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Fuga da realidade proporcionada por games traz riscos e benefícios, relata artigo

Com base em revisão de estudos sobre o tema, pesquisadores concluem que, apesar de estar associado a transtornos psiquiátricos, o escapismo pode, dependendo do contexto, estimular a confiança, a determinação e o sentimento de pertencimento em comunidades virtuais, além de diminuir a solidão

Julia Moióli, Agência Fapesp

A popularidade dos jogos digitais no Brasil é inegável: o país entrou para a lista dos dez maiores mercados do mundo e o número de jogadores já supera os 100 milhões – quase dois terços da população afirmam jogar, de acordo com um levantamento recente. Jogos eletrônicos também são usados com cada vez mais frequência em tratamentos neurológicos e cognitivos e até para melhorar a saúde física. Por outro lado, cresce a preocupação com seus impactos na saúde física e mental, especialmente de crianças e jovens.

Uma revisão de estudos feita por pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP) e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) mostra que uma das principais razões pelas quais as pessoas buscam jogos virtuais é o escapismo (tentativa de escapar da vida real em um mundo ficcional) – hábito relacionado a problemas de saúde psicológica, emocional e mental, também observado em casos de dependência de álcool, pornografia e redes sociais. Os resultados foram publicados recentemente em uma edição especial sobre games da revista Frontiers in Psychiatry.

Ao mapear 36 estudos científicos de países como Austrália, Cingapura, Coreia do Sul, Croácia, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, Alemanha, Hungria, Itália, Japão, Malásia, Países Baixos, Polônia, Suécia, Suíça e Taiwan, selecionados nos bancos de dados Scopus e PubMed, os cientistas observaram uma associação entre escapismo e narcisismo (transtorno de personalidade marcado pela sensação de grandiosidade), bem como com falta de sucesso de estratégias cognitivas e comportamentais para lidar com exigências internas e externas, desenvolvimento do transtorno do jogo pela internet (TJI), solidão e dificuldade na regulação emocional. Além disso, segundo o estudo, a busca por escapar da vida real pode ser exacerbada por fatores como ansiedade social, antecedentes competitivos, sofrimento psiquiátrico e baixa autoestima.

No entanto, o trabalho não traz apenas notícias preocupantes. O primeiro ponto a se considerar, dizem os pesquisadores, é que o escapismo não é a única motivação para jogar. A possibilidade de se tornar poderoso, o interesse na mecânica do jogo (números e percentagens), a competição, a socialização, o relacionamento, o trabalho em equipe, a descoberta e exploração do mundo, a interpretação de personagem e a personalização também têm sido relatados na literatura científica.

“Os jogos eletrônicos não são exclusivamente um ato de escapismo, mas uma forma de diversão”, diz Lucas Murrins Marques, bolsista FAPESP de pós-doutorado no Instituto de Medicina Física e Reabilitação (Imrea) da Faculdade de Medicina (FM-USP) e primeiro autor do estudo. “A natureza positiva ou negativa da prática depende de fatores como o contexto cultural.”

Além disso, o escapismo poderia funcionar como estratégia de regulação emocional ao distrair a atenção do jogador de situações emocionalmente intensas e promover confiança, determinação, sentimento de pertencimento e representação em comunidades virtuais, além de mitigar a solidão em pessoas ansiosas.

“Um dos artigos analisados na revisão tratava justamente de pessoas que jogavam para escapar da realidade do desemprego e conseguiam atingir um estado de autoconclusão – ao passar fases, experimentavam aumento de autoestima e bem-estar”, conta Marques.

Outros benefícios

Outro artigo de autoria do pesquisador, publicado em edição especial da revista Frontiers in Public Health, focou no impacto dos “exergames” (jogos que incorporam atividade física) também na saúde emocional.

“Já é amplamente divulgado que a atividade física por meio de games promove benefícios para a saúde, como qualquer outro esporte, especialmente pela sensação de prazer e desafio que proporciona e, portanto, vem sendo usada como ferramenta para promoção da saúde em pacientes com câncer, doenças cardiovasculares, necessidades de saúde mental e COVID-19”, diz Marques. “Mas agora observamos que há embasamento científico suficiente também para confirmar seu papel no aumento de emoções positivas.”

A análise de 16 artigos nos mesmos bancos de dados mostra que os exergames afetam positivamente felicidade, ansiedade, sintomas depressivos, qualidade de vida relacionada à saúde mental, autoestima, autoeficácia, controle comportamental, vitalidade e relaxamento principalmente pela liberação de endorfinas e diminuição dos níveis de cortisol (hormônio do estresse) no organismo.

Saúde pública

De acordo com os pesquisadores envolvidos nos estudos, a gamificação é um tema de forte impacto na saúde pública. Quando praticados como forma de escapismo, os jogos eletrônicos têm o potencial de afetar negativamente a saúde mental de uma parte significativa da população. Por outro lado, com o equilíbrio adequado, há um potencial importante a ser explorado.

“Em termos de saúde pública, significa a possibilidade de ampliar a prática de atividade física – e seus benefícios – sem a necessidade de sair de casa, com todas as dificuldades que isso significa para pacientes em tratamento”, afirma Victor Otani, coordenador do setor de psiquiatria geral da Santa Casa de São Paulo e editor da edição especial de Frontiers in Public Health.

“Apesar de ainda existir certa resistência de acadêmicos mais conservadores, pesquisas futuras deverão explorar e confirmar esses impactos de forma mais abrangente por meio de investigações experimentais.”

O artigo Escaping through virtual gaming – what is the association with emotional, social, and mental health? A systematic review pode ser acessado em: www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyt.2023.1257685/full.

Já o estudo The impact of Exergames on emotional experience: a systematic review pode ser lido em: www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpubh.2023.1209520/full.

 

Foto: DC SStudio / Freepik

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