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O tortuoso caminho para a vacinação no Brasil
Covid-19

por | 21 jan 2021

País se encontra em situação de trágico nonsense

Enfermeira do Instituto Couto Maia recebe a primeira vacina aplicada na Bahia (foto: Camila Souza / GOVBA – via FotosPublicas)

Aprovadas no domingo, 17 de janeiro, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as vacinas Butantan-Sinovac e Fiocruz-Oxford-AstraZeneca para uso emergencial no país, iniciada ato contínuo a aplicação da primeira, a CoronaVac, em São Paulo e, no dia seguinte, iniciada a distribuição do produto em lotes proporcionais para todos os estados, o Brasil passou a enfrentar uma situação de puro nonsense que, entretanto, não pode fazer rir porque simplesmente compõe a tragédia gigantesca em que o país submerge. E a morte de pacientes por asfixia em Manaus, em decorrência da absurda falta de oxigênio nos hospitais da cidade, é só a face mais gritante dessa tragédia cujos responsáveis podem ser nomeados com segurança.

Veja-se: a campanha de vacinação nesta nação com população de aproximadamente 210 milhões de habitantes começou com 6 milhões de doses asseguradas, importadas da China entre novembro e dezembro passados – o suficiente para vacinar apenas 3 milhões de pessoas do primeiro grupo prioritário, ou seja, profissionais da área da saúde na linha de frente do combate ao coronavírus, idosos em asilos e indígenas. Outras 4,8 milhões de doses prontas da CoronaVac, envasadas no Instituto Butantan, são objeto de um segundo pedido de autorização à Anvisa para uso emergencial, apresentado na segunda-feira, 18 de janeiro. Sua aprovação deve ser rápida, com o que mais 2,4 milhões de integrantes do mesmo grupo também poderão ser vacinados.

A notícia da Agência Reuters, na tarde desta quinta-feira, 21, de que o governo da Índia, segundo seu secretário de Relações Exteriores, Harsh Vardhan Shringla, liberara as exportações comerciais de 2 milhões de doses da vacina AstraZeneca/Oxford contra a covid-19, encomendadas pela Fiocruz e fabricadas pelo Instituto Serum, para o Brasil e Marrocos, trouxe algum alento aos que manifestam temores de uma interrupção à campanha de vacinação ainda mal e mal iniciada.

O avião com as vacinas para o Brasil decolou nesta quinta-feira e aterrissa no Galeão já na sexta-feira. A notícia chamou mais atenção porque saiu quase paralelamente a informações divulgadas pela mídia, com imagens, sobre um incêndio que irrompera na instituição indiana, deixando cinco mortos e parte considerável da produção prejudicada, embora não na ala de insumos e vacinas contra a covid.

A se confirmar o envio, já na próxima semana entrariam no sistema de saúde vacinas suficientes para pelo menos mais 1 milhão de brasileiros do primeiro grupo prioritário – na dependência da decisão sobre usar as vacinas disponíveis para as duas doses necessárias à imunização de cada pessoa ou usá-las apenas para a primeira dose no dobro de pessoas, enquanto se espera a disponibilização de novos lotes do produto. Esse debate é acirrado e deve prosseguir, considerando sempre que 28 dias é o prazo máximo de intervalo entre as duas doses recomendado pelo estudo do Instituto Butantan, enquanto a Fiocruz ainda não cravou um número preciso nesse sentido para a vacina pela qual é responsável no Brasil.

Seja como for, está-se falando então de 12,8 milhões de doses postas em prazo curto no sistema de saúde, o que torna o ambiente desta quinta no quesito vacinação um tantinho menos sombrio do que o panorama de curto prazo que se tinha dois dias atrás.

Mas sobram, sem dúvida, densas sombras e incertezas no horizonte, marcado em especial por (1) uma efetiva incapacidade de gestão da saúde pública do governo federal demonstrada incessantemente e até a náusea; (2) uma política negacionista e irresponsável quanto à gravidade da pandemia e ao tratamento da doença (vide a persistência do kit-covid, de eficácia amplamente desmentida pelos meios científicos, para um suposto tratamento precoce da doença nas redes do governo); e (3) por um histórico absolutamente desastroso da diplomacia brasileira nos dois últimos anos, que agora rende frutos pecos nas relações com vários países mundo afora.

A produção das vacinas no Butantan e em Bio-Manguinhos, unidade de fabricação da Fiocruz, depende crucialmente do fornecimento do imunizante, princípio ativo ou insumo farmacêutico ativo (IFA) por diferentes produtores da China. Em relação ao instituto paulista, é da Sinovac que tem que vir esse insumo para que se possa fazer e envasar cada dose destinada à população. No caso da Fiocruz, que tem acordo com a AstraZeneca, a fabricação do IFA também acontece na China e de lá ele vem para a produção das vacinas no Brasil. É fato que mesmo a produção própria do Butantan ou de Bio-Manguinhos, a partir de alguma data entre o último trimestre de 2021 e o ano de 2022, se tudo der certo, continuará demandando alguma matéria prima da China.

É claro que o país não leva em conta só o absurdo tratamento que lhe tem sido dispensado por Bolsonaro e sua turma, numa anti-diplomacia de matar de vergonha até velhos diplomatas ciosos das boas tradições do Itamaraty nas relações internacionais. Sem dúvida é preciso que profissionais das negociações nesse momento aplainem os obstáculos burocráticos levantados no caminho das exportações do IFA da China para o Brasil. Mas, sobretudo, há interesses comerciais nas relações entre os dois países que demandam discussões em outras bases.

Se é verdade que a aprovação da Anvisa à CoronaVac rendeu alguns lucros à China, com novos contratos de fornecimento assinados com outros países imediatamente depois da aprovação, como dizem fontes bem informadas do setor, também é verdade que a China não quer perder a oportunidade de por na mesa a discussão sobre as definições do Brasil quanto à tecnologia 5G de telefonia móvel e as chances de sua empresa Huawei na disputa.

A visão que diferentes interlocutores apresentam mostra que a vacinação no Brasil, para levar o país a um patamar um tanto distante da tragédia de hoje, com UTIs explodindo e pacientes morrendo de asfixia, com mais de 214 mil mortes e registros diários de óbitos por covid acima de mil, depende da produção intensiva das duas vacinas já aprovadas, mas não apenas delas. Precisa-se da Sputnik, da Janssen, mesmo da Pfizer e de outras que cheguem ao mercado.

E tudo isso com máscaras, distanciamento físico e políticas sociais consequentes.

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