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Mês das mulheres – Fernanda Werneck
Dia internacional da mulher

por | 31 mar 2021

Nascida em Goiânia e criada em Brasília, zoóloga do INPA ganhou as versões nacional e global do Prêmio L’Oreal-Unesco para Mulheres na Ciência

Foi o encanto com os conteúdos da disciplina de biologia no segundo ano do ensino médio, basicamente zoologia, no Colégio Leonardo da Vinci em Brasília, o ponto de partida para a bela carreira de pesquisadora de Fernanda de Pinho Werneck, com destaque especial para suas contribuições originais sobre o potencial adaptativo de determinadas espécies animais da Amazônia compreendido em estreita conexão com as mudanças climáticas globais e os efeitos do desmatamento da floresta e de suas zonas de transição floresta-cerrado.

A propósito, foram essas contribuições que lhe asseguraram, em 2016, o Prêmio L’Oréal-Unesco-Academia Brasileira de Ciências para Mulheres na Ciência, área de ciências biológicas e, no ano seguinte, a conquista da versão global da honraria, o Internacional Rising Talents for Women in Science, concedido pela empresa francesa juntamente com o organismo das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.

Aos 39 anos, Fernanda Werneck, mãe de uma adolescente de 15 anos, pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) desde 2013, exibe ao lado desses reluzentes prêmios outras indicações em seu currículo da indiscutível solidez de seus trajetos científicos articulada a um visível compromisso de sua prática de cientista com interesses mais amplos da sociedade em geral.

Assim, se no momento coordena nada menos do que seis projetos de pesquisa em curso e junta mais de uma dezena de orientandos de pós-graduação em linhas diversas como evolução, sistemática, biogeografia e conservação da herpetofauna neotropical (répteis e anfíbios) em biomas abertos e florestais da América do Sul, além de efeitos de mudanças climáticas sobre a biodiversidade, ela atua também como uma estudiosa e militante da causa das mulheres na ciência. E leva isso tão a sério a ponto de integrar o projeto de pesquisa e de extensão “Parent in Science: compreendendo o impacto da m(p)aternidade na carreira acadêmica/científica no Brasil”, coordenado por sua xará Fernanda Staniscuaski, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Se, entre tantas outras atividades, coordena o programa de Coleções Científicas e Biológicas e é curadora da Coleção de Anfíbios e Répteis INPA e estava, de 2019 a 2020, num pós doutoramento no Museu de Zoologia Comparada da Universidade Harvard, na condição de professora visitante com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes), em paralelo, Fernanda nunca tem dúvidas em alçar a voz contra os desmatamentos criminosos e outros crimes ambientais que assolam a região amazônica.

Mas é tempo de dar uma certa organizada cronológica a esse perfil. Fernanda de Pinho Werneck nasceu em Goiânia, “filha do meio de casamentos diferentes”, como ela bem sintetiza. Tem uma irmã mais velha do casamento de seus pais, Silvana de Pinho, oficial de justiça hoje aposentada no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 59 anos, e Nestor Werneck, já falecido. Tem uma irmã mais nova do segundo casamento de sua mãe com Marcelo, o padrasto de quem ela era muito próxima e que lamenta ter morrido jovem, ainda aos 39 anos, vítima de um AVC. E tem um irmão mais novo, do segundo casamento de seu pai. “Mas meus grandes referenciais eram muito femininos”, observa.

“Eu vivi a infância e adolescência em apartamento, mas, em Brasília, isso significava ter muito contato com a natureza urbana. Além disso, adorava ir a cachoeiras nos arredores da cidade, estar na natureza do Brasil central, visitar a Chapada dos Veadeiros, gostava demais de tudo isso antes de saber que seria zoóloga”, ela conta. Fundamental e médio foram feitos em escolas particulares. “Eu gostava de todos os temas de biologia, tinha excelentes professores, e quando comecei a estudar zoologia, toda aula era de brilhar o olho”, completa.

Entrou direto para o curso de biologia da Universidade de Brasília (UnB), na primeira turma do Programa de Avaliação Seriada (PAS), sem muita noção do que faria depois da graduação. Em 1999, já no primeiro ano de um curso que descreve como de caráter muito prático, deparou com o laboratório do professor Guarino Rinaldi Colli e tentou fazer iniciação científica sob sua orientação. Ele, entretanto, sugeriu que fizesse antes algumas disciplinas teóricas indispensáveis e depois voltasse a procurá-lo.

Mais para o fim daquele ano, bem enturmada com bastante gente ligada àquele laboratório que mantinha na mira, Fernanda candidatou-se a uma vaga na expedição que o grupo faria para estudar fragmentos de cerrado dentro da Amazônia, em Rondônia. “Aí tive a oportunidade de participar dessa grande expedição a Guajará-Mirim, perto da fronteira com a Bolívia”.

Esses fragmentos ficavam isolados dentro da floresta e para chegar lá o grupo “tinha que atravessar três quilômetros de uma floresta lindíssima. Pudemos fazer um inventário da herpetofauna da Amazônia e do cerrado ao mesmo tempo, uns bichos lindos….” A aventura durou um mês e meio e, na volta, Fernanda já estava formalmente ligada ao laboratório de Colli. Foi sua orientanda por toda a graduação e emendou com o mestrado. No trabalho de conclusão de curso, em 2003, tratou da “Variação geográfica nas estratégias reprodutivas de lagartos do gênero Kentropyx (Squamata: Teiidae): adaptação vs. herança”. E na dissertação de mestrado, defendida em 2006, abordou a “Biogeografia e estrutura da comunidade de lagartos dos enclaves de floresta estacional decidual de São Domingos-GO (vale do Paraná)”.

Fernanda diz que é “pessoa de muito agregar”, o que deve ter sido uma vantagem em seu esforço para ajudar a fundar o grêmio estudantil do Leonardo da Vinci e, depois, na universidade, para ser presidente do centro acadêmico da faculdade – sua militância vem de longe. É característica de personalidade que deve também tê-la ajudado decisivamente a se virar durante o mestrado, período em que ficou grávida e viveu a experiência do nascimento da única filha, Iara. Afinal, ela estava em Brasília, com algumas viagens de estudo de permeio, e o marido, Rafael Leite, fazia também o mestrado no INPA, em Manaus. Foi no mesmo período em que viveu também o luto da morte do padrasto.

“Dá para dizer que eu comecei a ser cientista e mãe ao mesmo tempo, numa fase bem crucial, no meio do mestrado, com todas as belezas e desafios de conciliar os dois papéis”, Fernanda comenta, lembrando que em sua geração isso não é muito comum. “No grupo de pesquisa Parents in Science, a maioria das mães têm filhos na primeira infância, só eu e uma colega somos mães de adolescentes. Assim, eu mesma não posso dizer que a maternidade impactou minha carreira científica, porque não vivi outra condição, mas acho a causa e os debates a respeito extremamente importantes”, observa.

A rede de apoio familiar e de amigos sempre foi muito importante para atender aos desafios, e Fernanda lembra que foi com amigos que algumas vezes deixou a filha para cumprir junto com o marido viagens de trabalho.

Era 2007 quando a família se mudou para um período em Utah, nos Estados Unidos. A filha acabara de completar dois anos quando Fernanda começou o doutorado em biologia integrativa, orientado por Jack W. Sites Jr. na Brigham Young University. “É uma universidade mórmon, numa região lindíssima, muito conservadora, e lá me dediquei a pesquisar biogeografia e conservação dos biomas secos da América do Sul, ou seja, cerrado, caatinga e chaco”. Fernanda diz que seu trabalho trouxe à luz “muita coisa que era negligenciada, no que tange a dados empíricos e dados genéticos, entre outros”.

E desse mergulho ela destaca dois artigos como os mais importantes nesse sentido: um de revisão, de 2011, sobre biodiversidade e biogeografia dos biomas secos (“Werneck, F. P. 2011. The diversification of eastern South American open vegetation biomes: historical biogeography and perspectives. Quaternary Science Reviews 30:1630-1648), e outro, fortemente empírico, de lagartos, publicado em 2012 (“Deep diversification and long-term persistence in the South American ‘dry diagonal’: integrating continent-wide phylogeography and distribution modeling of geckos”. Evolution (Lancaster, PA.), v. 66, p. 3014-3034, 2012).

“Eu tinha visto que, mesmo quando se olha uma espécie distribuída na diagonal em diferentes biomas, a ideia corrente de que a diversidade era empobrecida não se sustentava. Resolvi olhar em nível genético três espécies de lagartos, considerando espaço e tempo de populações distintas da caatinga, cerrado e chaco. E não, a diversidade de espécies não é empobrecida. É muito rica, endêmica e bem marcante”. Filogeografia e modelagem genética estava no cerne do trabalho de Fernanda para a construção de histórias evolutivas das espécies em foco.

Em 2012 a família voltou para Brasília, ela com uma bolsa de jovens talentos. “Sempre fui bancada pelas agências brasileiras, seja CNPq ou Capes”, diz. Brasília era a base da qual ela partia para pesquisas de campo em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Nordeste, enquanto Rafael ia para a Amazônia e a filha ficava em Brasília. Até que fez o concurso do INPA, e, em 2013, a família se fixou em Manaus.

Nos anos mais recentes, ela expandiu sua pesquisa para investigar a evolução da biodiversidade nas florestas tropicais e também para quantificar os impactos da ação humana sobre a fauna das áreas de transição entre o Cerrado e a Amazônia, na linha de investigação dentro da qual Barry Sinervo (falecido em 15 de março passado, aos 60 anos) liderava num grande projeto global na Amazônia. “Quando eu estava em Utah, o conheci no deserto, procurando seus bichos”, ela diz. São espécies cuja tolerância às variações de temperatura ambiental os fazem bons modelos preditivos dos futuros impactos das mudanças climáticas para as populações.

Dessa pesquisa, que podemos dizer trata-se do braço local do grande projeto sobre a Amazônia, resultariam os prêmios L’Oréal-Unesco e o artigo “Extinction risks forced by climatic change and intraspecific variation in the thermal physiology of a tropical lizard”, no Journal of Thermal Biology, em 2018, que rendeu, aliás, ampla cobertura da mídia. A propósito, vale ver, por exemplo, reportagem de Giovana Girardi a respeito.

Fernanda diz que a pulga atrás da orelha que a moveu foi a questão sobre espécies que têm ou não potencial para responder adaptativamente às mudanças de temperatura. “Mas, e se, no gradiente essas populações possuírem já uma capacidade adaptativa? Se são pré-adaptadas? É aí que a genômica da adaptação nos leva a entender se há diferentes potenciais de respostas e à possibilidade de elaborar estratégias que contemplem isso. E será muito alto o custo de perder no desmatamento essas espécies com capacidade adaptativa prévia”. A pergunta, posta de outra forma, tem sido: será que todas as espécies estão igualmente sob risco ou existe um gradiente?

““Enfim, há muita variação geográfica na riqueza, vulnerabilidade e potencial adaptativo das espécies e populações naturais, a conectividade das paisagens é muito importante, há intensa sinergia entre mudanças climáticas e desmatamento. A região do ecótono ou zona de transição natural é justamente onde as populações têm grande potencial adaptativo e é aí que está ocorrendo a maior parte do desmatamento”, ressalta. E isso se espalha pelo Pará, norte de Tocantins, Goiás, Mato Grosso e está avançando pelo sul do Amazonas.

“Nesses anos recentes, amadureci muito quanto a proatividade, à necessidade de debater a representatividade feminina na ciência, a saúde mental na academia, e sempre anunciar amplamente nossas posições sobre todas as questões”, Fernanda conta.

Para finalizar, ela lembra que, se está atenta à pesquisa aplicada, olhando, por exemplo, a questão das pandemias que podem surgir pelos ataques à biodiversidade na Amazônia, também trabalha muito com descrição de espécies, inventário biológico (pesquisa básica), ecologia de comunidades, padrões de diversidades, pesquisa básica enfim, essa tão terrivelmente ameaçada hoje no Brasil. “Sabemos pouco ainda da nossa biodiversidade, e ela é muito subestimada”, conclui.

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