Há um substantivo – lacuna — que Ta-Nehisi Coates deixa na sombra no título de seu livro, Entre o mundo e eu, recém-lançado em português, apenas cinco meses depois da publicação do original em inglês, Between the World and me. Mas o termo aparece logo nas primeiras linhas de seu estupendo relato. E pode também ser substituído por brecha, ou falha, sinônimos a que recorre para voltar algumas vezes ao conceito no decorrer de sua extraordinária reflexão sobre a experiência de ser negro hoje nos Estados Unidos, elaborada sob a forma de uma carta ao filho de 15 anos.
“No domingo passado a âncora de um popular noticiário me perguntou o que significava perder meu corpo”, começa a contar. Ela transmitia de Washington, ele se encontrava no extremo oeste de Manhattan. “Um satélite cobria os quilômetros entre nós, mas nenhuma maquinaria poderia cobrir a lacuna entre o mundo dela e aquele para o qual eu tinha sido convocado a falar”.
“Especificamente, a âncora queria saber por que eu achava que o progresso da América branca, ou melhor, o progresso desses americanos que acreditam serem brancos, era construído a partir de pilhagem e violência”, prossegue o jornalista e escritor. E Coates fala da “velha e indistinta tristeza” que inunda seu corpo a essa pergunta, antes da afirmação que soa como uma martelada: “A resposta é a história americana”.
Outras assim se seguem: “Os americanos acreditam na realidade da ‘raça’ como uma característica definida, indubitável, do mundo natural. O racismo – a necessidade de atribuir características profundamente inerentes às pessoas e depois humilhá-las, diminuí-las e destruí-las – é a consequência inevitável dessa condição inalterável”.
Ainda não ultrapassamos as primeiras três páginas do livro (pp 17-19) e já lemos também que a raça é filha do racismo, não sua mãe. E ainda: se diferenças de cor de pele e de cabelo são antigas, “a crença em sua proeminência”, ele ressalta, “é a nova ideia que prevalece no âmago dessas novas pessoas que, de forma desesperançosa, trágica e ilusória, foram levadas a acreditar que são brancas”.
Na trilha vertiginosa que vai abrindo para apresentar ao filho o racismo em suas verdadeiras entranhas na sociedade americana, e a partir da qual, de fato, ao fim terá logrado sua exibição crua a nossos olhos sob uma luz nova, Coates lembra que “essas pessoas [brancas] são, como nós, uma invenção moderna”. Eram alguma outra coisa, “católicas, corsas, galesas, menonitas, judias”, antes de serem brancas. E talvez adiante precisem voltar a sê-lo. Mas isso, diz, é o que não consegue antever.
“Por ora, deve-se dizer que o processo de embranquecimento das diversas tribos, de enlevo à crença de ser branco, não foi alcançado por meio de atividades sociais como degustação de vinhos e sorvetes, e sim pela pilhagem da vida, da liberdade, do trabalho e da terra; pelo açoitamento das costas; o acorrentamento dos membros; o estrangulamento de dissidentes; a destruição de famílias; o estupro de mães; a venda de crianças; e vários outros atos que visavam, primeira e prioritariamente, negar a você e a mim o direito de assegurar e governar nossos próprios corpos” (pp 19-20)
Registre-se que tudo isso é apenas o começo de uma narrativa vibrante, na qual a experiência pessoal, a violência e o medo permanente vividos na carne desde a infância e a adolescência, inscritos no corpo negro socialmente tão frágil, constituem trama. Assim como seus trajetos desde a universidade em busca da superação desse corpo vulnerável, por meio do conhecimento, da sensibilidade e do amor, através da consciência e lutas que investem contra o Sonho [americano], para Coates, mortal.
Servem de matéria prima à urdidura a retomada de grandes questões históricas e os ecos avassaladores da subjugação concretizada em 250 anos de escravidão, que se encontram no assassinato impune de seu brilhante colega Prince Jones tanto quanto num sem número de outros assassinatos de jovens negros aos quais o sistema quase sempre responde com aterrador cinismo e negação de culpa dos criminosos.
Vale lembrar, por exemplo, o caso do adolescente Laquan McDonald, assassinado com 16 tiros em Chicago, em 2014, cujo autor do crime, o policial Jason Van Dyke, só foi finalmente indiciado por assassinato em primeiro grau, em novembro passado, depois da divulgação do vídeo que não deixava dúvidas sobre o crime, seguida por protestos intensos na cidade.
O gênero literário escolhido por Coates, a carta, e a forma como o maneja, remetem de cara a James Baldwin e a seu Dungeon Shook: Letter to my Nephew on the One Hundredth Anniversary of Emancipation, de 1963, na visão de alguns críticos. Tenha o genial Baldwin o inspirado ou não, importa que a flexibilidade e o tom coloquial dessa forma permitem a Coates manejar com mestria ao mesmo tempo as ferramentas da reportagem, da análise histórica e do sensível relato do vivido.
“Não sou um cínico. Amo você e amo o mundo, e o amo mais a cada novo centímetro que descubro. Mas você é um menino negro, e precisa ser responsável pelo seu corpo de uma maneira que outros garotos jamais poderão entender”, Coates escreve.
“Na verdade, você também será responsável pelas piores ações de outros corpos negros, que, de algum modo, sempre serão atribuídos a você”, continua. “E você terá de ser responsável pelos corpos dos poderosos – o policial que bate em você com um cassetete encontrará com facilidade algum pretexto em seus movimentos furtivos. E isso não se reduz a você – as mulheres a sua volta devem ser responsáveis pelos seus corpos de uma maneira que você jamais irá entender”, diz.
“Você tem de fazer as pazes com o caos, mas não pode mentir. Não pode esquecer o quanto eles tiraram de nós e como transfiguraram nossos corpos em açúcar, tabaco, algodão e ouro”.
Cabe perguntar a essa altura o quanto o livro de Coates guarda alguma relação com a experiência brasileira do racismo. A excelente introdução à edição brasileira assinada por Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), autor de Classes, Raças e Democracia, dá boas pistas neste sentido.
O leitor brasileiro, ele diz, “deve ler Ta-Nehisi pensando nos massacres do Carandiru, da Candelária, de Osasco, de Carapicuíba, de Guarulhos, da Rocinha, de, de, de… e de tantos outros lugares, e dos assassinatos individuais, milhares deles, cotidianos, vulgares, aceitos como única forma de defender o nosso sonho de nação e de civilidade. Do medo que mora nas favelas, no encurralamento dos espaços urbanos, nas fortalezas habitacionais etc”. A tudo isso ele contrapõe as possibilidades abertas com a lei de cotas de 2012 com, por exemplo, o acesso a novas aspirações humanistas que estão vindo à luz.
O livro de Coates, embora com uma carreira muito bem sucedida, levantou ruidosa polêmica entre os movimentos negros americanos. Ateu, num meio em que a religião tem poderosa influência, feminista, anti-guetos, mirando uma utopia de libertação que propõe a convergência das lutas de múltiplos grupos nos quais a experiência da subjugação do corpo é um um campo comum de sofrimento, moeda dominante, não podia ser muito diferente.
Para concluir, voltemos à brecha entre o mundo e o autor, do começo desta resenha. Há muitos momentos em que Coates fala da oposição entre o à vontade dos “outros” garotos e a tensão dos garotos negros. Essa tensão da qual não consegue escapar e que implica “um imensurável dispêndio de energia, uma lenta drenagem da essência” (p 95). Ou da oposição entre uma suposta autoridade de outros, a mulher branca, por exemplo, que gritando ,“Anda logo!”, empurra um garoto negro de quatro anos que anda a sua frente nas escadas rolantes de um cinema, e o sentimento de ira e vergonha do pai desse menino depois de reagir à agressão, ao perceber que pôs em risco real de destruição o corpo do filho.
Falha, lacuna ou brecha, “esse abismo se torna conhecido para nós de inúmeras maneiras. (…) Nunca perguntei como você pessoalmente tomou conhecimento da distância (…) Mas sei que isso já aconteceu, que você deduziu ser um privilegiado e mesmo assim diferente de outras crianças privilegiadas porque você carrega um corpo mais frágil do que qualquer outro neste país. O que quero que você saiba é que isso não é uma falha sua, mesmo sendo, no final das contas, de sua responsabilidade (…) porque está cercado de Sonhadores (…). Essa brecha é tão intencional quanto uma política, tão intencional como o esquecimento de tudo que a isso se segue. A brecha permite uma eficiente classificação dos saqueados e dos saqueadores, dos escravizados e dos escravizadores, dos arrendatários e dos proprietários de terras, dos canibais e de seu alimento” (p 137).