Herton Escobar, Jornal da USP
Encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizado nesta semana no campus da UnB, resgatou um papel histórico de resistência democrática dessas instituições
O presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Evaldo Vilela, mostrou uma única imagem durante sua participação num debate sobre políticas públicas, logo no primeiro dia da 74ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada nesta semana em Brasília. Era a foto de um frango, morto e depenado, pronto para ser levado ao forno e devorado.
Um espectador atrasado que entrasse na sala naquele momento poderia deduzir se tratar de uma representação simbólica da atual condição orçamentária da ciência nacional. Mas mais do que isso: a imagem, disse Vilela, simbolizava a crescente dependência do Brasil em ciência e tecnologia importada de outros países — inclusive em áreas onde o Brasil se destaca economicamente em nível mundial, como agricultura e pecuária. O Brasil é o terceiro maior produtor de carne de frango do mundo, e o franguinho assado é uma das comidas prediletas dos brasileiros, mas a genética dessas aves — ou seja, o DNA das galinhas que são produzidas aqui — é toda comprada de empresas estrangeiras, americanas e europeias.
“O que acontece é que a genética do frango é 100% importada”, disse Vilela, engenheiro agrônomo de formação e ex-reitor da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. “A gente importa as matrizes, que chegam aqui no Brasil, produzem ovos, e esses ovos são cruzados para dar o pintinho que é vendido. Então, na verdade, a gente fala que as mães dos nossos frangos são ou inglesas ou americanas, e suas avós estão na Inglaterra, na Holanda ou nos Estados Unidos.” O mesmo ocorre com os porcos, a soja, o milho e outros produtos do agronegócio nacional. “Temos o produtor rural muito empreendedor”, disse Vilela, “mas a dependência crescente da produção de alimentos no Brasil é muito clara”. Na produção de grãos, segundo ele, a dependência de tecnologias e de conhecimento científico importados é de 70%, “na melhor das hipóteses”.
E o que isso tem a ver com soberania nacional? Muita coisa, pois essa dependência externa deixa a segurança alimentar e econômica do País reféns de tecnologias estrangeiras — sendo que a ciência brasileira poderia perfeitamente gerar esse mesmo tipo de produto, se as universidades e as empresas nacionais contassem com o financiamento e incentivo adequados do poder público para isso. “É mais ou menos um paralelo do que aconteceu com a covid”, apontou Vilela, referindo-se às dificuldades que o Brasil enfrentou num primeiro momento para a obtenção de vacinas, testes diagnósticos, ventiladores mecânicos e outras tecnologias importadas, essenciais para o enfrentamento emergencial da pandemia.
A fala do presidente do CNPq se deu no primeiro dia de atividades da Reunião Anual da SBPC, que é tradicionalmente o maior evento sobre ciência e tecnologia do País, e que neste ano foi pautada pelo tema Ciência, independência e soberania nacional. Realizada na Universidade de Brasília (UnB), na capital federal, de 24 a 30 de julho, a reunião foi marcada por fortes discursos em defesa da ciência, da educação e da democracia — nesse sentido, resgatando um papel histórico desempenhado pela SBPC durante a ditadura militar, quando suas reuniões anuais se tornaram importantes atos de resistência ao autoritarismo da época. Em 1977, o governo militar boicotou a realização da reunião, que deveria ocorrer em Fortaleza, no Ceará, mas o encontro acabou acontecendo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a convite de Dom Paulo Evaristo Arns.
“Aos poucos a SBPC se tornou um grande fórum nacional, sobretudo no período do governo militar; um dos únicos, e não deixou de existir depois que as associações estudantis e sindicatos foram fechados, e o Congresso Nacional tornado inoperante”, disse, em um depoimento gravado, o físico e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) José Goldemberg, ao receber uma homenagem na cerimônia da abertura da reunião. “Foi a legitimidade da SBPC, na defesa dos seus princípios, a causa principal do seu sucesso, e ela não pode abandonar esse papel, sobretudo numa época em que novas ameaças aparecem no horizonte,” completou Goldemberg, aos 94 anos.
“Quero começar pela prioridade zero do Brasil hoje, que é a defesa da democracia”, disse o também professor da USP, filósofo e atual presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, em sua fala de abertura da reunião. A entidade lançou um abaixo-assinado em defesa das urnas eletrônicas e incluiu esse tema na pauta de eventos da semana. “A gente tem uma tarefa (neste ano), que é garantir que as eleições este ano ocorram”, disse a presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e doutoranda no Programa de História Econômica da USP, Flávia Calé da Silva. “Vencida essa batalha das eleições democráticas, é preciso, nos marcos do bicentenário da nossa independência, construir uma agenda que garanta a real independência do nosso país.”
A reunião foi realizada em formato híbrido, com uma programação de 117 atividades presenciais e 110 virtuais. Como de costume, em anos eleitorais, os principais candidatos à presidência da República foram convidados a comparecer e debater com a comunidade científica. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou na quinta-feira (28) e Ciro Gomes, na sexta-feira (29). A campanha do presidente Jair Bolsonaro também foi procurada, mas não respondeu ao convite.
Os candidatos receberam cópias de um documento intitulado Projeto para um Brasil novo, preparado pela SBPC, com base em uma série de seminários virtuais realizados entre março e junho deste ano, sobre 12 temas estratégicos: Ciência, tecnologia e inovação; Educação básica; Educação superior; Pós-graduação; Saúde; Meio ambiente; Direitos humanos; Segurança pública; Diversidade de gênero e raça; Mudanças climáticas; Cultura; e Questão Indígena.
A defesa da democracia também é lembrada, com uma mensagem colocada em destaque logo nas primeiras páginas: “O conjunto de propostas deste documento estrutura-se dentro do ideário de um Estado Democrático e de Direito. Portanto, o compromisso dos candidatos que precede todos os demais é a defesa intransigente da Democracia e de suas instituições e processos guardiões, bem como a Defesa da Constituição Cidadã de 1988, o que implica na luta pela revogação de quaisquer emendas constitucionais que ferem os seus pilares.”
O documento traz uma coletânea de recomendações de políticas públicas para cada um desses temas, incluindo a recomposição dos investimentos federais em educação, ciência e tecnologia, fortemente dilapidados nos últimos anos. “O desenvolvimento científico e tecnológico é um dos pilares centrais de uma economia sustentável e moderna, que reduza as desigualdades sociais e traga prosperidade ao nosso país. Esse desenvolvimento deve guiar-se pelo atendimento aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e deve ser estruturado como uma política de Estado. O estabelecimento dessa política deve ter a Educação como pilar”, diz o texto. A ideia é que os candidatos — não só à Presidência, mas também aos governos estaduais e ao Legislativo — subscrevam ao documento, como uma demonstração de apoio aos seus princípios e propostas.
Em um evento paralelo à programação oficial da SBPC, várias lideranças do mundo científico e acadêmico participaram de um ato público em que foi divulgado um manifesto de pré-candidatos do setor a vagas no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas estaduais. “O desmonte das instituições públicas, na direção do estado mínimo, é a marca de um governo que aprofunda a agenda neoliberal e um ajuste fiscal irrealista. Vamos na direção oposta dos países desenvolvidos e, ultrapassando as piores previsões, caminhamos na direção do obscurantismo, sob um governo que nega a ciência em cada um de seus atos e retrocede na formação da população”, diz o manifesto, intitulado Educação e ciência para reconstruir o país, subscrito por mais de uma centena de pré-candidatos, incluindo vários ex-dirigentes e docentes de universidades públicas.
“Se queremos, de fato, produzir inovação nos setores em que somos competitivos, isso não é possível sem ciência”, destacou o professor Glaucius Oliva, do Instituto de Física de São Carlos da USP, numa mesa-redonda sobre a Importância da ciência e tecnologia para a independência do País, organizada pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq).
Na campanha de 2018, Bolsonaro prometeu fazer da ciência uma prioridade e elevar os investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento ao patamar de 3% do PIB nacional. Fez o contrário: o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) foi o que mais encolheu dentro do governo nos últimos anos; o nível de investimentos no setor mal chega a 1% do PIB (bem abaixo do patamar de países desenvolvidos, que investem entre 2% e 5%); o orçamento das universidades federais foi drasticamente reduzido no período; o valor das bolsas de pós-graduação permanece estagnado desde 2013; há um êxodo crescente de acadêmicos e cientistas para o exterior; e o número de pesquisadores por milhão de habitantes no País (cerca de 880) permanece muito abaixo do patamar de países desenvolvidos (na Coreia do Sul, por exemplo, são quase nove mil). Tudo isso, agravado por um negacionismo científico candente sobre diversos temas.
O economista Marcus David, reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), disse que as universidades federais brasileiras vivem, “sem dúvida nenhuma, a crise mais grave de sua história”, e que essa “estratégia” de cortar recursos da Ciência e da Educação “deixará o Brasil dependente de forma perene”. As universidades públicas, federais e estaduais, são responsáveis por mais de 90% da ciência produzida no País. “Precisamos urgentemente da recomposição do orçamento do MEC e do MCTI para que o País possa comemorar os 200 anos da Independência com a perspectiva de uma real independência da nossa nação”, afirmou David, na abertura do evento.
A reitora da UnB, Márcia Abrahão Moura, também não poupou críticas ao governo federal. “É preciso dizer com todas as palavras: as decisões governamentais sobre o orçamento para Educação promovem um caos proposital, com a clara intenção de minar o ensino superior público, gratuito e democrático”, disse ao microfone. “Estamos aqui na reunião da SBPC para dizer não à situação em que nos encontramos e dizer sim a um futuro em que a ciência esteja na base das decisões governamentais. A sociedade brasileira não permitirá a continuidade do sucateamento proposital de um setor que promove inclusão e excelência. Não admitiremos a propaganda enganosa da balbúrdia, quando o que se faz na universidade é unicamente o cumprimento de uma missão delegada constitucionalmente por todos e para todos: desenvolver uma nação soberana e democrática, a partir do conhecimento.”
Apesar da ausência de Bolsonaro nos debates, vários representantes de sua gestão participaram da reunião, incluindo o ministro Paulo Alvim (do MCTI) e dirigentes das principais agências de fomento à ciência e à educação do governo federal (CNPq, Capes e Finep). A despeito de todas as críticas e cobranças da comunidade científica, mantem-se um diálogo respeitoso entre as partes.
“Estamos todos no mesmo barco”, disse Alvim, em uma conferência no dia 25. Formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Ciência da Informação pela UnB, Alvim assumiu o ministério em março, depois que o astronauta Marcos Pontes abdicou do cargo para concorrer a uma cadeira de deputado federal. “A gente sempre trabalhou pela ciência e tem um compromisso efetivo com o desenvolvimento, porque a gente acredita que o que transforma é educação, ciência e tecnologia.”