Estudo analisou pegadas que seriam de uma jovem e uma criança do período Pleistoceno ao longo de 1,5 km em parque dos EUA
Às margens de um lago, uma jovem caminha pela lama um tanto escorregadia carregando uma criança pequena. Eventualmente para e bota a criança no chão, caminham um pouco juntas, e a jovem a carrega de novo. Tem pressa, e não é para menos. Naquele lago vêm beber água mamutes, preguiças gigantes e toda espécie de animais. É preciso seguir logo.
“Quando vi as pegadas intermitentes da criança, uma cena familiar veio à minha mente”, disse Thomas Urban, pesquisador na Universidade Cornell, um pioneiro no uso de imageamento geofísico para detectar pegadas e um dos autores do artigo “Walking in mud: Remarkable Pleistocene human trackways from White Sands National Park (New Mexico)” (“Andando na lama: notáveis trilhas humanas do Pleistoceno do Parque Nacional de White Sands (Novo México)”, que será publicado na em dezembro na revista Quaternary Science Reviews e já está disponível online.
A cena, que impressiona pela poderosa combinação da banalidade cotidiana do que possivelmente era uma mãe carregando um filho com a carga de suspense do ambiente perigoso ao redor, foi recriada por cientistas a partir de pegadas fossilizadas no Parque Nacional de White Sands, sítio onde já foram encontrados vestígios de dentes-de-sabre e lobos, entre outros, além de um fóssil de mastodonte. Ela aconteceu em algum momento entre 11,5 mil e 13 mil anos atrás, no finzinho do período conhecido como Pleistoceno. Ao longo desse período, a região teve um lago grande, e o nível de sua água variou muitas vezes, apresentando diferentes configurações. Quando as pegadas foram impressas, provavelmente havia vários corpos d’água menores, que eventalmente inundavam e se juntavam em um só lago.
O achado tem algumas características peculiares. São duas trilhas paralelas, uma de ida e uma de volta, que se estendem por cerca de 1,5 quilômetro, em que as pegadas humanas se sobrepuseram às de outros animais e também foram sobrepostas por outras pegadas de animais, indicando que eles estavam por ali pouco antes da jovem passar e que estiveram ali entre o percurso de ida e o percurso de volta dela. A rigor, não é possível afirmar com certeza que as pegadas de ida e as de volta foram deixadas pela mesma pessoa, mas é muito provável, porque, pelas características das pegadas, se fossem duas pessoas, elas teriam que ser praticamente iguais em estatura e no tamanho dos pés. Também não é certo que fosse uma mulher, poderia ser um homem adolescente. Na trilha de volta, não há indício da presença da criança, cuja idade estimada é de menos de três anos.
Segundo o artigo, inferências a partir de vestígios fósseis desse tipo costumam ser feitas, em alguns casos para espécies inteiras de hominídeos, com base em amostras menores. Essa trilha longa permitiu aos cientistas estudar em detalhes sua variabilidade interna, com implicações para as inferências relativas a biometria e biomecânica, como, por exemplo, a velocidade da caminhada e as pausas.
As sobreposições com pegadas de outros animais também trazem informações relevantes. As pegadas da preguiça gigante indicam que ela parou perto da trilha, se movimentou um pouco e possivelmente ficou em pé nas patas traseiras, talvez para tentar observar quem deixou os rastros. Já o mamute não parece ter sido afetado pela presença humana, ou por não perceber ou por não se sentir ameaçado por ela. Na trilha de ida, com sentido norte, uma das pegadas humanas está deformada por uma pegada de mamute. Na trilha de volta, uma das pegadas da trilha deixada pelo mamute tem uma pegada humana por cima. Além de serem indícios importantes de como interagiam os humanos com a megafauna do período, essas pegadas sobrepostas indicam que tanto as caminhadas da humana como a do mamute aconteceram num intervalo curto, provavelmente de algumas horas.
Entre encontrar as pegadas e recriar a cena, é claro, houve muito trabalho científico. Alguns exemplos: a própria identificação delas só foi possível sob condições específicas de umidade que criam contrastes entre a trilha e o sedimento à sua volta. Avaliações geofísicas e aéreas permitiram identificar e escavar os pontos certos. As escavações começaram com espátula, para determinar o contorno baseado em contrastes de cor e textura em relação ao sedimento em volta. Definidos os contornos, saem as espátulas e entram as escovas para determinar a morfologia tridimensional das pegadas. A isso, se juntam câmeras e softwares que permitem grande precisão para analisar a biometria das pegadas. As medidas do pé servem de base para determinar outras medidas do corpo de quem deixou a pegada, como sua altura e a altura de sua cintura, por exemplo. O mosaico de fotos tiradas do alto permitiu determinar a velocidade da caminhada. A assimetria entre as pegadas do pé direito e do esquerdo em alguns trechos possibilitou a inferência de que a pessoa carregava algo do lado esquerdo (provavelmente a criança).
“Essa pesquisa é importante para nos ajudar a entender nossos ancestrais humanos, como viviam, suas similaridades e diferenças”, disse Sally Reynolds, paleontóloga da Universidade de Bournemouth, na Inglaterra, e co-autora do estudo. “Podemos nos colocar no lugar deles e imaginar como é carregar uma criança de um braço para o outro enquanto cruzamos um terreno difícil, rodeado por animais potencialmente perigosos”.
No fim do artigo, os pesquisadores apontam que, embora a quantidade e a extensão dos vestígios tratados nesse estudo sejam excepcionais, a região sudoeste dos Estados Unidos tem outros terrenos parecidos, apenas esperando para ser explorados.