Sarah Schmidt, Pesquisa Fapesp
Primeira turma do curso de graduação criado pelo CNPEM começou em março, com a proposta de formar pesquisadores de ponta
Quase 35 anos depois de abrigar os primeiros pesquisadores do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), o antigo galpão localizado no bairro Parque Rural Fazenda Santa Cândida, em Campinas, interior de São Paulo, se transformou para receber a primeira turma do bacharelado interdisciplinar gratuito em ciência, tecnologia e inovação da Ilum. Trata-se da escola superior de ciência do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que abriga o LNLS. No início de março, 40 jovens – com 18 anos, em média – tiveram as primeiras aulas sobre ciências da vida e da matéria, linguagens matemáticas, humanidades e empreendedorismo, áreas que compõem o currículo do curso, com duração prevista de três anos em período integral. Todos os estudantes têm direito a alimentação, moradia, transporte, aulas de inglês e recebem um notebook para uso durante o período da graduação.
Eles fazem visitas semanais aos laboratórios que compõem o CNPEM, hoje instalado em uma área distante cerca de 10 quilômetros (km) do prédio da Ilum: o de Biociências (LNBio), de Biorrenováveis (LNBR), de Nanotecnologia (LNNano) e o próprio LNLS, onde fica o Sirius, fonte de luz síncrotron de última geração, o mais complexo instrumento de pesquisa já construído no Brasil. A construção de 68 mil metros quadrados tem mesmo ares de estrela entre os jovens: durante uma das visitas, em uma sexta-feira à tarde, era comum ver os estudantes pararem a caminhada entre um laboratório e outro e posarem para selfies em frente ao Sirius.
“Eu imaginava estudar medicina para fazer pesquisas na área de diagnósticos de doenças. Quando conheci a proposta da Ilum e soube que desde o início haveria o foco na carreira científica, com acesso aos laboratórios do CNPEM, percebi que se encaixaria melhor no que eu queria fazer”, comentou a estudante mineira Eduarda Veiga, de 18 anos, de Montalvânia, no norte de Minas Gerais, durante um breve intervalo na aula de programação em linguagem Python, numa terça-feira à tarde.
Eduarda e os demais colegas foram escolhidos a dedo entre os quase mil inscritos. A primeira etapa do processo de seleção somou notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), valendo 1.000 pontos, a uma manifestação de interesse – que também vale como uma redação, com peso de 600 pontos – em que os jovens argumentaram por que queriam ser cientistas. “Comecei meu texto com uma frase do Carl Sagan [1934-1996], na qual ele diz que em algum lugar há algo incrível para ser descoberto. Escrevi que gostaria muito de ser uma das pessoas que vão fazer essas descobertas”, conta Veiga, acostumada a participar de projetos estudantis e feiras de ciência.
Também fez parte da seleção uma entrevista em que os candidatos eram questionados sobre conhecimentos científicos práticos do dia a dia, como aquele que está por trás do funcionamento da panela de pressão. “No fundo, estamos em busca de gênios da ciência”, reflete o físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, presidente de honra do Conselho de Administração do CNPEM e idealizador da Ilum. “Na minha visão, moldada por uma carreira de quase 70 anos no ensino, eles não são os alunos que tiram as melhores notas, mas aqueles que são mais questionadores e curiosos.” Metade das vagas foi destinada a estudantes do ensino público.
A ideia de criar uma escola de graduação e não cursos de pós-graduação, como é mais comum nos institutos de pesquisa, começou a tomar forma em 2016, quando Cerqueira Leite reuniu um grupo de pesquisadores e diretores do centro para apresentar a proposta. Entre eles estavam os físicos Antonio José Roque da Silva, diretor do CNPEM, e Adalberto Fazzio, então diretor do LNNano, hoje diretor da Ilum e professor titular aposentado pela Universidade de São Paulo (USP). “Percebemos que muitos pesquisadores demoram para começar a tocar seus projetos de forma independente depois da graduação, principalmente em temas interdisciplinares, de fronteira. Por isso, queremos oferecer uma formação precoce em ciência”, observa Fazzio, que também foi um dos responsáveis pela implantação do modelo inovador e interdisciplinar da Universidade Federal do ABC (UFABC), da qual foi reitor entre 2008 e 2010.
Segundo Fazzio, o objetivo é que o estudante possa partir direto para um doutorado, seguir como pesquisador na academia, em empresas ou criar sua startup. “Procuramos criar uma base única, com uma convergência entre física, química e biologia, e uma forte base em matemática e computação para formar um tipo de cientista que vemos como importante no futuro próximo”, diz Cerqueira Leite. Especialistas em inteligência artificial, análise de dados ou aprendizado de máquinas, por exemplo. “Como professor da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], via muitos alunos brilhantes do ensino médio que participavam das olimpíadas serem massificados quando entravam na universidade. Na minha visão, eles poderiam se desenvolver melhor se tivessem mais atenção e mentoria.”
Foi essa possibilidade que atraiu o estudante paulista Pedro Zanineli, de 19 anos, que trocou o segundo ano de graduação em engenharia da computação pelo novo curso. “Percebi que gostava muito de ciência de dados e da área acadêmica, e poderei trabalhar com isso aliando computação, pesquisa e inovação já na graduação”, conta ele, que ficou sabendo do processo seletivo da Ilum pelo Instagram. O caráter multidisciplinar aliado à tecnologia também atraiu Ana Clara Loponi, de 18 anos, de Campinas. “Fiz curso técnico em informática e gostaria de aproveitar esse conhecimento. Quero trabalhar com inteligência artificial aplicada à ciência”, conta.
Isabela Beneti, de 18 anos, goiana que morava em Presidente Prudente, no interior paulista, foi aprovada em engenharia química na Unicamp e em engenharia agronômica na Universidade de São Paulo (USP), mas optou pelo bacharelado da Ilum. “Nas primeiras semanas, já estamos aprendendo programação, que é a base das pesquisas hoje em dia, mexendo com Arduino [plataforma de prototipagem eletrônica de hardware livre] e achei isso muito empolgante. Já estamos colocando a mão na massa”, diz a estudante que, no ensino médio, ganhou duas medalhas de ouro na Olimpíadas Nacional de Ciências. Ela foi a primeira colocada entre os 40 selecionados – dos 10 primeiros com notas mais altas, nove eram mulheres, que compõem 48% da primeira turma.
Mesas, cadeiras e Paulo Freire
Na sala de aula da escola, as mesas comportam grupos de quatro alunos e o professor circula entre eles tirando dúvidas. “Não damos aulas expositivas, trazemos sempre questões para serem debatidas e problemas para serem resolvidos em grupo”, conta a bióloga Juliana Smetana, professora da escola e pesquisadora do CNPEM. Neste primeiro semestre ela é responsável pela disciplina de introdução à biologia molecular, genética e bioquímica. “Na primeira aula, trabalhamos a definição de vida. Eles foram instigados a elaborar um conceito com base em pesquisas que fizeram. Esses conceitos foram apresentados, debatidos e votados em aula. As aulas são movimentadas e barulhentas, porque eles participam muito”, explica. As aulas teóricas foram pensadas para se encaixarem com as atividades nos laboratórios da escola – informática, ciências da vida e ciências da matéria –, com equipamentos como o microscópio de força atômica e o de tunelamento, que permitem observar átomos e moléculas.
Todo o conteúdo do curso e os exercícios foram adaptados na plataforma Moodle, ambiente virtual para apoio à aprendizagem, já instalado nos notebooks que os estudantes recebem para uso durante a graduação. “O laptop é uma das ferramentas da nossa metodologia ativa de ensino, que procura colocar o aluno como protagonista, com uma aprendizagem baseada em solução de problemas. O professor é um mediador”, explica o físico Nelson Studart, professor aposentado sênior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador acadêmico da escola.
Segundo ele, o fato de os alunos sentarem-se juntos permite o aprendizado entre pares, já que um colega que tem facilidade em determinado assunto pode ajudar o outro. As salas de aula também têm lousas móveis, que estimulam os estudantes a carregá-las anotando ideias enquanto desenvolvem as atividades, até na área de alimentação ou nas mesas em áreas comuns. “Procuramos modelos de ensino usados em cursos da Universidade Harvard e do MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts], com esse apoio tecnológico e forte interação, combinado com a ideia de dialogicidade de Paulo Freire [1921-1997]. O professor ensina e também aprende.”
Já a imersão nos laboratórios do CNPEM deve ocorrer de forma progressiva, com visitas e realização de pequenas tarefas sob a supervisão de pesquisadores dos laboratórios. A previsão é de que no último semestre os estudantes passem todos os dias da semana nos laboratórios trabalhando em projetos regulares, sempre em grupo. “Isso é importante porque não adianta ser um gênio se ele só souber trabalhar sozinho. Um bom pesquisador precisa saber liderar, ser liderado e trabalhar em equipe”, diz Fazzio.
Roque garante que o curso não foi criado com o objetivo de fornecer recursos humanos aos laboratórios nacionais. “Esperamos que sejam jovens cientistas preparados para resolver problemas na fronteira do conhecimento, como os relacionados ao clima, por exemplo. Um universo vai se abrir para eles”, afirma.
Inspiração
Cerqueira Leite conta que a ideia da Ilum – nome derivado da palavra iluminar, que tanto remete ao Sirius e à luz síncrotron quanto à simbologia do processo de conhecimento que se propaga como a luz – se sedimentou ao longo de experiências marcantes de sua própria formação. Segundo ele, as duas principais inspirações são a Escola Normal Superior de Paris, onde frequentou laboratórios durante seu doutorado e que também busca a interdisciplinaridade já na graduação em ciências, e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde se formou. “Eles davam uma atenção especial ao aluno que tinha auxílio para moradia e alimentação para poder se dedicar de forma integral”, recorda.
As graduações interdisciplinares não são novas no país. Uma das primeiras a surgir foi a de bacharelado em ciências moleculares da USP, criado em 1991, que procura formar alunos voltados para a carreira científica em quatro anos com um currículo que reúne biologia, química, matemática, física e computação. Por muito tempo, o curso teve fama de abrigar gênios, já que tem um processo seletivo rigoroso entre alunos que já ingressaram em cursos regulares da universidade.
“Não estamos inventando a roda, mas a combinação entre metodologias ativas de ensino, acompanhamento próximo aos alunos, currículo interdisciplinar, imersão no CNPEM – a maior infraestrutura de pesquisa disponível hoje no país – e os benefícios oferecidos tornam o curso único no Brasil”, observa Roque.
A escola é mantida pelo Ministério da Educação (MEC) e os recursos são transferidos para o CNPEM pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Em 2018, a Ilum recebeu R$ 15 milhões para estruturar o projeto, comprar equipamentos e reformar o prédio, que no final da década de 1980 abrigou as primeiras peças do UVX, o primeiro acelerador de partículas do LNLS. Em 2020 foram R$ 9,7 milhões e em 2021 R$ 9,8 milhões. O orçamento de 2022 ainda está em negociação e deve ficar em torno do mesmo valor, que, segundo Fazzio, deverá ser anual. O processo seletivo para a segunda turma deve ocorrer no segundo semestre deste ano.