Eduardo Geraque para o Ciência na rua
Foto: Freepik
Cloroquina é apenas uma entre as alternativas pesquisadas no momento
A pandemia causada pelo coronavírus escancara para todos o funcionamento, e a importância fundamental, da ciência, como disse no início do mês o sociólogo francês Edgar Morin, 98 anos. “Infelizmente, muito poucos cientistas leram Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria científica é apenas algo refutável, Gaston Bachelard, que colocou o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, que mostrou como a história da ciência é um processo descontínuo. Muitos cientistas ignoram a contribuição desses grandes epistemólogos e ainda trabalham de uma perspectiva dogmática”, afirmou o pensador ao jornal eletrônico do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica da França).
O debate sobre a cloroquina, como disse o sociólogo francês a partir do isolamento na sua casa em Montpellier, é apenas um dos que estão sendo travados no momento. O que os médicos e cientistas estão buscando é, antes de mais nada, entender se a droga é realmente eficaz e segura contra os efeitos do coronavírus no pulmão dos doentes. Mas o estão fazendo em uma situação emergencial, muitas vezes sem estudos com grupos controle, o que seria o ideal, mas demoraria mais tempo para ficarem prontos. Ao contrário do que se espalhou pelas redes sociais, que replicam na maioria das vezes opiniões superficiais e sem contexto, a droga não está aprovada pelo FDA americano para ser usada em pacientes com a covid-19.
“Não existem medicamentos aprovados pela Food and Drug Administration para o tratamento da covid-19 e nenhum produto possui dados sólidos para apoiar seu uso contra esta doença. No entanto, em 28 de março, o FDA emitiu uma autorização de uso de emergência para determinados produtos de sulfato de hidroxicloroquina e fosfato de cloroquina para a utilização não aprovada de tratamento de pacientes com a covid-19 hospitalizados, incapazes de participar de ensaios clínicos”, escreveu um quarteto de especialistas para o The Conversation. Esta autorização dada pelo FDA não tem o mesmo peso que uma aprovação convencional de um medicamento.
No Brasil, desde a fala do presidente Jair Bolsonaro a favor das substâncias que são usadas há anos contra doenças como malária e artrite reumatoide, os principais hospitais privados de São Paulo estão administrando a droga, segundo comunicados oficiais, em casos graves da doença. Os resultados ainda são incipientes e estudos mais detalhados deste tipo de procedimento ainda estão em andamento, sem prazo para ficarem prontos. Alguns ensaios podem dar resultados até o fim do mês. Se tudo certo, a droga pode ser eficaz para um grupo restrito de pacientes com complicações moderadas, em um período muito específico do tratamento.
O mesmo debate sobre eficácia e segurança medicamentosa envolve o uso da droga Atazanavir, produzida no Brasil e muito usada no tratamento contra o HIV. Segundo uma pesquisa divulgada no dia 6 pela Fiocruz, o medicamento conseguiu inibir a replicação do vírus, além de reduzir a produção de proteínas que estão ligadas ao processo inflamatório nos pulmões – quadro clínico que vem levando ao agravamento da saúde das pessoas que desenvolvem a covid-19. O estudo também envolveu o uso combinado do Atazanavir com o Ritonavir, outra droga usada para o combate do vírus HIV.
Novamente, em uma situação de emergência, é comum médicos e pesquisadores lançarem mão de medicamentos que já estão prontos, como está ocorrendo com a cloroquina e substância semelhantes, em vez de começarem a fazer algo do zero, que iria demorar muito mais tempo para dar resultados. “A análise de fármacos já aprovados para outros usos é a estratégia mais rápida que a ciência pode fornecer para ajudar no combate à covid-19, juntamente com a adoção dos protocolos de distanciamento social já em curso”, defende Thiago Moreno, pesquisador da Fiocruz, que lidera os estudos com as drogas normalmente usadas contra o HIV. Segundo o pesquisador, os medicamentos propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) são os que estão mais próximos de se tornarem terapias para os pacientes com a covid-19. De acordo com Moreno, apesar de as drogas estarem sendo estudadas contra o coronavírus, em hipótese alguma elas podem ser tomadas sem prescrição médica.
Plasma e anticoagulantes
Alguns grupos no Brasil, caso do Hemocentro de Ribeirão Preto, na esteira de experiências promissoras nos Estados Unidos e na China, vão começar a aplicar plasma de pessoas que se curaram da covid-19 em pacientes internados em estado grave. Segundo Rodrigo Calado, diretor e hematologista do Hemocentro no interior de São Paulo, além de coordenador da pesquisa, o uso do plasma contra doenças infecciosas não é exatamente uma novidade, apesar de ser pouco frequente. A técnica parte do pressuposto de que os anticorpos de uma pessoa que já se livrou da doença podem ajudar os doentes. Segundo o professor da Universidade de São Paulo (USP) o chamado “transplante de imunidade”, como eles vem chamando o protocolo está em sua fase inicial. “O estudo irá colher plasma de pacientes curados de Covid-19 e transfundido em pacientes graves na fase inicial da doença. Serão 40 pacientes que receberão plasma e 80 controles”, afirmou ao Ciência na Rua.
A ideia do projeto, que seleciona os pacientes que receberão plasma de pessoas curadas, é evitar mortes, mas também acelerar o processo de recuperação dos doentes internados. O Hemocentro, instituição da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, procura, inclusive, pessoas que possam doar, de forma voluntária, seu sangue. Os interessados podem entrar em contato pelo telefone 0800-979-6049.
Interferir na corrente sanguínea por meio de anticoagulantes também tem demonstrado, de forma bastante preliminar, que pode ser um caminho factível para a diminuição das mortes e as internações pela covid-19. Como diz o pesquisador e médico patologista Paulo Saldiva, da USP, “os que sucumbiram falam por meio dos patologistas aos médicos que neste momento tratam dos que precisam de extremos cuidados”.
Nas análises feitas por ele e outros patologistas durante as autópsias nas últimas semanas, percebeu-se a existência de pequenos coágulos nos vasos sanguíneos das vítimas. O que está relacionado com uma tempestade inflamatória causada pela reação do organismo ao vírus que entrou pelas vias respiratórias. Sabendo disso, e conhecendo também os efeitos maléficos que os microcoágulos fazem sobre a oxigenação dos órgãos vitais, a pesquisadora Elnara Negri, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Unifesp), resolveu criar um procedimento, autorizado pelo hospital Sírio-Libanês, onde ela também trabalha, para administrar doses do anticoagulante heparina nos doentes. O próximo passo neste caminho é fazer uma pesquisa em um grupo maior de doentes com o aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.
Em todos os quatros casos em que se busca soluções para a covid-19, como bem lembrou Morin, é a ciência, e seus percalços, em andamento ao mesmo tempo em que o mundo enfrenta uma grave pandemia. O que não significa que etapas possam ser atropeladas para a segurança de todos não correr riscos. Para a bióloga e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak, em uma live sobre a covid-19 na quinta-feira (9), o mínimo que pode ser feito neste momento, em todos os casos e principalmente em temas polêmicos como o da cloroquina, são estudos controlados com grupos que tomam o medicamento e um outro que não vai ser tratado com a mesma droga. “Sem isso, a gente não vai saber nada. Isso é o mínimo, mas precisamos também fazer o estudo completo. Mas, neste caso, talvez não seja para esse surto, mas para o próximo”, afirmou.