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Afinal, o que é o IPCC?

Na quinta-feira, 8 de agosto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC, na sigla em inglês) divulgará o Relatório Especial sobre Mudanças do Clima e Ecossistemas Terrestres. O painel costuma ser alvo de muita atenção quando divulga seus relatórios, desde que o tema do aquecimento global começou a se impor à opinião pública. Em 2007, chegou a ganhar o prêmio Nobel da Paz, junto com o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore – que, na época, se empenhava em divulgar o documentário Uma verdade inconveniente – “pelos esforços em construir e disseminar maior conhecimento sobre a mudança climática causada pelo homem, e estabelecer as fundações para as medições que são necessárias para combater essa mudança”.

Rajendra K. Pachauri, então presidente do IPCC celebra, em Oslo, o Nobel da Paz 2007 (foto: Bair175 – CC BY-SA 4.0)

O que é o Painel?

Criado em 1988, em resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o IPCC é uma organização científica que busca municiar formuladores de políticas com avaliações regulares sobre a base científica da mudança climática, seus impactos e riscos futuros e opções para adaptação e mitigação de seus efeitos. Iniciativa conjunta da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Painel foi uma resposta à constatação de algumas anomalias que estavam sendo detectadas na atmosfera a partir de medições. “Só que ainda não existia o entendimento muito claro do que estava causando essas anomalias”, explica Thelma Krug, vice-presidente do IPCC.

Krug, doutora em estatística espacial pela Universidade de Sheffield (Reino Unido) e pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), foi Secretária Nacional de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental entre 2007 e 2008 e diretora de Políticas para o Combate ao Desmatamento, entre 2016 e 2017, ambos os cargos no Ministério do Meio Ambiente.

Sua relação com o IPCC começou em 2002, quando foi nomeada pelo governo brasileiro para ser co-presidente da Força-Tarefa em Inventários Nacionais de Gases de Efeito Estufa. À época, ela era negociadora do Brasil na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), posição que precisou abandonar ao ser eleita vice-presidente do IPCC em 2015. Desde Genebra, na Suíça, onde estava participando da reunião de aprovação do relatório especial, a especialista em sensoriamento remoto conversou por skype com o Ciência na Rua na quinta-feira, 1º de agosto.

O IPCC, é importante notar, não produz ciência. O que ele faz é estudar a ciência produzida globalmente a respeito das mudanças climáticas, sintetizar em relatórios de diferentes tipos e divulgar essas sínteses para que os governos, no âmbito da UNFCCC, tomem as medidas que julgarem adequadas. “A Convenção é o mundo político da discussão da mudança do clima, enquanto o IPCC é o mundo científico da discussão da mudança do clima. Então são dois fóruns que se retroalimentam, e explico essa retroalimentação: por ser um painel de governos, é claro que o IPCC deve servir prioritariamente às necessidades dos governos. Que tipo de necessidades são essas? Eles querem ter conhecimento do que a ciência está observando, o que os modelos estariam projetando de riscos, o que se pode fazer em termos de mitigação. Enfim, os governos querem ter uma agenda pró-ativa baseada na ciência. Então, é por isso que a gente diz que o IPCC é uma ponte, é uma interface mesmo entre a ciência e a política, porque os cientistas e os formuladores de políticas conversam entre si, através das reuniões do Painel”, conta Krug.

A UNFCCC, por sua vez, é um dos primeiros frutos da atuação do IPCC. A pesquisadora explica: “A Assembleia Geral, lá em 1988, quando endossou a criação do IPCC já solicitou um primeiro relatório fazendo um levantamento geral do estado da arte do conhecimento científico na questão relacionada à temática de mudança do clima. E sugeriu também que, nesse primeiro relatório, os autores já incluíssem alguns elementos que pudessem apoiar a criação de um fórum internacional, que acabou sendo a Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, durante a Rio 92. Teve muito de ciência apoiando a formação desta convenção pela sinalização muito clara de que a mudança do clima não poderia ser um assunto a ser tratado individualmente, tinha que ser um esforço coletivo de todos os países”.

De lá para cá, a pauta ambiental ganhou muita importância no mundo, e o IPCC foi um ator fundamental nessa mudança de perspectivas políticas. Seu segundo relatório, de 1995, ensejou a criação do Protocolo de Kyoto, em 1997, que entrou em vigor em 2005. Nesse protocolo, os países se comprometeram a reduzir a emissão de gases de efeito estufa, seguindo o princípio de “responsabilidades comuns mas diferenciadas”, ou seja, os países desenvolvidos, responsáveis pela maior parte da emissão desses gases ao longo da história, tinham metas mais ambiciosas de redução do que os países em desenvolvimento. Em 2007, ano do quarto relatório, vem o já citado prêmio Nobel. Em 2010, falhas pontuais foram descobertas no quarto relatório, tornando o Painel alvo de críticas e ataques, o que provocou algumas mudanças metodológicas e de procedimentos para ampliar a qualidade e a transparência do trabalho desenvolvido. O quinto relatório, de 2014, foi peça chave para a celebração do Acordo de Paris, negociado em 2015 para entrar em vigor em 2020, em que os países se comprometeram a buscar a meta de não deixar que a temperatura média do planeta ultrapasse, até 2100, 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais.

Thelma Krug é vice-presidente do IPCC desde 2015 (foto: INPE)

Como funciona o trabalho do IPCC?

O trabalho do Painel se divide em ciclos, que duram cerca de sete anos. Primeiro, os governos decidem o que será feito nesse ciclo. O atual, que é o sexto, iniciado em 2015, contempla os seguintes produtos: três relatórios especiais, sendo um sobre os efeitos do aquecimento global de 1,5°C (aprovado em outubro de 2018), um sobre aquecimento global e ecossistemas terrestres (esse que será divulgado agora) e um sobre oceano e criosfera (que vai ser analisado em setembro); um relatório para cada um dos três grupo de trabalho (grupo 1: base física da mudança do clima, grupo 2: impactos, adaptação e vulnerabilidade e grupo 3: mitigação); um relatório síntese e, por fim, o sexto relatório de avaliação, a ser divulgado em 2021. Há ainda relatórios metodológicos visando a padronizar o modo como os países devem informar suas emissões de gases de efeito estufa para a UNFCCC.

“Uma vez definido que você vai fazer um relatório especial sobre um determinado tema, a primeira reunião que existe é a chamada reunião de escopo, em que os países são convidados a nomear seus especialistas para ter uma reunião que compreende aí umas 60, 70 pessoas, cientistas de todo o mundo, com um balanço de países em desenvolvimento, países desenvolvidos, economias em transição, balanço geográfico e também balanço de gênero, tanto quanto possível, trazer mais mulheres cientistas para essa discussão”, explica Krug.

Dessa reunião, sai a definição de quantos capítulos o relatório terá e de que temas tratará cada capítulo. Esse escopo é, então, apresentado, em uma reunião plenária, aos governos, que podem pedir ajustes de acordo com o que julguem necessário. “Não há interferência na produção científica dos autores, mas há, sim, uma necessidade que os governos vêem de sinalizar aquilo que eles precisam ter de resposta”, pondera Krug. Da reunião plenária, saem os nomes dos capítulos – que não serão mais alterados.

Ela prossegue: “A partir disso, novamente os governos são convidados a propor nomeações de seus especialistas, indicando em que capítulo eles iriam trabalhar, em que parte daquele capítulo eles poderiam contribuir… Então você recebe muitas nomeações e, a partir daí, se pega todos os CVs, as experiências, esse é um trabalho bem complexo, que é feito nas unidades de apoio técnico que cada grupo de trabalho tem, buscando então selecionar, daquelas nomeações, a expertise necessária para atender aquele termo de referência que foi definido pelos governos”.

Escolhidos os autores, é feita uma primeira reunião presencial entre eles, em que será dividido o trabalho. Daí sai o “esboço zero”, que passará por uma revisão interna – ou seja, entre os co-presidentes dos grupos de trabalho ou forças-tarefas envolvidas nesse relatório, além do birô do Painel, composto por 34 membros – em que serão feitas sugestões e cortadas eventuais sobreposições.

Depois disso, é feita a segunda reunião, também presencial, em que os comentários recebidos são discutidos entre os reponsáveis por cada capítulo. Dessa reunião sai a “minuta de ordem zero”, que é enviada a especialistas. Qualquer pesquisador pode se inscrever para a revisão dessa fase, hoje, há cerca de 600 cadastrados. Dessa revisão, vêm ideias de mais publicações que estão disponíveis e avaliações sobre a consistência entre os capítulos.

Na terceira reunião, há uma planilha com todos os comentários, que são necessariamente analisados pelos autores dos capítulos, justificando a inclusão ou não do que foi sugerido. Dessa reunião sai uma segunda minuta, que é enviada aos governos para avaliarem se está de acordo com os termos de referência previamente definidos, se há alguma inconsistência, algum viés, além de poderem sugerir novos artigos que tenham sido publicados. Nela também se começa a construir o sumário para formuladores de políticas, que também é enviado para os governos.

Com todos os comentários de governos recebidos, faz-se a última reunião presencial – “nisso já se passaram praticamente dois anos”, comenta Krug – com mais uma planilha de comentários, tanto de governos como de especialistas, que são considerados um por um pelos autores. Essas respostas aos comentários são públicas. E são muitos comentários! No Relatório Especial sobre Aquecimento Global de 1,5°, foram recebidos cerca de 42 mil. Dessa reunião sai uma nova versão do sumário para formuladores de política, que é o documento, em geral de cerca de 30 páginas, que será discutido linha por linha em uma reunião plenária, como a que estava ocorrendo em Genebra agora no início de agosto.

Ao fim de cada ciclo de cerca de sete anos, um novo processo eleitoral, com votos fechados, escolhe entre os indicados pelos governos, que em geral fazem acordos regionais para apresentar seus candidatos. Todo o trabalho desenvolvido no Painel é voluntário, e os recursos – também cedidos voluntariamente pelos países – são usados para, por exemplo, assegurar a participação de pesquisadores de países pobres.

O desafio de conter o aquecimento global e mitigar seus efeitos é gigantesco, e pensar a respeito certamente tira o sono de muita gente ao redor do mundo. O que vai de fato acontecer com nossa atmosfera e nosso planeta nas próximas décadas, ainda não sabemos, mas dá alguma esperança – ou, no mínimo, impressiona – saber que há tanta gente tão entendida do assunto trabalhando tanto para evitar uma catástrofe climática global. Se os governos vão agir de acordo com o que dizem os relatórios, claro, é uma outra história

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