jornalismo, ciência, juventude e humor
Um sopro de alegria entre sombras
Política científica

por | 28 jul 2021

Em meio a apagão no CNPq e mortes de importantes acadêmicos, medalhas olímpicas foram dos poucos motivos para sorrir nos últimos dias

Rayssa Leal, 13 anos, durante competição de skate dos Jogos Olímpicos de Tóquio (foto: Breno Barros / rededoesporte.gov.br)

Difíceis os últimos dias para a academia, difíceis para o Brasil, cortados embora, aqui e ali, pelo sopro de alegria vindo de Tóquio, graças aos feitos de Rayssa Leal, Ítalo Ferreira e outros atletas parecidos com eles. Vocês repararam bem em seus rostos? Repararam no sorriso cativante de Rayssa, na graça e potência em movimento de seu corpo adolescente? Repararam na timidez, na acanhada simplicidade em terra firme de quem havia pouco fora um colosso no enfrentamento de grandes ondas no mar? Se sim, como creio, o que viram foram gratificantes e enternecedoras faces reais do povo brasileiro, nada de dondocas arrogantes e dondocos mimados do esporte que, definitivamente, não estão se saindo bem dessa jornada. Há, claro, outras faces, feias faces, na composição desse sempre impreciso conceito de povo, e os últimos dias mostraram também seu bafo nojento, mortífero, seus arreganhos, que hoje, a rigor, não sabemos em que vai dar, se é que vai. O horizonte é todo de incertezas.

Mas, vamos à academia: só em São Paulo, registramos a notícia da morte de José Arthur Giannotti, 91 anos, referência fundamental da filosofia no Brasil, na terça-feira, 27; do matemático Marco Antônio Raupp, 83 anos, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), no sábado, 24; do filósofo Roberto Romano, 75 anos, professor titular de ética e política da Unicamp, na quinta, 22. Em diferentes batalhas, em distintas dimensões, foram todos construtores importantes de conhecimento no país e francos opositores de regimes políticos autoritários, os violentamente escancarados, como a ditadura militar de 1964-1985 ou os levemente disfarçados, como o comandado pelo atual governo brasileiro.

As sombras sobre o ambiente acadêmico, no entanto, não estancariam nessas notícias tristes. Na terça, um medo avassalador se espraiou pelas redes de quase 80 mil pesquisadores doutores (77,8 mil em 2020) registrados na Plataforma Lattes, parte considerável dos 320 mil estudantes de pós-graduação e milhares de alunos de graduação que nela mantêm seus currículos, ante a informação de que todos os bancos de dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), um pilar fundamental do sistema nacional de ciência e tecnologia, haviam sido apagados – e sequer se dispunha de backups.

Além das plataformas Lattes, que inclui a plataforma dos currículos, a dos diretórios dos grupos de pesquisa do país, a do diretório de instituições e o extrator Lattes, o problema alcançaria a plataforma Carlos Chagas, por onde transitam todas as informações e resoluções da concessão de auxílios à pesquisa no país. Desenhava-se um apagão absolutamente trágico e inédito para o funcionamento do sistema nacional de ciência e tecnologia.

Aparentemente, e a confiar nas declarações oficiais, a extensão e a profundidade do problema não atingem os níveis que originalmente se pensava. Mas, no momento mesmo em que escrevo esse texto, quase 14 horas da quarta-feira, 28, todas as plataformas do CNPq continuam indisponíveis e exibindo o comunicado divulgado na véspera, nesses termos:

“Em continuidade aos comunicados sobre a indisponibilidade dos sistemas do CNPq, incluindo as Plataformas Lattes (Currículo Lattes, Diretório de Grupos de Pesquisa, Diretório de Instituições e Extrator Lattes) e Carlos Chagas, esclarecemos:
O problema que causou a indisponibilidade dos sistemas já foi diagnosticado em parceria com empresas contratadas e os procedimentos para sua reparação foram iniciados.
O CNPq já dispõe de novos equipamentos de TI e a migração dos dados foi iniciada antes do ocorrido. Independentemente dessa migração, existem backups cujos conteúdos estão apoiando o restabelecimento dos sistemas. Portanto, não há perda de dados da Plataforma Lattes.
O pagamento das bolsas implementadas não será afetado.
Todos os prazos de ações relacionadas ao fomento do CNPq, incluindo a Prestação de Contas, estão suspensos e, de ofício, serão prorrogados.
Os comunicados oficiais do CNPq são feitos exclusivamente por meio dos canais oficiais na internet: site e redes sociais. Manteremos todos atualizados sempre que houver novas informações sobre a questão.
Para demais dúvidas, entre em contato com a Central de Atendimento pelo telefone 61 3211 4000 ou pelo e-mail cnpq@mctic.gov.br
Reforçamos que o CNPq/MCTI estão comprometidos com a restauração do acesso aos sistemas operacionais com a maior brevidade possível.”

Na tarde desta quarta-feira, o CNPq divulgou ainda um vídeo sobre o tema, reiterando as informações sobre prazos, pagamentos e ausência de danos permanentes às plataformas e afirmando que a situação será normalizada até a quinta-feira.

É fato amplamente comentado, há meses, na comunidade científica brasileira que a suspensão de contratos com empresas que trabalhavam na manutenção dos sistemas e bases de dados do CNPq estava a colocá-los todos sob risco. Sobram histórias entre os pesquisadores de apagamentos de dados de relatórios de pesquisa no momento mesmo da transmissão do documento. E o setor de segurança do Conselho tinha conhecimento dos problemas. Não há o que estranhar nesses dissabores, quando se verifica que o orçamento do órgão, em 2021, é de apenas R$1,21 bilhão, equivalente a 51,5% do orçamento do ano 2000, quando o Brasil tinha, por exemplo, 162 mil estudantes de pós-graduação, metade do contingente de hoje. Ou quando se observa que, em 2013, o orçamento do CNPq era de R$3,14 bilhão. A partir de 2016, governo Temer, os valores orçamentários começam a cair dramaticamente até atingir o patamar presente que apenas reafirma a disposição destrutiva do atual governo em relação ao sistema de C&T e seus mecanismos públicos de financiamento. Com dados oficiais do Sistema Integrado de Operações (Siop) do governo, há muito mais a ser destrinchado nessa questão do apagão, e o Ciência na Rua voltará a ela.

A falta que Giannotti fará

Voltemos brevemente às perdas sofridas pela comunidade acadêmica nos últimos dias. Sobre a morte de Giannotti, Marilena Chauí, sem dúvida a outra grande referência da filosofia no país, professora emérita da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), disse que “é uma perda enorme para o pensamento brasileiro, para os estudiosos do marxismo” e, claro, “uma perda muito grande para os amigos também”. Marilena, que lidera uma corrente filosófica distinta da que Giannotti representava, lembrou que ele foi seu primeiro professor na USP.

“Tinha uma personalidade impositiva, momentos de grande fúria diante da ignorância dos alunos e, ao mesmo tempo, uma exigência filosófica que só um grande pensador pode ter”, acrescentou.

O sociólogo José de Souza Martins, também professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP), por mensagem que me enviou via whatsapp, lembrou que Giannotti “foi aluno de João Cruz Costa, a maior autoridade brasileira em positivismo”. Perseguido pelo regime militar, ele conta, “foi interrogado por um tenente-coronel do Exército que o fez cantar o Hino Nacional e lhe perguntou se sabia o que queria dizer Ordem e Progresso”. Vê-se que o lado ridículo dos regimes autoritários, e não só o cruel, é insistentemente repetitivo. O próprio Giannotti contou um pouco sobre esses tempos em uma entrevista neste vídeo.

“Gianotti foi meu professor, num curso sobre Feuerbach, e colega na Faculdade de Filosofia   Ciências e Letras da USP quando dela me tornei professor. Inovou na concepção do currículo de Filosofia e mesmo na didática com os seminários monográficos sobre autores relevantes”, Martins lembra. Acrescenta que o filósofo “foi uma das vítimas da burrice e da ignorância oficial do regime ditatorial,  cassado no início de 1969 e proibido  de lecionar.  A ditadura armada até os dentes, supostamente, podia  cair em consequência das aulas e do saber desarmado  de um professor  de filosofia, sobre a obra de Feuerbach”.

Participei em 2003, juntamente com Luiz Henrique Lopes, professor de filosofia, e Neldson Marcolin, também jornalista, de uma longa entrevista com Giannotti para a revista Pesquisa Fapesp, que julgo bastante esclarecedora sobre o seu trabalho para os não iniciados em filosofia. Adiante, em 2011, também para a revista fiz uma resenha do livro que reúne parte de seus artigos na imprensa, Notícias no espelho. E destaco aqui uma resenha publicada no caderno Ilustríssima, da Folha, sobre o último livro de Giannotti, da lavra de outro filósofo, João Carlos Salles.

Para concluir: uma semana que reúne perdas de intelectuais e/ou cientistas brasileiros de grande importância a notáveis ganhos nos esportes de jovens brasileiros cheios de viço e alegria, talvez nos leve de volta, pelo menos por um par de horas, a um ambiente em que a sensação de que não há porque temer demasiadamente as ameaças dos generais, como quer Marcelo Coelho pode fazer algum sentido.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade