Elisa Marconi e Francisco Bicudo, Revista Giz
A pandemia do novo coronavírus, confirmada no final de janeiro pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e a necessidade de garantir respostas urgentes a gravíssimos problemas socioeconômicos causados pela covid-19, fizeram com que o debate global e os projetos econômicos nacionais, até então fortemente pautados pelo pensamento único da cartilha do ultraneoliberalismo (traduzida na defesa enfática do Estado mínimo, precarização das relações de trabalho, incentivo ao empreendedorismo e às ações individuais, meritocracia), se vissem obrigados a começar a ouvir vozes divergentes.
Nessas brechas e fraturas que foram abertas, ganharam fôlego e destaque ideias sugeridas, por exemplo, pelo economista Robert Shiller, ganhador do Nobel de Economia em 2013, a defender que “um efeito a longo prazo dessa experiência podem ser instituições econômicas e políticas mais redistributivas, dos ricos aos pobres, e com maior preocupação pelos marginalizados sociais e idosos”. Na essência do raciocínio dele está uma agenda não só de lucros e ganhos estratosféricos para alguns privilegiados – mas principalmente impulsionada por forte sensibilidade e disposição para garantir políticas públicas voltadas para as populações marginalizadas e aqueles que mais necessitam das ações do Estado.
Como consequência, esse debate fez também emergir com força uma dúvida: poderia a pandemia provocada pelo novo coronavírus abalar de fato e de forma estrutural os pilares do neoliberalismo, colocando o mundo numa nova fase de sua jornada econômica? “A história não sugere que problemas humanitários severos tenham mesmo potencial para alterar os rumos da política e da economia”, contrapõe Marcio Pochmann, economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em entrevista exclusiva à revista Giz, ele lembra que “o Estado é uma instituição inventada pelo capitalismo e que, portanto, existe também para garantir a sobrevivência do sistema. Além disso, a história mostra vários exemplos de situações limites de crise que foram até mais severas que essa que temos agora e que não foram suficientes para mudar o eixo ou o funcionamento do capitalismo”.
Especificamente sobre o Brasil, ele diz que a pandemia não freia o nosso processo de regressão neocolonial. “As dissoluções capitalistas (de relações de trabalho, de desindustrialização) vão continuar, e a crise do corona vai aprofundar e acelerar processos já em curso, como a precarização do trabalho, a informalidade, a redução da renda”. E, se não é possível ser de todo otimista com o cenário econômico, Pochmann afirma que dá ao menos para vislumbrar “a formação de uma maioria – não conhecida antes – preocupada antes com a civilidade que com os números positivos na economia”.
Os melhores momentos dessa conversa, você acompanha a seguir.
Professor, o que estamos observando é que muitas das políticas defendidas pelo ideário neoliberal estão nesse momento sendo tensionadas, questionadas e até colocadas de lado. É possível afirmar que a pandemia de covid-19 está abalando mesmo os pilares do neoliberalismo?
A defesa de ações como essas que estamos vendo, em tempos de crise, de alguma intervenção do Estado intervindo na economia, ou distribuindo recursos para que empresas não quebrem, não são exatamente uma novidade. Não precisamos ir muito longe para lembrar de 2008 e 2009, quando vivemos uma crise global que obrigou os governos dos Estados Unidos, Inglaterra e de outros países europeus a gastar e a tomar as rédeas da economia. Não chega, portanto, a ser uma reviravolta na cartilha neoliberal. São iniciativas momentâneas que dão algum fôlego em tempos de crise. Em geral, essas medidas de socorro se voltam às grandes empresas, às indústrias que empregam mais e produzem mais. A ideia é socorrer agora para, ali na frente, as empresas devolverem esse investimento estatal – feito com endividamento estatal – em forma de impostos.
Se não é novidade que os governos ajam assim, por que, então, vemos crescer o debate a respeito do papel do Estado nesse tempo de pandemia?
O que acontece é que até o início deste ano só havia um discurso sendo repetido e defendido: a solução para todos os problemas é a austeridade do Estado que, no caso brasileiro, seria “enorme e incompetente”. Por isso, o enxugamento do Estado já vinha se dando nos últimos quatro anos. Havia o discurso e a prática dessa redução da participação estatal na economia. Então, no início do ano, a Organização Mundial de Saúde decretou a pandemia e a única forma de proteção conhecida é o isolamento social, o que sabidamente provoca enormes impactos na economia. Nesse momento, mesmo os economistas mais liberais entendem que o Estado precisa ser o gastador final, porque sem isso haverá consequências ainda mais sérias. Ou seja, no discurso, o Estado deixa de ser problema e passa a ser a única solução. Assim, de fato, os governos passaram a destinar recursos e a criar estratégias de combate ao vírus. O que é necessário observar é que enquanto os Estados Unidos aprovaram rapidamente a destinação de 4,3 trilhões de dólares para enfrentar a questão, sendo que 5% precisam ser aplicados diretamente em saúde, o Brasil – somando tudo – chega a 50 bilhões de reais e só 2,5% deles vão para a saúde. Se analisar mesmo, de perto, ainda se vê que parte desse recurso não chega à ponta final.
O que temos, então, é um soluço? Ou há alguma chance efetiva de essas mudanças na atuação do Estado serem mais longevas?
Primeiro, é preciso lembrar que o Estado é uma instituição inventada pelo capitalismo e que, portanto, existe também para garantir a sobrevivência do sistema. Além disso, a história mostra vários exemplos de situações limites de crise que foram até mais severas que essa que temos agora e que não foram suficientes para mudar o eixo ou o funcionamento do capitalismo. Há pouco mais de cem anos, a gripe espanhola matou entre 50 e 100 milhões de pessoas no mundo todo. É verdade que era um mundo agrário, e a economia estava num outro patamar. Ainda assim, 50 milhões de mortos, ou 100 milhões, não mudaram os rumos da política ou da economia. Não mudou o liberalismo. A história nos apoia a compreender o que poderemos ter no futuro, ainda que, no caso do novo coronavírus, não saibamos mesmo se acabou mesmo na China, ou como vai continuar, não temos essa sinalização.
As ações estatais em curso, como a distribuição de recursos, o apoio a empresas, não promovem nenhuma mudança?
Promovem, sim. Talvez estejamos diante de uma fase específica do capitalismo, em que há algumas ações fora dos manuais mais usados atualmente. Essas mudanças vêm de antes da pandemia, importante notar. O que a pandemia fez foi acelerar e aprofundar essas ações. Se os países vinham se alinhando cada vez mais à globalização, à extinção das fronteiras, aos capitais transnacionais, o que estamos vendo de dois anos para cá é alguma nacionalização de empresas e setores. A França, por exemplo, nacionalizou uma parte da indústria naval para não perdê-la para outros países. Exemplos como esse têm se multiplicado. A pandemia está acelerando essas iniciativas. Além disso, o que o novo coronavírus já mostrou – mesmo ainda não tendo finalizado seu ciclo – é o tamanho e a profundidade da dependência da economia global à economia asiática e da China, em especial. O que talvez fique mais evidente é a intenção dos países de proteger um pouco mais suas economias e um caminho seria a nacionalização, o investimento no mercado interno. Talvez aí tenhamos uma diferença em relação ao estágio anterior.
Essas mudanças começam antes da pandemia?
Sim, no mundo todo. A pandemia acentua a polarização China x Estados Unidos e acelera ações que buscam equilibrar e proteger – de alguma maneira – as economias nacionais. Aqui no Brasil, já vínhamos vivendo uma crise econômica desde a segunda metade da década passada. O governo Temer, por exemplo, levantou a bandeira do enxugamento do Estado justamente para fazer crescer a economia. São cinco ou seis anos nessa marcha de redução de direitos, precarização do trabalho e desassalariamento, na tentativa de fazer a economia crescer. Não vem dando resultado.
O Brasil se diferencia do cenário mundial?
Do ponto de vista da redução da participação do Estado na economia, estávamos seguindo o fluxo mundial. Um tanto atrasados, mas na mesma linha. Aqui, o discurso do Estado ineficiente, da falta de austeridade foi amplamente difundido e apoiado por diversos setores. No entanto, o que temos visto de fato é que, de 2015 em diante, a burguesia interna desistiu de um projeto de país. Desistiu. Vimos crescer a teoria que propõe que, daquele momento em diante, a burguesia nacional deixa de aspirar a qualquer pretensão internacional, deixa de almejar ser um player internacional e abandona qualquer perspectiva nacional também.
O senhor tem associado esse desembarque a uma espécie de neocolonialismo.
É um retorno ao neocolonialismo. Vamos admitir que tudo aquilo que o ministro Paulo Guedes e seus seguidores pregam seja levado a cabo: redução máxima do Estado através de reformas do Estado, da Previdência, do mundo do trabalho e tributária e ocorram todas as privatizações sonhadas. Digamos que tudo isso ocorra assim como almejado, o que sobra? Resulta disso, um país desindustrializado – que já vinha se desindustrializando e piora -, calcado no agronegócio e nos serviços – de ponta ou não – associados à renda dos ricos. A concentração de renda se acentuaria ainda mais. Poucas famílias ficariam ainda mais ricas e seriam responsáveis pelo consumo de uma infinidade de serviços, como uma feitoria moderna. Trata-se de uma regressão neocolonial mesmo.
E a pandemia interfere de alguma forma nesse retorno neocolonial?
A pandemia não freia esse processo. As dissoluções capitalistas (de relações de trabalho, de desindustrialização) vão continuar e a crise do corona vai aprofundar e acelerar processos já em curso, como a precarização do trabalho, a informalidade, a redução da renda. Chamamos isso de desassalariamento. Depois que deixamos de ser colônia, e mais especificamente de 1888 para frente, na verdade, a classe média foi mantida por salários, maiores ou menores, que hoje vêm desaparecendo. A renda se dá de outras formas. Ou não se dá. É verdade que sempre houve uma parcela que nunca conseguiu ser paga, por estar escravizada, ou por viver à margem mesmo. Chamamos esse estado de anomia, quando as normas que ajustam a sociedade vão se dissolvendo. A desorganização é imensa, mas não deixa de haver luta social. Para conter possíveis tensões, o Estado usa a violência, única força possível para gerir essa massa desigual e profundamente insatisfeita. Um Estado policial. Do ponto de vista do trabalho, a precarização e as novas formas de trabalho caíram no colo dos empresários e os trabalhadores tiveram de se adaptar rapidamente, mostrando prontidão no teletrabalho, nas aulas à distância, e em aceitar reduções de salário sem mediação do sindicato.
Dá para começar a desenhar como será esse Brasil anômico e pós-pandemia?
De alguma maneira, o Estado mínimo – aquele que não chega, não cuida, não protege e não educa – já está em ação nas comunidades mais pobres, nas franjas, nos rincões de pobreza. Ali, sempre foi mínimo e será ainda mais, se tudo continuar seguindo essa marcha. Acontece que, onde não há Estado, prosperam duas forças: a igreja e o poder militar. No período colonial e pós-colonial, a igreja era a católica e o poder militar eram movimentos como os cangaceiros, ou grupos paramilitares. Sempre tivemos esses dois poderes pairando. E hoje? Hoje, as igrejas evangélicas, em especial as neopentecostais, e as milícias atuam nesses segmentos. São novas formas para antigos modelos. Vamos voltar a ser o país dos negócios de ocasião, sem projeto nacional, sem burguesia nacional comprometida e com Estado mínimo, que não atende às necessidades da população. A pandemia será desculpa para aprofundar isso. Basta olhar as medidas de dissolução de contratos de trabalho afiançados pelo Estado em nome de investir na economia. Tudo isso nos levaria diretamente à anomia. Por outro lado, não podemos deixar de observar um fenômeno que procura nadar contra essa tendência. Não será suficiente para abalar os rumos do liberalismo, mas traz algumas novidades.
O senhor está se referindo aos movimentos de solidariedade e de contenção da pandemia através de políticas públicas?
Sim. Desde 2016, com o golpe que tirou a presidente Dilma, e depois dos governos referendados pelas urnas e eleitos em 2018, vemos um aprofundamento brutal da polarização política do Brasil. Até o aparecimento do novo corona, o que tínhamos era um bloco fechado e coeso com 30% dos eleitores fechados com Jair Bolsonaro, independentemente do que acontecesse. Os 70% restantes, embora fossem um número verdadeiramente superior, não chegavam a formar maioria, porque se constituía de tal forma fragmentado – da extrema esquerda à direita liberal – que não chegava a formar um bloco coeso. O que a pandemia faz emergir é uma noção de maioria que não se une pela visão política, mas por enxergar que é vital impedir a barbárie, a dissolução completa das normas e das relações, porque abriria espaço para a morte de milhões de pessoas. É uma maioria, ou uma tentativa de maioria, em termos humanitários. Os 70% se colocam contra o atual presidente, porque veem nele um potencial perigo à civilidade, nos termos mais básicos. A polarização política fica em suspenso, porque essa inflexão à humanidade é mais urgente. O governo Bolsonaro atacou e ataca os pilares que assegurariam a civilidade, sob o ponto de vista dessa maioria, a educação, a ciência, a imprensa. Mais recentemente, o equilíbrio democrático.
Como essa maioria deve se mover, ou pode se mover, nos próximos tempos? O que podemos esperar?
Parece-me tratar-se ainda de uma maioria flutuante e heterogênea, à busca de lideranças ou de algo que dê centralidade e convergência. Nesse sentido, ainda é imaturo imaginar que esse conjunto de pessoas e movimentos sociais, indispostos a seguir a barbárie que é posta no Brasil, estariam propícios possivelmente a aceitar o projeto, algo que nos desviasse da situação a qual estamos submetidos e que a pandemia acelerou, essa trajetória de regressão neocolonial. Vai depender da capacidade política dos partidos e movimentos sociais de perceber essa nova circunstância social, política e econômica como oportunidade de barrar a perspectiva de regressão colonial e colocar no lugar um projeto que agregue valores substanciais como a democracia, a expansão de oportunidades econômicas e a elevação do padrão de vida da sociedade como um todo.