Reportagem produzida originalmente por Elisa Marconi e Francisco Bicudo para a Giz, revista on-line do Sindicato dos Professores de São Paulo.
Em abril deste ano, o Conselho Nacional de Educação (CNE) recebeu a última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O Ministério da Educação cumpriu, assim, a segunda etapa da reforma da educação que pretende unificar o ensino em todas as escolas do país. No documento, estão as diretrizes de tudo que deve ser trabalhado no ensino médio – e elas se somam ao conteúdo da primeira fase da reforma, que pontuou as referências sobre os ensinos infantil e fundamental. A ideia do governo é aprovar a BNCC e implantar seu funcionamento até 2020.
A razão alegada pelo governo federal para fazer uma reforma educacional no país é garantir a equivalência de ensino para todos e melhorar os níveis de aprendizado. No caso do ensino médio, a preocupação seria com a evasão e o desinteresse na educação continuada. Para o MEC, a causa desses fenômenos é que nosso sistema atual tem disciplinas demais e é muito engessado, fazendo com que o estudante não se envolva com os conteúdos, não se sinta estimulado por eles. Assim, a solução oficial encontrada foi oferecer o ensino de linguagens e matemática obrigatório nos três anos de ensino médio e concentrar as outras disciplinas em áreas do saber, oferecidas como optativas. O jovem iria escolhendo de acordo com seus interesses.
A justificativa da livre escolha não convence boa parte dos educadores e dos pesquisadores da área. O professor da faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Ocimar Munhoz Alavarse, engrossa o coro dos preocupados e descontentes com a reforma. Pedagogo pela Universidade Federal de São Carlos/SP, mestre e doutor em educação pela USP, ele condena a atual proposta por variadas razões. “A começar, porque não existe um diagnóstico da situação do ensino médio no país. Sem isso é impossível – e irresponsável – alguém dizer que conhece o cenário e propor soluções para esse cenário”, destaca.
Em entrevista exclusiva concedida à reportagem da Revista Giz, o professor e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Avaliação Educacional (Gepave) levantou outros aspectos da reforma – que ele prefere chamar de contrarreforma, pelos efeitos perversos que provoca –, como a falta de discussão com a sociedade, com professores e com alunos; a diminuição apressada da oferta de disciplinas; e as lacunas relacionadas às optativas oferecidas no lugar das obrigatórias, entre outros. “Os jovens estão chegando mais velhos ao ensino médio e não veem ali o caminho para melhorar de vida. Mas o gargalo disso não está nessa etapa, está no final do ensino fundamental. Falhamos ali. Também não agregaram a universidade nessa contrarreforma”, provoca.
Você pode acompanhar a seguir a íntegra da entrevista do professor Alavarse.
Professor, qual é sua análise geral sobre a Base Nacional da Educação para o ensino médio que o Ministério da Educação (MEC) entregou em abril para o Conselho Nacional da Educação?
A reforma não é, no sentido primeiro da palavra, uma reforma – onde você mantém a estrutura e melhora aspectos pontuais. Reforma é aperfeiçoamento. E a BNCC não representa isso. É, antes, uma contrarreforma, porque faz o país retroceder, involuir, considerando o ponto em que estamos. Para entender o que estou dizendo, é importante compreender esse contexto. Se você olhar historicamente os levantamentos, verá que, mesmo lentamente, o número de jovens chegando ao ensino médio está aumentando. É um crescimento sutil, mas pode ser observado. Que jovens são esses? Fundamentalmente, pobres e filhos de famílias pobres, que conseguiram atravessar e concluir o ensino fundamental e finalmente estão chegando ao médio. Apenas 12% do ensino médio é ofertado e abraçado por escolas particulares. O que significa dizer que esses jovens têm uma realidade socioeconômica mais desfavorável e vão estudar em escolas do governo. Justo agora que esses meninos e meninas mais pobres e mais precisados da educação pública e gratuita estão chegando ao ensino médio, o governo quer tirar deles a escolarização, tanto em termos de quantidade, quanto em termos de qualidade.
Mas o governo afirma que os jovens não se interessam pela escola, que é chata, tem disciplinas demais e tem uma forma de ensinar engessada. E tenta justificar a tal reforma garantindo que o novo ensino médio traria autonomia para o estudante e alardeando que isso seria a chave para mantê-lo engajado com sua própria educação.
Desde que o ensino médio é ensino médio, na lei que assim determinou, em 1971, essa etapa vive em crise. Na verdade, desde que se pensou num ensino preparatório para o ensino superior, pensados pelos jesuítas, séculos atrás, essa etapa vive uma crise de origem. Por um lado, há quem defenda que o ensino médio deve ser um lugar de educação para todos e, a partir dali, a pessoa opte por uma profissão no mercado ou pela carreira acadêmica, no ensino superior. Por outro, há a linha que defende essa divisão já durante o ensino médio. De qualquer forma, essa tensão sempre existiu e o que acabou se convencionando no Brasil é que o ensino médio seleciona os melhores e os prepara com excelência para a universidade. Sem, no entanto, conseguir aplacar os ânimos de quem defende que se dê para todos o direito à boa formação, independentemente do que o estudante vá fazer com essa formação.
Essa tensão sempre existiu…
Sempre, desde que o ensino médio existe. E se aprofundou depois da lei de 1971, que separou ginásio de colegial. Mudar o nome para ensino médio foi uma maneira de sinalizar que seria uma cesta básica para todos e não mais uma preparação para o futuro, já setorizada, para os poucos e bons, como era até o final da década de 1960. O problema é que quando você quer abraçar tudo e todos, você não abraça nada nem ninguém.
Aí veio essa proposta chamada de nova, que supostamente identifica a falta engajamento do jovem e oferece como solução a redução das disciplinas e também um suposto direito de escolha.
Foi a ideia do Ministério da Educação para atender a uma demanda justa do jovem. Veja bem, é perfeitamente compreensível que o adolescente de 14, 15, 16 anos, ou mais – porque aqui no Brasil, as taxas de repetência são muito altas, coisa de 40 ou 50% de retenção – olhe para a escola e se desanime. Para que serve, afinal, aquilo tudo? O que ele vai fazer com o que é ensinado ali? Veja, é como se o mesmo ensino médio tivesse de servir para a garota que vai virar empregada doméstica e para o menino que vai ser cirurgião plástico. Se serve para os dois, então não serve para nenhum.
O governo argumenta que poder optar pelas disciplinas seria um alento nessa chatice…
Mas é preciso entender que escola é escola. É chato porque é lugar de trabalho, de esforço, de desafio. É falso propagandear que existe um lugar de trabalho que não seja chato. É mentiroso. É enganar o jovem. Além disso, olhe para a oferta de disciplinas optativas que as universidades oferecem. São disciplinas limitadas, há um limite no que a faculdade tem para oferecer. Não é um cardápio ilimitado e cheio de delícias. São, também, opções limitadas. Tem outro problema. A suposta maturidade dos rapazes e moças de 15 anos. Eles se acham muito grandes, mas têm poucas experiências e capacidade de julgamento ainda pouco desenvolvida. Por isso, colocar essa responsabilidade nas costas deles pode ser, na verdade, antieducativo. Precisamos ser cuidadosos com esse discurso. Outra coisa, completamente diferente, é discutir a forma de ensinar. É possível ensinar por projetos e por temas interdisciplinares, sem reduzir as disciplinas. Aliás as disciplinas ajudam nessa segmentação dos conhecimentos e a discussão de como ensinar os conteúdos é sempre bem vinda.
Professor, a demonização das disciplinas cria um problema sério… Afinal, se não for assim o ensino, como será?
Então, mas é exatamente isso. Os professores estudaram e foram formados professores pelo sistema de disciplinas, que são partições didáticas do conhecimento produzido pela humanidade. Quando alunos, estudaram assim, como professores se formaram assim. Como é que, sem mudar a formação do professor, vamos cobrar que ele ensine outra forma de dar aula?
E por que o senhor acha que o governo está querendo reduzir o número de disciplinas obrigatórias? Qual é a razão real?
Uma das razões alegadas é a dificuldade de encontrar professores para as diversas disciplinas. Como não são encontrados, o governo está flexibilizando as contratações. Assim, em vez de ser obrigatório contratar um professor de história formado, a escola poderá chamar um profissional de qualquer outra área, com conhecimento e talento em um determinado saber e ele será o professor. O outro nome dessa prática é precarização do trabalho do professor. Percebe como a contrarreforma ataca os alunos mais pobres que estão chegando ao ensino médio e terão menos oferta de escolarização? E também como a contrarreforma ataca o professor, tornando dispensável?
Mas o governo não ataca todas as disciplinas… Algumas sobrevivem.
Novamente, não podemos perder de vista quem é o jovem que chega ao ensino médio hoje e para que serve o ensino médio. Por partes: o estudante chega ao ensino médio mais velho que o esperado, com 15 ou 16 anos, em vez de 14. Ao mesmo tempo, como a formação nos anos finais do ensino fundamental foi mal resolvida, esses adolescentes leem mal, compreendem mal, interpretam mal e analisam mal. Por isso, os conteúdos e a razão de ser do ensino médio ficam prejudicados. A ideia do ensino médio é apresentar e aprofundar o que o conhecimento humano sistematizou desde o início da civilização. Um jovem de 16, que compreende como um menino de 12, não vai ter o menor interesse nos grandes temas que a humanidade produziu. Então o problema não é a quantidade de disciplinas, mas como elas chegam nos jovens e como eles digerem e dão sentido a tudo isso. Com essa formação, mesmo que fossem quatro disciplinas, seria muito para esses jovens.
E como vai ficar a articulação com o fundamental 2, que já é regido por disciplinas, e com a universidade, que também trabalha com disciplinas?
Então, não vai acontecer. A reforma não foi pensada para se articular com o que vem antes nem com o que vem depois. E isso é bem sério. As disciplinas que devem sair foram escolhidas sem diálogo com a população, com os professores e com os pesquisadores, por isso não dá nem para justificar.
O Ministro da Educação, Rossieli Soares, anunciou há alguns dias que o MEC poderá fazer mudanças na BNCC do ensino médio. Embora não tenha detalhado quais seriam as alterações, garante que o documento final deve ser aprovado ainda em 2018. O que o senhor pensa desse movimento?
Estaria o MEC cedendo os anéis para ficar com os dedos? Essa poderia ser uma leitura, tendo-se em conta as fortes resistências à proposta original, verificadas tanto no Conselho Nacional de Educação, quanto mais amplamente. Talvez seja a intenção dos dirigentes de plantão do MEC no apagar de luzes de um ‘golperno’ que precisa concluir sua obra de ataque também à Educação. Talvez seja a oportunidade para compreendermos que a proposta, no fundo, não tenha como ser revista, dado que padece de vícios de origem. Isto é, a BNCC para o ensino médio procura salvaguardar uma contrarreforma. Não bastaria a completa inversão de valores na organização dessa etapa da educação básica, pois antes foram definidos marcos organizativos que fixaram os verdadeiros conteúdos, que agora estariam sendo explicitados. Em outras palavras, não se estaria buscando roupagens para um rei nu, mas tirando-lhes as poucas vestes que restam. Trata-se de destituir o direito de jovens mais pobres – a grande maioria no ensino médio – de terem acesso às disciplinas estabelecidas em mais de um século, em nome de vagos “percursos” e de uma escola mais “agradável”. Os eventuais anéis cedidos estariam tentando salvar os dedos das mãos que se negam garantir a oferta de um ensino médio com todas as condições para todos, justamente no momento que a obrigatoriedade de matrícula de 4 a 17 anos de impôs. São mãos que negam a contratação de professores de todas as disciplinas e as plenas condições de funcionamento das escolas. Busca-se, tudo indica, acobertar – com curtíssimos cobertores, diga-se de passagem – o legítimo descontentamento da juventude com a atual situação do ensino médio e suas perspectivas de trabalho futuro com algo que é a negação das razões política, sociais e pedagógicas de qualquer escola: o acesso ao conhecimento.