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Resposta lenta do poder público facilitou epidemia no Amazonas
Covid-19

por | 3 jun 2020

Evanildo da Silveira

UBS fluvial no Amazonas (foto: Alex Pazuello/Semcom via FotosPublicas)

Alta densidade populacional na capital e nas sedes dos municípios do interior, grande número de pessoas chegando de avião da Europa e das grandes metrópoles do país, muitas delas infectadas pelo novo coronavírus, acentuada desigualdade social, sistema de saúde precário, período climático favorável à propagação de doenças respiratórias e demora do governo do estado e das prefeituras para tomar medidas de prevenção e contenção. Essas são as principais causas da alta incidência da covid-19 no Amazonas, apontados pelos painelistas do webinar “Por que a covid-19 explodiu no Amazonas?”, coordenado pela jornalista Mariluce Moura e realizado pelo projeto Ciência na rua, em parceria com a Agência Bori e a Rede CoVida, no dia 7 de maio.

O médico Marcus Lacerda, pesquisador de doenças infecciosas e parasitárias, da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (Depecen), do estado do Amazonas, diz que Manaus – uma cidade-estado na definição dele – é a constatação de que a covid-19 virou uma doença tropical. “O maior estado da Federação tem uma densidade demográfica extremamente baixa, com uma população de pouco mais de 4 milhões de habitantes, mas sua capital abriga mais da metade desse total, cerca de 2,5 milhões”, informou.

Para agravar a situação, de acordo com ele, Manaus tem as mesmas desigualdades sociais que se veem em todas as maiores cidades do planeta, como, por exemplo, Mumbai e Johanesburgo. “O que se percebe hoje são apenas os casos de Manaus, mas já começam a aparecer os dos municípios do interior, que quase alcançam os números da capital”, disse Lacerda. “É um grande problema, pois nenhuma dessas cidades tem UTI. A referência delas para casos de alta complexidade é Manaus, que além de seus 2,5 milhões de habitantes, vai ter que dar suporte aos outros 2 milhões que vivem no interior. Este é um problema adicional, que este estado, ao longo das décadas, tem mostrado que é o maior desafio na área de saúde.”

Mas o problema pode ser pior do que mostram os números oficiais. “Nós fizemos um trabalho aqui, pegando número de casos confirmados e comparando com o de sepultamentos nos cemitérios públicos e privados da cidade”, contou Lacerda. “Uma modelagem, com uma série histórica, mostrou que temos cinco vezes mais mortes que as oficiais. Então, hoje, temos 751 óbitos em Manaus, mas em todo o estado são pelo 3.500 mortes por covid-19.”

Lacerda explicou que no Amazonas não há estações bem definidas, porque está muito próxima da linha do Equador. “Nós temos dois períodos bem distintos”, disse. “De dezembro a maio ocorrem muitas chuvas, o que facilita muito a transmissão de doenças respiratórias. Como Manaus é muito isolada, as pessoas viajam muito de avião e menos de carro, obviamente. Isso permitiu a chegada do vírus por múltiplas entradas de pessoas infectadas, no período mais chuvoso. E o isolamento, como em boa parte do país, não aconteceu a contento. E isso é, no nosso entendimento, o que explica esta explosão de casos na cidade.”

O físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), um dos mais premiados cientistas estudiosos das mudanças climáticas, ressaltou as desigualdades sociais do Amazonas como uma das causas da explosão do número de casos e mortes por covid-19 no estado. “O IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] de lá é um dos mais baixos do país”, disse. “O fornecimento de água tratada e saneamento básico, por exemplo, deixa muito a desejar. A desigualdade social no Amazonas obviamente leva a ter milhões de pessoas muito vulneráveis a este tipo de pandemia e isto tem impactos na mortalidade.”

De acordo com ele, outro aspecto que é muito importante de lembrar é que o novo coronavírus no Brasil em geral, mas em particular no Amazonas, teria tido um impacto muito menor se a agenda 2030 tivesse avançado. “A implementação dos objetivos de desenvolvimento sustentável é absolutamente estratégica para se prevenir de futuras pandemias como essa”, alertou. “Implantar os objetivos de desenvolvimento do milênio e da agenda 2030 é fundamental para isso.”

Segundo a matemática Juliane Fonseca, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs-Fiocruz), os grandes números da covid-19 no Amazonas não foram surpresa. “Já se previa que que haveria certo impacto no estado”, disse. “No início, quando a pandemia estava se alastrando e começaram a aparecer os casos no Amazonas, foi feita uma comparação entre todos os estados, com uma modelagem matemática, que mostrou o Amazonas como um dos primeiros a apresentar o maior número [relativo] de casos, seguido do Ceará. Ou seja, ainda maior do que, por exemplo, Rio de Janeiro e São Paulo, que eram, naquele momento do início da epidemia, o foco da atenção e que têm uma alta densidade populacional. Então, essas medidas nós já tínhamos.”

O que faltou, de acordo com ela, foi precaução. “Não imaginamos esse potencial que o Amazonas teria para ter o número de casos que apresenta”, explicou. “O estado tem a maior parte dos seus habitantes entre 0 e 24 anos, ou seja, é uma população muito jovem e desigual. Por isso, aplicar medidas de distanciamento social se torna ainda mais difícil, porque quando se faz isso, é necessário também ter todo um apoio social e econômico para esta população.”

Fonseca lembra que quando surgem os primeiros casos, uma das primeiras medidas é o fechamento das escolas. “Isso não foi feito no Amazonas”, disse. “Dentre as medidas que foram adotadas pelo estado estava o fechamento parcial das escolas estaduais. Tomar outras medidas mais drásticas acarretaria também em ter um esforço de todo o estado e do governo federal estar apoiando estas medidas de distanciamento. Isso foi completamente negligenciado no estado.”

Para a jornalista manauara Ana Paula Freire, desde 2013 morando em São Paulo, parte da responsabilidade pelo grande impacto da Covid-19 no Amazonas é do sistema de saúde do estado, “que está colapsado há décadas”. “A pandemia só veio dar mais visibilidade numa escala global, mas quem vive aqui sabe que o descaso é histórico, de longa data”, disse. “Por mais críticas que eu tenha ao governo estadual, não seria honesto colocar no colo do atual governador uma situação que não começou com ele. Feita esta ressalva, eu considero que tanto o governo do estado quanto a prefeitura de Manaus demoraram muito para agir, para reconhecer que estávamos diante de uma situação caótica. E eles continuam batendo cabeça neste momento crítico, lockdown, não lockdown, vai pra justiça, não é competência da justiça.”

Freire também criticou a falta de interação entre as autoridades do estado e as instituições científicas locais. “Mas paradoxalmente, nesse contexto todo de pandemia em Manaus, no Amazonas, foi anunciado recentemente um cronograma de flexibilização do isolamento social”, explicou. “Esse cronograma, segundo me informou a própria secretaria de comunicação do estado, se baseou em um estudo, entre aspas, cientifico, de um economista da Fundação Getúlio Vargas. Mas, honestamente, se formos pensar em termos de método, de cientifico não tem nada.”

Segundo Freire, o trabalho sequer passou por revisões. “Esse suposto artigo foi apresentado com imagens via Twitter, nas redes sociais, sem nenhum link para PDF, nada”, criticou. “Então, assim, ao mesmo tempo em que a interação é tímida com quem produz efetivamente ciência na Amazônia – e nós temos pessoas muito boas fazendo isso – busca-se estudos que não têm qualquer embasamento cientifico pra justificar um afrouxamento de um isolamento social no momento que Manaus vive. Isso é muito complicado.”

Falando um pouco do futuro, Paulo Artaxo lembrou que é muito bem documentado que as florestas tropicais são importantes fontes e reservatórios de vírus, bactérias e vários patógenos, em sua grande maioria ainda totalmente desconhecidos da ciência. “Este novo coronavírus surpreendeu muito, porque não há tratamento nem vacina e isto aumento em muito a mortalidade dessa pandemia”, disse. “Isso pegou a ciências e os governantes de calças curtas. E muito governantes, quando não se veem com opção, começam a dar alternativas esdrúxulas, como usar medicamentos não aprovados pela ciência, tratamentos digamos assim não normais e isto também aumentou a mortalidade em muitos países, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos, por exemplo.”

Para ele, mirando o futuro, se a sociedade quiser aprender alguma coisa com esta pandemia, a mensagem é muito clara: preservar as florestas tropicais e evitar contato com animais silvestres é absolutamente fundamental para todos, porque vírus como este existem aos milhares na floresta amazônica, nas da África, como o ebola, por exemplo. “Eles estão presentes nos animais silvestres, no bioma amazônico e em outros”, explicou. “Isso faz com que a preservação da floresta e, particularmente, da biodiversidade, seja estratégica para o futuro do país”.

Outra lição importante desta pandemia, segundo Artaxo, é de que investimentos em saúde e educação vão ter que sofrer uma profunda transformação. “Nós vamos ter que investir muito mais em infraestrutura de saúde, se não quisermos daqui a cinco ou dez anos ser pegos de novo de calças curtas e montando hospitais improvisados de campanha, cuja efetividade é muito pequena. São necessários, mas é muito problemático montar um hospital desses em 15 ou 20 dias.

Segundo Artaxo, é importante salientar que outras pandemias virão, o que é praticamente certo. “Esta não é a única e talvez nem seja a mais grave”, alertou. “Aí tanto a ciência quanto os governantes e a economia têm que começar a se preparar para essa nova pandemia. Não só se recuperar dos impactos socioeconômicos que esta atual causou e vai impactar nos próximos dois anos com certeza, mas também a sociedade precisa desenvolver meios para aumentar sua resiliência nas áreas médica, econômica, social para que a gente possa construir um futuro mais sustentável, não só para o Amazonas, mas o Brasil e o nosso planeta.”

No vídeo abaixo, a íntegra do webinar.

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