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Ritmo, graça e encanto: quando as culturas popular e midiática encontram a ciência
Ciência e cultura

por | 3 fev 2021

Atenção, leitores! No rastro de uma disseminação sem precedentes de questões científicas e terminologia técnica, provocada por uma pandemia avassaladora que invadiu praticamente e em termos globais todas as dimensões da vida humana, estão se multiplicando entre nós formas criativas de abordar e expressar temas do conhecimento científico numa pegada de cultura popular ou de cultura midiática.

Essa é, em meio a tantas ruins e duríssimas, uma bela notícia, dado que um dos maiores desafios para a ampliação da cultura científica em determinada sociedade é precisamente como fazê-la entranhar-se na cultura lato sensu dessa sociedade. Ou melhor, como facilitar a apropriação real pela cultura popular de temas científicos socialmente relevantes e, em consequência, sua reelaboração ou recriação por atores diversos.

As últimas semanas têm sido pródigas em exemplos nesse sentido. Em paralelo ao sucesso estrondoso do clipe Bum Bum Tam Tam / Bu Bu Tan Tan, (funk original lançado em 2017) nas novas versões do rapper MC Fiote, e à enorme repercussão, mais que justa, do vídeo cheio de rigor histórico e graça, ou mais exatamente, hilário, do estudante de engenharia baiano Ivan Mesquita sobre Vital Brasil (no Instagram), que ele chama simplesmente de Vits, e o Butantan, há outras inspiradas produções recém lançadas de alcance mais modesto que merecem atenção.

Por exemplo, há um gibi sobre as vacinas contra covid (em PDF aqui) concebido pela biomédica Monica Levy Andersen, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dona de um alentado currículo de pesquisadora, e um filme animado da lavra de um grupo de jovens pesquisadoras do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva da Universidade de São Paulo (LAAAE-USP) sob a liderança de Mariana Inglez, além de doutoranda, uma ativa militante das causas feministas e raciais dentro do ambiente acadêmico.

Antes de detalhar um tantinho esses trabalhos, vamos sublinhar aqui a pura poesia do funk que canta “A vacina envolvente que mexe com a mente / de quem tá presente. A vacina saliente / vai curar muita vida e salvar muita gente. Vem cá vacina, tam / Vem cá vacina tan tan tan“. E depois vamos ainda nos entregar por alguns minutos ao riso franco ante a indagação de Mesquita, em ritmo impagável e sotaque delicioso, “Venha cá, véio, você conhece Vital Brasil? Não, né do Paralamas do Sucesso, não, é do Butantan, o instituto. O pivete era correria, viu? Trampava de vários corres, ele! Empreiteiro, motorista de aplicativo de bondinho, carregador de peso, levava as compras das coroas do mercado, tá ligado? Não tinha tempo ruim pra Vits! E aí ele pegava o dinheiro que juntava e pagava suas compras do mês e seus estudos, que ele queria era cursar medicina…” Se não viu, sugiro que veja! Ambos.

Quanto à encantadora animação, em 2’24”, numa cena noturna em uma família nuclear de pessoas negras, a pergunta da garotinha, “de onde viemos?”, leva a uma espécie de fragmento de aula fácil e atraente ministrada pela mãe sobre métodos científicos. O pai não fica sem função na cena: hora de dormir, levará a filha para a cama após a resposta da mãe.

Mariana Inglez, em email para o Ciência na rua, explica que na origem dessa animação está o projeto Evolução para todes, fundado por ela, Lisiane Müller e Eliane Chim, com o propósito de compartilhar suas áreas de estudo – arqueologia, antropologia e evolução humana – com um público mais amplo. Mas não só, também lhes interessava discutir com esse público temas sensíveis à experiência pessoal de cada uma na academia: a disparidade de gênero, questão comum às três, e em seu caso particular, na condição de mulher negra, os reflexos sentidos da desigualdade racial ao longo de seu processo de formação. “Nosso objetivo sempre foi ter um projeto que contribuísse de alguma maneira para a construção de uma ciência mais diversa e inclusiva, com foco, portanto, em sair dos muros da USP e conversar principalmente com meninas, mulheres e pessoas negras”, diz.

Antes de chegar à animação, o grupo teve uma experiência piloto com meninas de 14 a 17 anos que fortaleceu sua visão de que havia muito a fazer para construir “novos imaginários possíveis” e contribuir “com a representatividade para a expansão de horizontes de nossas crianças e jovens não brancos e com menos privilégios no ponto de vista socioeconômico”. E depois de “quebrar a cabeça” pensando em uma forma mais durável de comunicação do que os efêmeros posts nas redes, discutindo também o assunto com Natasha Felizi, diretora de divulgação científica do Instituto Serrapilheira (instituição que apoia o Evolução para todes), tiveram a ideia de criar animações.

“A ideia pareceu perfeita. Além de nos permitir brincar com nossos imaginários para a construção dos personagens e dos cenários, conseguimos também produzir um material no qual crianças que poucas vezes se veem representadas  na telinha podem se olhar e se reconhecer, se inspirar a olhar para o mundo de forma criativa, questionadora, e por que não?, aprender sobre evolução humana”, ela conta.

Quanto à aventura da produção da animação propriamente, segundo Mariana, começou pela busca por profissionais negros na área de comunicação e produções em audiovisual. “ É necessário uma busca ativa. Todas as indicações que recebíamos eram de profissionais brancos. Se há desigualdade racial na academia, é preciso lembrar que nessas outras áreas, também bastante elitistas, há uma maioria de profissionais brancos”, ela relata.

Terminaram encontrando Raul Perez, coordenador da produtora Mundi, “ especializada em pautas raciais e de gênero e engajada na inclusão de pessoas negras na comunicação”. A liga deu certo. Para as animações, contrataram o coletivo Noiz Anima, da Zona Leste de São Paulo. “E sob coordenação de Ivanildo Soares, com produção também de Luiz da Silva, vimos nossa personagem, Mari (não por acaso), criar vida”, ela relata.

Página do gibi Dona Ciência sobre vacinas

É tempo ainda de falar do ótimo gibi da lavra de Monica Andersen. Também em email ao Ciência na rua, para explicar como surgiu a ideia de fazer uma longa história em quadrinhos (25 páginas) sobre as vacinas contra Covid, ela observa que a coleção da Dona Ciência já tem 30 fascículos publicados. E outros seguem em preparação.

“Sempre procuramos fazer gibis sobre temas atuais e de interesse para a sociedade. Diante da situação atual de vacinas e notícias na mídia é importante informar corretamente as pessoas sobre os benefícios das vacinas”, ela ressalta.

A elaboração de cada gibi pode levar de dias a semanas. Mas no fascículo das vacinas, em especial, “as autoras Laís F. Berro, Daniela Santoro Rosa (texto) e Mônica Oka (ilustração), extremamente eficientes, rápidas e motivadas”, não levaram mais que 14 dias entre a ideia inicial e o formato publicado. Monica ressalta que embora a coleção da Dona Ciência seja voltada ao público infantil, “diante do interesse de adolescentes e adultos, entendemos que o material é informativo e é independente de idade”.

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