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“Cúpula do Clima é importante porque marca o retorno dos EUA à mesa e fortalece multilateralismo”
Meio ambiente

por | 26 abr 2021

Tiago Marconi e Mariluce Moura

Pesquisadora e empreendedora eco-social brasileira radicada na Alemanha conversou com o Ciência na rua

O presidente americano Joe Biden, durante a Cúpula do Clima, no último dia 21 (foto: Casa Branca)

Depois de quatro anos de distanciamento da política climática global, no governo Trump, os Estados Unidos se esforçam para voltar a ser protagonistas no tema, o que se materializou na Cúpula do Clima, realizada por videoconferência na semana passada, quando vários mandatários do mundo discursaram sobre suas atuais políticas climáticas e fizeram avaliações e promessas para o futuro.

Para entender um pouco melhor esse encontro e a participação brasileira na Cúpula, o Ciência na rua conversou por e-mail com Nicole de Paula, doutora em relações internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e empreendedora eco-social. Ela é fundadora da Women Leaders for Planetary Health, na Alemanha, e co-fundadora do Grupo de Estudos em Saúde Planetária, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) – enquanto publicamos essa entrevista, o tema de saúde planetária está sendo discutido em um encontro anual internacional, que pode ser acompanhado pela internet.

De Paula é também pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade em Potsdam, na Alemanha, comissária cientifica da Pathfinder Initiative da revista Lancet (que busca apontar caminhos científicos para a neutralização das emissões de carbono) e parte do Comitê de direção da campanha She Changes Climate. Leia abaixo a entrevista.

Como a Cúpula do Clima pode efetivamente contribuir para o avanço da proteção ambiental e da saúde planetária?

Nicole de Paula (foto: Lotte Ostermann)

Não existe ação climática sem liderança política. A Cúpula do Clima é importante porque marca o retorno dos EUA à mesa de negociação e fortalece o multilateralismo. Este passo é ainda mais importante se colocado em perspectiva com o nosso contexto atual.

A tragédia da pandemia que estamos vivendo não foi uma surpresa para cientistas que já alertavam para esta ameaça global. Para termos ações concretas, tomadores de decisão precisam combinar soluções. A crise da saúde não pode ser separada da crise climática e ambiental. Recursos terão que ser alocados de maneira que todas estas crises — sanitária, ambiental, social e de segurança — sejam entendidas de maneira holística. Esta é a proposta do conceito de saúde planetária. Não existe saúde humana em um planeta doente.

Qual era sua expectativa quanto à participação do Brasil nesse encontro, considerando-se o histórico dramático do atual governo do país na liderança das ações de destruição do meio ambiente e de desmonte das instituições que deveriam cuidar de sua proteção, como o Ibama? E qual é sua avaliação posterior?

Infelizmente, o Brasil tem sido percebido como uma ameaça global, tanto pelo descontrole da pandemia como pela inação ambiental. Além de recursos estratégicos, como nossas florestas, estamos colocando a vida de brasileiros em risco para o benefício de uma minoria.

Historicamente, o Brasil sempre teve um papel protagonista em negociações internacionais, reforçado pelas suas contribuições durante a Rio-92 e a Rio+20 (conferências que deram vida aos acordos ambientas mais importantes como a Convenção do Clima). A atual administração não lidera, mas envergonha.

Minha esperança é que ainda somos uma democracia e a sociedade civil tem que se mobilizar ainda mais. O que falta ao Brasil em geral é uma visão de longo prazo. Somos grandes improvisadores, o que é positivo em tempos de crise, porém temos que melhorar nossa visão de futuro. Qual o legado que queremos deixas às futuras gerações? De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a transição para energia limpa criará 18 milhões de novos empregos líquidos até 2030. Claro que existem perdas iniciais, mas devemos apoiar os trabalhadores com proteção social, formação e requalificação para que a transição seja justa.

Cortar recursos de organizações que fazem este trabalho não é inteligente. Estamos destruindo a base da vida – nossos ecossistemas. Nossa biodiversidade, a mais rica do mundo, é fundamental, por exemplo, para a produção de alimentos, ar limpo e água. Tente contar dinheiro sem respirar… Não funciona.

Que efetividade podem ter as pressões do governo Biden sobre um ministro como Ricardo Salles e sobre o governo brasileiro?

Em um mundo globalizado, é difícil agir isoladamente. A pandemia é o melhor exemplo da importância de cooperação internacional. Moro na Alemanha e vejo o exemplo de líderes europeus, por exemplo, no parlamento da União Europeia, pressionando para que o acordo entre UE e Mercosul não seja ratificado. Cada vez mais, governos e empresas são cobrados para demonstrar compromisso com uma trajetória da neutralidade carbônica até 2050. Sabemos que se não reduzirmos a produção de combustível fóssil em 6% ao ano, até 2030, teremos poucas chances de atingir nossas metas para 2050.

A recuperação da pandemia oferece uma chance para mudar de rumo. Mais do que uma questão moral, ação climática e de saúde planetária tocam questões de investimento. Custa muito menos prevenir do que responder a situações de emergência. Existem números concretos demonstrando isso. Atualmente, a pandemia custa por volta de US$10 trilhões. Investir US$ 20 bilhões para a proteção da biodiversidade global, por exemplo, é uma verdadeira vacina contra futuras pandemias já que ela evita os riscos de zoonoses (como a covid-19). Proteção do clima e de biodiversidade devem andar juntas. Verdadeiros lideres entendem estas sinergias e agem para achar soluções, e não [para] bloquear a ciência.

Essa cúpula pode contribuir de alguma forma com seu objetivo de articular o trabalho das mulheres com o avanço da proteção ao meio ambiente?

A cúpula oferece um sinal político, e isso conta. Porém transformações reais só são efetivas quando atingem o nível local. Eu trabalho para que as conexões entre as crises de saúde, meio ambiente e social sejam enxergadas. Diversidade é um pré-requisito importante para decisões efetivas. Infelizmente, vivemos em um mundo em que a desigualdade de gênero é gritante e inaceitável. Apesar do avanço, há dados chocantes que ainda fazem parte da governança do clima. Por exemplo, eu sou conselheira de uma campanha, #SheChangesClimate – o objetivo desta campanha foi cobrar a presidência da COP26, liderada pelo Reino Unido, por uma maior representatividade de mulheres na equipe do país que sedia as negociações da ONU de clima em novembro em Glasgow. O fato de que mulheres sejam ausentes dessa equipe de um país desenvolvido indica o longo caminho que temos pela frente em termos de equidade de gênero.

Mudança de comportamento e normas culturais tomam muito tempo, mas não podemos aceitar que metade da população continue sofrendo discriminações e continue mais vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas. A Cúpula deveria ter dado mais ênfase a esta questão social ao invés de concentrar recomendações em soluções técnicas e tecnológicas. Advocacia desta causa, educação sobre o tema, promoção da participação completa de mulheres em tomadas de decisão e a criação de grupos de trabalho que levem em consideração a questão de saúde planetária e gênero nos planos de recuperação para a época pós-covid são essenciais.

De novo, não se trata de uma questão moral. Estamos perdendo dinheiro por deixar garotas e mulheres em uma situação de vulnerabilidade. A pandemia somente acelerou diversas evidências que demonstram o impacto desproporcional para mulheres. O aumento de violência doméstica foi gritante no mundo todo. Um estudo mostra que o custo da violência contra mulheres chega a atingir por volta de 1,5 trilhão de dólares, mais ou menos o tamanho da economia canadense.

Na minha organização, Women Leaders for Planetary Health, trabalhamos para empoderar mulheres do Sul Global nesta área de saúde planetária. Isso acontece através de mentorias individuais para [fazer] deslanchar seus potenciais de liderança e através de uma comunidade digital que aprende e troca sobre o tema da saúde planetária, ou seja, sobre a conexão entre saúde humana e meio-ambiente. Em 2020, trabalhamos com mulheres de vinte países diferentes, e este ano abriremos uma nova turma através de um processo seletivo.

Como o Grupo de Estudos em Saúde Planetária tem contribuído para os debates em iniciativas como a cúpula do clima e similares?

Para mudarmos o que queremos é necessário construir pontes entre diversos grupos e disciplinas. O grupo de Saúde Planetária sediado pela USP me dá muito orgulho. Ele acolhe grandes pesquisadores e profissionais de diversas disciplinas e áreas. Nesta semana de 25-30 de Abril, vamos sediar um grande evento virtual: a conferência anual de Saúde Planetária que ocorre pela primeira vez fora do eixo Europa-EUA. Trabalhamos por mais de um ano em parceria com a Aliança de Saúde Planetária, sediada em Harvard, e o resultado é incrível. Já temos mais de 110 países e 3600 participantes! Inscrições são gratuitas e abertas ao grande publico.

No grupo temos diversas ações. Além de termos organizado este grande evento global que vai muito além do tema de clima, existem também iniciativas na área de alimentação e saúde familiar.

Por exemplo, o podcast Comida que Sustenta foi lançado em parceria com a Pró Reitoria de Cultura e Extensão da USP. O objetivo é levar discussão sobre saúde planetária e alimentação por meio de áudios compartilhados via whatsapp, especialmente a mulheres idosas, que muitas vezes têm acesso a muitas fake news. O grupo também ajuda a WONCA a criar uma política de atenção primaria a saúde em harmonia com o planeta. O grupo também apoiará um congresso mundial de médicos de familia no Brasil, em agosto, para ver como os danos ao ambiente afetam a saúde e como os medicos de familia podem ajudar.

Trabalhamos junto para uma verdadeira transformação da nossa sociedade e economia, para colocar a saúde e bem-estar humano no centro de políticas publicas em todas as áreas.

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