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O sequestro do futuro
Covid-19

por | 28 abr 2021

Em meio à CPI da covid-19, o início da produção da ButanVac e imagens de piras de corpos a lançar fumaça no céu da Índia, não se vislumbra o fim da pandemia

Foto: Pikist

Chegamos ao patamar macabro de 400 mil mortes no Brasil e de mais de 3 milhões de óbitos no mundo decorrentes da covid-19. E até quando se estenderá a pandemia? É essa indagação, ainda sem resposta à vista no horizonte da ciência ou da política, que parece guardar a relação mais íntima e mal compreendida com o comportamento coletivo do tipo “dane-se” – para não usar aqui o eloquente palavrão correspondente – que marca tantos grupos jovens e nem tão jovens ante a peste contemporânea, neste país e em outras plagas do planeta.

Tratamos aqui, claro, das aglomerações voluntárias ou evitáveis, das multidões em busca de mercadorias, das festas clandestinas e grandes reuniões sociais que se multiplicam sem preocupações com proteção, e não daquela proximidade perigosa em que o “dane-se” foi emitido autoritariamente por terceiros ou, digamos, pela lógica fria do sistema que supostamente não pode parar. A mira está nas situações em que se pode exercer livremente o direito de escolha, e não nas imposições incontornáveis que empurram milhões aos transportes públicos lotados, sem o quê o risco é a perda do emprego – um bem extremamente escasso no Brasil do presente, com 13,5% da população economicamente ativa desempregada e 125,6 milhões em situação de insegurança alimentar, dos quais 19 milhões efetivamente passando fome – portanto, uma outra forma dramática de ameaça à sobrevivência.

Mas por que a interrogação sobre a duração da pandemia se relacionaria a comportamentos de risco? As frases de um jovem adulto, trabalhador, 23 anos, morador da periferia, a conversa com uma adolescente, 17 anos, estudante do último ano do ensino médio num colégio paulistano de elite, e a pergunta de uma garota de 10 anos, estudante do mesmo colégio, dão juntas algumas pistas sutis para entender a possível ligação entre uma coisa e outra. A despeito da abissal disparidade dos mundos que as personagens carregam em si e nos quais vivem, elas apontam para um intenso sentimento comum: cansaço. Uma espécie de esgotamento emocional ante uma duradoura situação de completa anormalidade que se tenta naturalizar.

“Eu fui só algumas vezes, mas é pelo cansaço da vida mesmo, pra distrair e ver os amigos (…) Medo vem e passa, na real, quando chego no lugar (…) Ninguém aguenta mais essa situação, e aqui é tenso”. São frases do jovem trabalhador na entrevista recentemente concedida ao repórter Lucas Veloso e a mim sobre frequentar festas na quarentena.

“Mas será que vamos mesmo poder viajar juntas em 2022? Eu não acredito, não (…). Não sei se é um sentimento individual ou coletivo, mas não tenho nenhuma expectativa quanto ao futuro, não vejo nenhuma perspectiva”, diz a estudante que no final deste ano estará entregue à maratona do vestibular. “Mãe, você acha que até o meio de 2022 eu terei tomado a vacina?”, pergunta a garota que retornou feliz, no início do ano, às aulas presenciais suspensas ao longo de 2020 e as viu serem interrompidas de novo pouco depois, com o recrudescimento alarmante da pandemia no país inteiro.

Sim, muito mais do que de incerteza e da imprevisibilidade usual dos cenários à frente, é da falta de horizonte que se trata. É do sequestro da saudável capacidade humana de antevisão do futuro. Porque não se enxerga o fim da atordoante condição anormal vivida hoje, os dias atravessados pela sombria ameaça de tantas mortes e tão duras perdas, as máscaras no rosto, o distanciamento, a impossibilidade de abraços. E quando não se vislumbra nem se pode projetar um futuro diferente, a vida é exclusivamente agora – então, não há por que fazer sacrifícios em benefício de um eventual depois gratificante ou prazeroso. Entramos, então, mesmo sem o saber, mesmo em meio à negação, no terreno do puro hedonismo, do aproveitar a vida agora, enquanto existe.

Se de alguma forma isso vale em escala planetária, vale tanto mais numa situação desalentadora e politicamente explosiva como a do Brasil, em que a condução errática, descoordenada, deliberadamente negacionista e irresponsável da gestão da saúde pública em geral, e da epidemia e da campanha nacional de vacinação em particular, terminaram por tornar imperativa, ainda que tardia, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, na última terça-feira, 27. Espera-se que consiga estabelecer a responsabilidade do governo federal e a responsabilidade direta de quem ocupa a presidência da República na magnitude dos números de mortes e casos de covid-19 no Brasil desde março do ano passado. Quantas e quantos poderiam ter sido evitados se o país tivesse no comando ao menos um governo sensato e democrático?

São bem relevantes algumas observações dos sociólogos André Sobrinho e Helena Wendel Abramo, ele coordenador da Agenda Jovem da Fiocruz, ela autora de livros sobre a condição juvenil, no artigo “A juventude na mira da pandemia”, publicado na Folha de S. Paulo na segunda-feira, 26. Depois de abordar o aumento da contaminação, dos casos sintomáticos e de óbitos por covid nessa faixa da população, que levou tanto a mais apelos para que observem as medidas sanitárias quanto a uma tendência geral a responsabilizá-los pela disseminação do vírus, que seria decorrente de “um comportamento insensato, fruto de uma incapacidade de controlar impulsos por diversão”, os autores lembram que “agravos à saúde devem ser lidos por um duplo registro: epidemiológico e social”.

“O fato é que são os jovens mais pobres que vêm sendo submetidos à exposição ao coronavírus, e não somente porque se amontoam em festas. A circulação ocorre em função de sua necessidade de trabalhar, estudar e “tocar a vida”. Inclusive, apoiando os mais vulneráveis aos desdobramentos agudos da infecção”, afirmam.

A proposta que apresentam é que, para além das mensagens preventivas, estabeleça-se para os jovens auxílio de renda e proteção nas atividades econômicas em que estão inseridos (a Fiocruz estima que 38,4% dos 2 milhões de trabalhadores da saúde na linha de frente hospitalar estão na faixa etária de até 35 anos. E em 2019, ano que hoje parece tão distante, nada menos que 70% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam trabalhando ou procurando emprego, segundo dados da PNAD). Mais: defina-se uma política de saúde coordenada que permita reduzir o contágio e acelerar a vacinação “com vistas à retomada segura de suas vidas, de seus “corres” e dos seus sonhos.”

De forma enfática, os autores propõem: “A exposição ao coronavírus pela juventude exige uma leitura mais apurada. As ciências médicas e humanas devem subsidiar as maneiras mais adequadas de veicular mensagens, tanto para a juventude quanto sobre a juventude, deslocando os riscos de uma visão caricatural que ensaia transformá-la em bode expiatório no momento crítico em que vivemos.”

Numa outra abordagem, a médica geriatra Aline Thomaz disse em recente entrevista à jornalista Claudia Collucci que “a geração floco de neve, jovens entre 25 e 35 anos, está sofrendo muito com a doença. Eles estão apavorados, com medo da repercussão da covid”.

Executiva principal da rede de hospitais São Camilo, ela diz que, para cada dia de UTI, “um idoso vai levar de cinco a sete dias para se recuperar do ponto de vista de vigor muscular. O mesmo raciocínio vale para os jovens. Para cada dia de UTI, vai levar de três a cinco dias para se recuperar. E para cada dia de unidade clínica, vai demorar dois ou três”. Ou seja, “uma pessoa jovem vai precisar, depois da alta, de 30 a 50 dias para ficar reabilitado. Isso se ela fizer todos os exercícios”. Talvez, se amplamente difundida, a informação ajude na contenção de comportamentos de risco. Na verdade, na percepção da médica, “os jovens estão com muito medo. É a primeira grande doença que muitos desses jovens enfrentam. Sentem um baque muito forte. É ainda misterioso o processo da agressividade desse vírus”.

De volta á questão sobre a duração da pandemia, outras lhe estão subordinadas: por exemplo, quantas ondas se sucederão até que o Sars-CoV-2 se torne um vírus endêmico? Quantas variantes agressivas ainda vão surgir? Quando tratamentos serão, de fato, eficazes?

Em março e abril, enquanto o Brasil mergulhava na sua aterrorizante segunda onda, que o levou ao topo mundial da produção de mortes diárias por covid e da qual hoje parece estar lentamente saindo, boa parte da Europa administrava a terceira onda, os Estados Unidos viam despencar os registros de casos e mortes graças em grande parte à bem planejada vacinação em massa adotada pela gestão Biden, e novas variantes eram anunciadas em diferentes partes do mundo. Nos últimos dias, após seus grandes festivais religiosos, a Índia, grande produtora de vacinas, entrava numa escalada desesperadora de adoecimento e mortes. E a cremação de corpos aos montes lembrava os piores pesadelos enfrentados pela humanidade nos séculos mais recentes. Das pestes aos extermínios macabros.

Nesta quarta-feira, 28, o Butantan começa a produzir uma nova vacina, a ButanVac. Boa notícia! Mas enquanto não houver uma resposta mais consistente para a indagação sobre a duração desta pandemia, se é que pode havê-la, vinda do front da ciência e secundada pelo ambiente político, aquela velha e confortável sensação de que temos um futuro pela frente fica postergada. O sequestro do futuro

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