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Contrariando o sonho americano

foto da home: Freepik

 

“Vantagens trazem vantagens”, assim começa o artigo publicado no Journal of Personality and Social Psichology por quatro pesquisadores dos EUA, em que demonstram que o excesso de confiança de indivíduos de classes sociais mais altas faz com que sejam vistos como mais competentes, ainda que não sejam.

A pesquisa que originou o artigo se baseou em quatro conjuntos de dados. Os dois primeiros se basearam nos dados de uma empresa de crédito do México. Os potenciais clientes, 150 mil, ao pedir um empréstimo, indicaram, além dos níveis de renda e escolaridade, em que degrau de uma escada estariam, comparando-se ao conjunto da sociedade mexicana. Em outra fase do pedido de empréstimo, a empresa aplica um teste parecido com jogo da memória e, ao final, pede que eles avaliem o próprio desempenho. Cruzando esses dados com os do desempenho em si, a equipe pôde determinar o que chamam de overplacement, ou seja, a falsa noção de ser melhor do que os outros. Indivíduos de classes mais altas, em geral, tinham de fato melhores desempenhos, mas não tão melhores como imaginavam ter.

O terceiro conjunto de dados veio de um teste, tipo quiz, aplicado a 230 estudantes da Universidade da Virgínia, nos EUA, que deveriam ao final avaliar o próprio desempenho – novamente, indivíduos de classe social mais alta avaliavam ter ido melhor do que foram. Os últimos dados vieram de entrevistas de emprego fictícias, em que os mesmos estudantes eram gravados, e os vídeos apresentados a um grupo que avaliou os “candidatos”. Esse grupo em geral avaliou melhor os mesmos estudantes que haviam superestimado seus desempenhos no quiz. O excesso de confiança desses foi visto, por parte dos avaliadores, como competência.

O Ciência na Rua conversou, por e-mail, com Peter Belmi, principal autor do artigo e professor da Universidade da Virgínia. Confira abaixo a entrevista.

 

Qual era o objeto de estudo de vocês?

Sempre fui curioso sobre por que o mundo em que vivemos é desigual; por que algumas pessoas têm uma quantidade exorbitante de dinheiro enquanto outras não têm nenhum. E essa desigualdade parece se auto-perpetuar – alguns dados sugerem que, se você nasce em uma família rica, é provável que você cresça como um adulto rico, ao passo que, se nasce em uma família pobre, há uma grande chance de que vá terminar sendo um adulto pobre. Sou curioso sobre os motivos disso, porque contraria a promessa do sonho americano: a ideia de que todo mundo que trabalha duro tem uma oportunidade de obter sucesso a despeito de onde se comece na sociedade.

O que vocês descobriram?

Descobrimos que, comparados a indivíduos de classes sociais relativamente mais baixas, indivíduos de classes mais altas têm mais excesso de confiança – eles tendiam a sustentar percepções não acuradas e excessivamente positivas sobre si mesmos, além do que a realidade poderia justificar. Também descobrimos que o excesso de confiança pode ajudar a perpetuar a hierarquia de classe existente: faz com que pareçam competentes aos olhos de outros, o que, por sua vez, os ajuda a conseguir uma posição social alta.

Os resultados surpreenderam?

Na verdade, não. Antes dessa pesquisa sabíamos, já há algum tempo, que aqueles de classes sociais mais altas tendem a ter uma autoimagem mais positiva de si, comparados a seus homólogos de classes mais baixas. Por exemplo, pesquisas descobriram consistentemente que as pessoas de classes mais altas têm maior autoestima e maior narcisismo. No entanto, o que nos surpreendeu é que pesquisas anteriores não tenham examinado suficientemente se classe social está ligada ao excesso de confiança. Quando revisamos a literatura, nos surpreendeu que a maioria dos estudos não tenha incorporado referências precisas com as quais se possa comparar as crenças das pessoas. Essas referências são importantes porque permitem que as pessoas distingam entre alegações realistas e infundadas. Por exemplo, uma pessoa que diga que é boa em matemática pode, de fato, ser boa em matemática. Sem uma referência de precisão, realmente não podemos chegar a uma conclusão definitiva de que classe social mais elevada esteja associada a autoimagens excessivamente positivas e infladas.

Qual é o conceito de excesso de confiança que vocês usam no estudo? Como isso se relaciona a incompetência e arrogância?

Excesso de confiança se refere à tendência de sustentar visões irrealistas e positivas demais sobre você mesmo, além do que a realidade possa sustentar. Existem muitas formas de excesso de confiança; a forma específica que estamos examinando é chamada overplacement – ter uma crença exagerada de que você é melhor do que outros. Um exemplo de overplacement é um aluno que pensa ser o mais esperto da sala, mas cujos resultados revelam que está no meio da turma. Algumas pesquisas demonstraram que o excesso de confiança está relacionado à arrogância; às vezes, por exemplo, a pessoa menos competente tende a superestimar seu desempenho. Excesso de confiança, porém, não é a mesma coisa que arrogância. É muito difícil saber se alguém é excessivamente confiante ou não. A única forma de dizer é comparando o que eles acham de si mesmos com um padrão objetivo. No mundo real, indivíduos com excesso de confiança não são vistos como narcisistas. Em geral, os mais excessivamente confiantes são os mais queridos.

Como os resultados do estudo se relacionam com outras pesquisas sobre perpetuação de desigualdades?

Essas descobertas sugerem que a desigualdade baseada em classe pode se reproduzir, em parte, também porque contextos de classe podem imbuir indivíduos que já têm vantagens de uma crença exagerada de que são melhores que outros, e observadores externos podem confundir essa confiança desajustada com evidência de competência. Se a meta é meritocracia, realmente precisamos de mecanismos para identificar onde reside a verdadeira expertise; sem esses mecanismos, nossa sociedade pode premiar, inadvertida e desproporcionalmente, aqueles que pareçam competentes, mesmo quando não necessariamente sejam os mais qualificados. A tendência é que sejam os indivíduos já em vantagem na sociedade.

Quais são os próximos passos? Vocês pretendem expandir a pesquisa, com novos experimentos, por exemplo?

Seria importante entender as origens culturais e de desenvolvimento do excesso de confiança – quando ele começa? Que práticas culturais ou de criação pelos pais podem exacerbar essa tendência? Como se desenvolve entre as crianças?

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