária no Brasil ocupa o segundo lugar entre os setores que mais emitem GEE no país, com responsabilidade sobre 27% de todas as emissões de gases de efeito estufa. Em mais detalhes, a atividade pecuarista foi a responsável por mais de 300 milhões de toneladas – cerca de 18% – das 2,16 bilhões de toneladas que o Brasil despejou na atmosfera em 2020.
Uma pergunta final importante: você comeria carne produzida num laboratório? Aparentemente, há muita gente disposta a isso. Uma pesquisa realizada em 2017 (Bryant e Barnett, Meat Science, 2018), com consumidores de proteína animal revelou que 65,3% da amostra manifestaram disposição para experimentar carne cultivada em laboratório. Desses, 32,6% revelaram que estariam tranquilos para consumi-la regularmente. 47,7% titubearam e afirmaram preferir substitutos de carne à base de soja.