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Visão ampla da ciência marca debate sobre Humboldt no Science Film Festival
Audiovisual

por | 7 nov 2019

Com colaboração de Mariluce Moura

Após a exibição do documentário de média metragem Humboldt e a Redescoberta da Natureza, no Goethe Institut, em São Paulo, na noite da quarta-feira, 6, aconteceu um debate entre os pesquisadores Paulo Artaxo e Maria Cecília Wey de Brito, que partiu da figura inspiradora do cientista alemão para questões cruciais da ciência e da preservação ambiental no presente. Artaxo é professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e um dos mais renomados cientistas climáticos do Brasil, fazendo inclusive parte do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC, na sigla em inglês). Wey é engenheira agrônoma e mestra em ciência ambiental, foi secretária de biodiversidade e florestas no Ministério do Meio Ambiente e diretora do Instituto Florestal e da Fundação Florestal, ambos ligados ao governo do estado de São Paulo, atualmente é responsável por relações institucionais e coordenação de projetos no Instituto Ekos Brasil. O debate foi mediado por Mariluce Moura, coordenadora do Ciência na rua.

O filme apresenta a vida de Alexander von Humboldt, cujos 250 anos de nascimento são celebrados pelo festival. Humboldt, um aristocrata alemão que aos 27 anos herdou uma enorme fortuna, empreendeu uma expedição de 5 anos pela América do Sul a partir de 1799, junto com seu amigo Aimé Bonpland, durante a qual coletaram milhares de espécies de plantas e estudaram questões tão amplas cientificamente quanto descargas elétricas das enguias e atividade vulcânica. Nos Andes, Humboldt começou a entender como fenômenos da natureza são interdependentes, em um momento em que o senso comum na Europa era de que tudo na Terra tinha sido criado por Deus para usufruto do homem. Seu trabalho revolucionou a ciência e inspirou, por exemplo, Charles Darwin, personagem que inclusive aparece no filme sendo esnobado por Humboldt.

Wey começou destacando o espírito observador e a capacidade de análise e síntese do naturalista alemão e constatando como, apesar de nos vermos em grupos separados, compartilhamos o mesmo planeta, que, ao contrário da recíproca, prescinde de nós para seguir sua trajetória. Relacionou isso ao contexto brasileiro de negacionismos, autoritarismos e posições contrárias à ciência, ao meio ambiente e aos direitos humanos. Ela chamou a atenção para a necessidade de ouvir e argumentar – e não simplesmente se contrapôr a essas posições.

Artaxo abriu sua fala chamando o filme de uma poesia sobre a natureza e destacou o pioneirismo de Humboldt na compreensão do que hoje chamamos de ecossistema. Ele ainda defendeu que esses pioneiros – Da Vinci, Darwin – é que realmente faziam grande ciência, por não serem físicos, químicos ou biólogos, e, sim, estudarem o universo como um todo. Artaxo classificou Humboldt como precursor da hipótese de Gaia, por ver a natureza como um ser vivo, em que tudo está integrado, de onde o homem pode ser expelido ao se comportar como um agressor e não como parte do sistema, “que é mais ou menos o que estamos passando com as mudanças climáticas no nosso planeta”.

Embora outros assuntos tenham aparecido, esses dois grandes temas levantados pelos debatedores – a necessidade de uma visão integrada das ciências e a necessidade de termos a ciência como base para diálogos produtivos no debate público – foram os eixos da conversa que se seguiu. Indagados pela mediadora sobre como atingir um equilíbrio entre o volume de dados que se tem hoje em cada campo científico – causa e consequência de sua subdivisão em disciplinas – para que se possa continuar olhando a árvore sem perder de vista a floresta, Artaxo deu como exemplo a articulação entre diferentes campos em pesquisas sobre a Amazônia e Wey explicou que os milhões de dados só trazem informação relevante quando se fazem perguntas fundamentais cuja resposta possa ser sintetizada com esses dados.

Foto: Thaisa Oliveira / ComKids

A primeira pegunta da plateia, sobre Wilhelm von Humboldt – o irmão mais velho de Alexander, que concebeu o modelo de universidade moderna com pesquisa e ensino se apoiando mutuamente –, levou o debate para o contexto brasileiro atual, em que o governo federal ataca sistematicamente a educação e o meio ambiente. Artaxo chamou a atenção para o modelo econômico em que o meio ambiente é visto como fonte de lucros máximos no menor tempo possível. Wey, ponderando não ser espiritualizada, avaliou que falta à sociedade uma cosmovisão que entenda a vida na Terra como algo que vá além do nosso consumo cotidiano. Marcio Weichert, coordenador do Centro Alemão de Ciência e Inovação (DAAD), que estava na plateia, acrescentou que, na academia alemã, a terceira missão da universidade pública no Brasil – a extensão, o contato direto com a sociedade – começa a ser vista com maior atenção. Em seguida ele perguntou como trazer a visão de convivência em maior harmonia com a natureza para a vida real, por exemplo, numa cidade como São Paulo. Perguntou ainda como melhorar a comunicação entre a ciência e o estado.

Artaxo, respondendo a primeira pergunta de Weichert, afirmou que é preciso redesenhar o modelo econômico baseado em crescimento contínuo e infinito num planeta que tem recursos naturais finitos. “A conta vai chegar alguma hora, e cada vez mais vemos que está chegando”. E brincou: “agora, como vamos construir essa nova sociedade? Se você descobrir, ganha o Prêmio Nobel no dia seguinte”. Ele avaliou que nenhum dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável defendidos pela ONU  é factível no atual sistema econômico. Wey lembrou que a produção de alimentos que são desperdiçados é a segunda maior fonte de emissão de gases de efeito estufa. “Está claro que não precisamos tanta produção, e que nosso consumo é muito acima do que precisamos”. E prosseguiu: “a perspectiva de crédito no futuro é o que fez com que tivéssemos tanto dinheiro no mundo, um dinheiro que na verdade não existe, ou começamos a rediscutir esse tipo de conceito e mudamos a forma de enxergar o planeta e os seres vivos ou nosso caminho já está dado”. A mediadora lembrou que, no próprio documentário exibido, Humboldt, 200 anos atrás, reclamava que a destruição do meio ambiente nos faria ter que buscar outros planetas para viver.

Mônica Borba, na plateia, contou que trabalha com formação de professores de educação básica e que, neste ano, levou um vídeo sobre a hipótese de Gaia a uma escola no Pantanal e espantou-se por nenhuma das professoras, num ambiente com grande integração entre as pessoas e a natureza, ter ouvido falar a respeito. Ela criticou a Base Nacional Comum Curricular, que se atém praticamente ao ensino de português e matemática.

Foto: Thaisa Oliveira – ComKids

Uma jovem da plateia, Joana, que não disse o sobrenome, perguntou sobre a dificuldade de se fazer divulgação científica e divulgar uma mentalidade mais holística, em oposição a uma visão mais antropocêntrica. Ela criticou uma reportagem que havia lido em que se defendia a entrada da ciência em comunidades como forma de destruir a visão religiosa dessas. “Parte dessa crise climática que a gente vive hoje tem a ver com a ideia de uma centralidade do homem e também da superioridade do pensamento científico; para essa visão mais holística, temos que reconhecer que o pensamento científico não é o único legítimo”. Ela ainda chamou a atenção para uma certa ironia de Humboldt ser visto como um pioneiro de uma visão mais integrada da natureza, quando ele esteve na América do Sul com povos que provavelmente já tinham essa compreensão. Moura avaliou que a produção científica está organicamente inserida no sistema capitalista e que, sendo a ciência uma forma de abordar o mundo, por mais influente e bem sucedida que seja, cabe aos divulgadores não transformá-la num absoluto, na única forma de abordar o mundo.

Da plateia, Maria Zulmira de Souza, divulgadora científica, contou que tem ido às periferias urbanas para desaprender o que sabe e conhecer centros de inteligência fora dos circuitos mais óbvios. Ela defendeu que Humboldt sirva de inspiração para que olhemos os nossos arredores, experimentemos, sintamos na pele o que se está fazendo neles. Ela ainda comparou Humboldt à jovem ativista norueguesa Greta Thumberg, por trazer a ciência à atenção de todos. Uma jovem da plateia, Talita, também destacou a questão da experiência direta que o filme evidencia como importante.

O biólogo Marcelo perguntou a Wey, referindo-se à primeira fala dela, como fazer para conversar com quem não quer ouvir. Após brincar, “sei lá, pisa no pé da pessoa”, a pesquisadora avaliou que é preciso entender por que a pessoa não quer ouvir, “a pessoa às vezes pode ter demorado tanto para conseguir criar uma ideia, que não quer o trabalho de rever para criar outra”. Artaxo concordou e defendeu que se tente pelas bordas, mostrando evidências, e deu o exemplo do agronegócio, cujos representantes não costumavam querer ouvir falar em questões ambientais e começaram a se preocupar quando começou a ficar claro que a imagem do país poderia afetar seus lucros.

Após alguns agradecimentos, o debate se encerrou. Em um contexto tão desanimador que vive o país, a sensação geral após essa conversa parecia ser de algum otimismo, se não com nossos rumos institucionais, ao menos em relação à possibilidade da criação de espaços como esse, com assuntos e provocações intelectuais pertinentes sobre o futuro do planeta e o papel da ciência – em sentido amplo – nesse futuro.

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