jornalismo, ciência, juventude e humor
Prazer, educação sexual

Texto: Laura Araujo e Tiago Marconi
Ilustrações: Bennê Oliveira

Ainda marcada por tabus, educação sexual deve abrir caminho nas escolas por meio do diálogo, reflexão sobre direitos e incentivo à autonomia

Transar ou não transar, eis a questão que ronda a cabeça de muitos adolescentes. Segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, brasileiros e brasileiras com idades entre 18 e 29 tiveram a primeira relação sexual com, em média, 16 anos de idade. Mas nem por isso o assunto deixa de ser um tabu – as aulas de educação sexual que o digam. A matéria não integra o currículo escolar brasileiro de maneira determinada, como ocorre com as disciplinas fixas. Escolas e professores podem abordar o tema em sala de aula de maneira transversal, mas geralmente a responsabilidade recai sobre as aulas de ciência. Fisiologia, aparelho reprodutor humano e reprodução puxam temas que dizem respeito à sexualidade de maneira ampla. Como o sexo pode ou não ser feito? Quais formas de contracepção existem, e como se prevenir de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)? É verdade que a masturbação faz crescer pelos nas mãos dos meninos, ou que as meninas “mudam de corpo” depois da primeira vez?

Entre dúvidas e inseguranças dos alunos – e algumas piadas também –, a escola ainda ocupa um lugar confuso no que diz respeito à educação sexual. Segundo Mary Neide Figueiró, psicóloga especialista no tema e doutora em educação desde a década de 1980 e professora aposentada da Universidade Estadual de Londrina (UEL), a presença da educação sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), estabelecidos nos anos 1990, não é o bastante. “Isso foi ótimo para dar a arrancada necessária, mas infelizmente não houve estudo ou condições de aplicação. Os professores precisariam também de uma formação específica, e o Estado falhou nesse aspecto”, lamenta. Atualmente, além dos PCNs, o documento que baliza os currículos escolares é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que, de acordo com Figueiró, traz muito pouco sobre sexualidade

A pouca atenção dedicada à matéria é inversamente proporcional à sua importância. Para Figueiró – que é autora de cinco livros sobre o tema, organizadora de outros três e tem um canal no YouTube com mais de cinco mil inscritos –, mais do que orientar adolescentes sobre a forma mais segura de se relacionar, a educação sexual têm uma importante função social e psicológica: levar à reflexão e ao exercício da autonomia. Articulando conhecimentos de biologia, psicologia e sociologia, a educação sexual é capaz de derrubar mitos anticientíficos, fazer contrapontos importantes a pressões de grupo e, principalmente, ensinar desde o início da vida escolar que cada pessoa tem soberania sobre o próprio corpo. Além de prevenir gestações precoces, as aulas devem ser capazes de ensinar a crianças e adolescentes sobre situações de abuso e a respeito de dizer sim ou não ao outro quando o assunto é o próprio corpo.

Homossexualidade, transexualidade, assexualidade e abstinência sexual por escolha são outros temas que merecem ser explorados, com muito diálogo e respeito. “Além de valorizar e dar margem para o conhecimento científico, esse deve ser um espaço para ensinar a pensar. A educação sexual deve trazer trabalhos em grupo, dinâmicas, exercícios em que o jovem possa colocar suas emoções, dúvidas, vergonhas, medos. É uma linha de trabalho formativa, e não apenas informativa”, destaca.

Passado e futuro

As escolas brasileiras conheceram os primórdios da educação sexual há quase cem anos, mas seu desenvolvimento não foi linear, e tampouco homogêneo. As primeiras experiências educacionais nesse sentido aconteceram no país entre as décadas de 1920 e 1930 em cidades de grande porte, como São Paulo e Rio de Janeiro. Colégios de origem europeia e norte-americana, alguns deles protestantes, introduziram o tema com o objetivo de orientar meninas sobre o que as esperaria na vida de casada e evitar, entre os meninos, o que na época se denominava “desvios sexuais”, como a masturbação e a homossexualidade.

A resistência foi grande, sobretudo em escolas de confissão católica, onde o assunto era proibido. O início dos anos 1960 apontava para a ampliação da presença da educação sexual nas escolas, mas a tendência não foi concretizada pois o clima repressivo que se alastrou pelo Brasil nos anos da Ditadura Militar fechou os olhos para a educação sexual. Em 1968, a Câmara Federal rejeitou um Projeto de Lei da deputada carioca Julia Steinbruch, que propunha a inclusão da educação sexual nos currículos de 1º e 2º grau. O argumento político da época é que sexo era assunto a ser tratado em casa, com a família.

Entre avanços e recuos, chegou-se aos anos 1980, marcados tanto pelo afrouxamento do Regime Militar quanto pelo surgimento do vírus HIV. A conjuntura incentivou a volta da educação sexual nas escolas, mas a resistência nunca deixou de existir – e inclusive se fortaleceu nos últimos anos, com movimentos de pressão bem organizados, como o Escola Sem Partido, no Brasil, e outros similares, internacionalmente. “O momento que estamos vivendo é sério. O discurso de ideologia de gênero existe mundialmente e afeta mais de 50 países, é dizer que, se você trabalha gênero nas escolas, você vai estar influenciando os adolescentes a virarem homossexuais, vai estar incentivando as crianças a mudarem de sexo, é um discurso deturpado”, conta a pesquisadora. “Mas nós que acreditamos na importância e na necessidade da educação sexual continuamos firmes.”

Atualmente, o Ministério da Educação conta com manuais sobre a matéria. Mas ainda é preciso avançar. Segundo Figueiró, o caminho passa pelo diálogo, com alunos tendo abertura e um ambiente seguro para expor dúvidas e trocar ideias. “É o espaço onde o estudante vai pôr na balança os valores e normas aprendidos na família, o que discutiu em sala, as posições dos diferentes amigos, o que a professora também tem a sinalizar educativamente, e depois, amadurecendo, formar os seus valores e tomar decisões de forma autônoma, sabendo que a vivência da sexualidade é uma escolha”, define.

Prazer e responsabilidade

Existem evidências de que abordagens na área da sexualidade que levem em conta a dimensão do prazer, e não do medo, têm melhores resultados. No artigo “What is the added value of incorporating pleasure in sexual health interventions?” (“Qual valor é adicionado ao se incorporar o prazer em intervenções de saúde?”, em tradução livre), cinco pesquisadores baseados na Europa apresentaram os resultados de uma metanálise sobre o tema, avaliando trabalhos publicados entre 2005 e 2020. A base de dados analisada contou com estudos sobre intervenções de saúde com foco na prevenção à infecção pelo vírus HIV e outras ISTs, realizadas em várias partes do mundo.

Segundo os especialistas, intervenções educacionais sobre sexualidade que incorporam em seus conteúdos aspectos relacionados ao prazer têm efeitos positivos significativos sobre as atitudes dos alunos. O uso de preservativo foi maior entre pessoas que vivenciaram essa abordagem, assim como a motivação e interesse por buscar mais informações. “Duas avaliações quase-experimentais em larga escala de programas de educação sexual na Espanha e no Brasil apresentaram a sexualidade como um valor humano positivo e fonte de prazer, incluíram várias formas de empoderamento e atividades interativas e ambos foram capazes de aumentar o uso de preservativo”, destaca o artigo. O programa mencionado é objeto de análise de outro artigo, publicado em 2009, no qual pesquisadores abordam os resultados comportamentais de alunos de quatro escolas em Minas Gerais após um programa de educação sexual. Os questionários aplicados entre os estudantes mostraram que o programa conseguiu mais do que dobrar o uso consistente de preservativos, e aumentou o uso de contraceptivos em 68%, sem antecipar ou estimular a prática sexual.

De acordo com a especialista, essa de fato é uma dimensão a ser explorada nas escolas. “No início da década de 80, com a AIDS, geralmente se trabalhava com discursos que assustavam, do tipo ‘se você não usar camisinha vai pegar AIDS e morrer’, ou sobre gravidez na adolescência. Eram discursos que mostravam só o lado negativo de fazer sexo, fazendo um controle com as crianças e mostrando os perigos”, lembra. Mas as coisas não precisam ser assim. “Podemos trabalhar dizendo: ‘olha, se você usar camisinha, vai fazer sexo com mais prazer, sem medo de pegar uma doença’”, exemplifica. Mas falar abertamente em prazer ainda é uma estratégia delicada. Um discurso no ambiente escolar que adote esse ponto de vista encontra uma série de tabus ligados ao corpo, especialmente sensíveis para determinados grupos políticos e religiosos.

Além do lugar-comum

Questões políticas, comportamentais e éticas também devem fazer parte das abordagens sobre sexo nas escolas. As orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) apontam uma série de dimensões a serem tratadas antes de se chegar às menções a atos propriamente sexuais. Temas como saúde, bem-estar, gênero e violência, por exemplo, têm muito a ver com educação sexual. “Existem algumas dinâmicas prontas com as quais eu trabalho. Um delas pergunta se os alunos concordam com frases sobre o trabalho doméstico e criação dos filhos ser tarefa de ambos os pais ou só da mãe, ou sobre o que fazer com uma gravidez na adolescência, se é preciso casar ou não, e por quê”, exemplifica Figueiró. O protagonismo dos jovens faz com que eles próprios cheguem ao conhecimento, saindo da dinâmica em que o professor é detentor do conhecimento e o aluno é passivo. “Nesses exercícios onde os alunos estão se envolvendo, eles podem chegar à conclusão de que a camisinha é importante, de que métodos combinados sãos mais eficazes. Muito melhor do que a professora chegar numa aula e ditar a verdade”, explica a especialista.

A educação sexual também pode ser trabalhada, com adaptações, junto a alunos do primeiro ciclo do ensino fundamental, entre os seis e os 11 anos. Nessa faixa etária, a atenção recai sobre o reconhecimento de direitos sobre o próprio corpo e respeito ao corpo dos amigos, além das primeiras noções sobre a origem dos bebês. “Não se fala de sexualidade”, reforça Figueiró. Embora também não se use o termo abuso sexual com crianças, um dos objetivos é capacitar os pequenos para reconhecer situações de abuso e pedir ajuda. O trabalho na base facilita a dinâmica nos anos posteriores. “A criança já chega com aprendizado de que a escola é um espaço seguro onde ela pode falar sobre o corpo, perguntar curiosidades ou o que deseja saber sobre sexo, de onde vêm os bebês”, garante a psicóloga.

A família é uma aliada da escola, mas é preciso orientá-la no processo. “As famílias precisam muito de orientação para entender o que é a educação sexual e o que ela pode fazer pelos filhos delas”, diz Figueiró. Por isso, é bom reforçar: não cabe ao professor repassar aos alunos suas convicções pessoais sobre o que é certo ou errado. “O professor vai ensinar a pensar, mas não vai dizer ‘tem que transar antes de casar, deixar para depois é caretice’, e nem ‘não pode transar antes de casar, só depois, com a bênção de Deus’. Ele vai mostrar as diferentes formas de pensar sobre a mesma questão para a criança ou adolescente, que irá formando o seu valor, a sua opinião, aproveitando inclusive o que a família estabelece”, explica.

O tema é delicado, e levanta a questão final: por que oferecer educação sexual? Mary Neide Figueiró não tem dúvidas: “Porque é um direito, faz parte dos direitos sexuais e reprodutivos. A criança é preparada para a prevenção à violência sexual, vai conhecer o seu próprio corpo, provavelmente vai iniciar sua vida sexual com mais responsabilidade em um tempo melhor, que ela achar necessário. É isso que a gente tem que pôr nos projetos, ao lado da prevenção às ISTs”. A formação humana do aluno é fortalecida, pois ele sairá da escola com mais ferramentas para usufruir e respeitar a própria sexualidade e a dos demais. E a escola ganha na medida em que se torna um lugar mais seguro, aberto às ideias e interessante para se estar. “Os adolescentes que têm educação sexual na escola acabam gostando mais da escola e da professora ou do professor que trabalham esses assuntos, verifiquei muito na minha prática”, garante a psicóloga.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade