Diego Viana, Pesquisa Fapesp
A partir de fotografias, pesquisadora analisa fenômeno dos zoológicos humanos
A exibição de seres humanos como atração é reconhecida como um episódio histórico que expressa o peso do racismo nos impérios coloniais, ao longo do século XIX e até meados do século XX. O estudo do fenômeno, que vem sendo tratado por meio do conceito de “zoológicos humanos”, ganhou impulso em todo o mundo nas últimas duas décadas e traz à tona um campo de práticas de dominação, classificação e estigmatização do outro. Ao mesmo tempo, revela que os mecanismos dessas práticas mobilizavam o discurso científico, o gosto pelo espetáculo e a aplicação de novas tecnologias, em particular a fotografia.
A partir de imagens produzidas no auge do período dos zoos humanos, a historiadora da fotografia Sandra Koutsoukos sistematiza no recém-lançado Zoológicos humanos: Gente em exibição no tempo do imperialismo (Unicamp) as vidas e as relações de indivíduos exibidos como curiosidade e vistos como objeto de estudo. Sua pesquisa, resultado de estágio pós-doutoral financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), trata não só dos fenômenos mais claramente inspirados em jardins zoológicos, mas também dos “espetáculos de variedades” e dos pacientes de hospitais apresentados à indiscrição do público.
Na segunda metade do século XIX, a fotografia tornou-se uma ferramenta comum a vários profissionais para registrar o próprio trabalho: o cientista que media pessoas e seus crânios para classificá-las segundo aquilo que considerava raças; o empresário de espetáculos que buscava atrair o público por meio de cartões-postais; o médico que catalogava casos incomuns. Com esse material de documentação ou publicidade, a pesquisa histórica pode reconstruir muito do contexto e do subtexto em que o registro visual surgiu.
“Uma fotografia, por si só, não conta uma história, mas ela dá ao pesquisador a oportunidade de persegui-la”, afirma Koutsoukos. “É preciso olhar o que está no retrato, notar a expressão e a pose do modelo, sua indumentária, os objetos e o arranjo de cena, mas também perceber o que não foi registrado, pensar no extracampo”, explica. À análise formal de escolhas, como composição, cenário e pose, soma-se o estudo do contexto histórico, dos princípios científicos e das ideias sociais do período. “Trabalhar com imagens é sempre um caminho multidisciplinar, englobando história, antropologia e, claro, história da fotografia, já que essa mídia serviu de instrumento para registrar diversos estudos considerados científicos na época, para o registro do mundo colonial e das exibições de pessoas, e para a produção de fotos-souvenir”, diz Koutsoukos.
Para o livro, o ponto de partida foi um conjunto de fotos encontrado na biblioteca pública de Chicago, nos Estados Unidos, em 2007, durante pesquisas sobre a Exposição Universal de 1893. “Foi quando notei os grupos colocados em exibição, em particular os 67 daomeanos [oriundos do atual Benin] instalados em uma vila ‘nativa’ e exibidos como o povo mais ‘primitivo’ da mostra”, recorda. No acervo da Biblioteca do Congresso, em Washington, havia uma que retratava quatro daomeanos carregando uma rede e, sentado nela, um organizador da exposição. “O homem branco estava sendo carregado da mesma forma que vemos em nossa iconografia dos tempos da escravidão, quando os escravizados carregavam os senhores. O título dado foi: Canibais carregando seu mestre”.
O zoológico humano e práticas semelhantes frequentemente tratadas sob a mesma designação compõem uma extensa tradição de “fazer da alteridade humana um troféu”, segundo o historiador italiano Guido Abbattista, da Universidade de Trieste, na Itália. Exploradores europeus que chegaram às Américas a partir do fim do século XV habitualmente levavam indivíduos e famílias inteiras do continente para exibi-los em seus países natais.
Um dos casos mais conhecidos é o de Sarah Baartman (1789-1815). Integrante da etnia Khoikhoi, da África do Sul, Baartman foi tomada como objeto tanto pelo mundo do espetáculo quanto pela ciência: exibida em Londres e Paris, suscitou o interesse de naturalistas na França e foi submetida à dissecação após sua morte.
O “zoológico humano” em seu sentido mais literal, ou seja, com a exibição de indivíduos, famílias e grupos maiores em espaços elaborados para simular seus ambientes originais de vida remete sobretudo ao alemão Carl Hagenbeck (1844-1913). Fornecedor de animais selvagens para jardins zoológicos e circos, Hagenbeck é conhecido como o criador desses espaços “modernos”, em que as exibições se dão em ambientes simulados, em vez de jaulas. Em 1874, no entanto, Hagenbeck foi um passo além: exibiu em Hamburgo populações da Lapônia (Samis) e de Samoa.
Dois anos mais tarde, o naturalista Étienne Geoffroy de Saint-Hilaire (1772-1844) organizou “espetáculos etnológicos” no Jardim da Aclimatação, em Paris, com esquimós e nubianos levados do Sudão. O sucesso de público incentivou a realização de 30 eventos desse tipo na cidade até 1912. Segundo Abbattista, essa modalidade de exibição introduziu novas formas estéticas e um aspecto de racismo típico da época, mas “todos os elementos principais têm origem no início do período colonial: a reificação dos seres humanos, seu uso para satisfazer a curiosidade, mas também como evidência de discursos ideológicos, religiosos ou seculares, e como troféus a serem exibidos em procissões”, disse, em entrevista a Pesquisa Fapesp.
O Brasil não passou ao largo do fenômeno. Em 1882, a Exposição Antropológica Brasileira, no Rio de Janeiro, contou com a exibição de um grupo de indígenas conhecidos à época como Botocudos. Os sete indivíduos foram levados do aldeamento Mutum, na região do rio Doce, à então capital do Império e colocados à mostra, com grande afluência de público. Foram submetidos a testes antropométricos e, segundo relatos da época, emagreceram a olhos vistos.
Diferentemente das exposições da Europa, no caso brasileiro não se tratou da representação do império colonial erguida em continentes distantes. O Brasil, independente havia meros 60 anos, expunha residentes de seu próprio território. “Aí surgem as contradições da exibição de um ‘outro’ interno”, diz a cientista social e antropóloga Marina Cavalcante Vieira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Na Europa, os espetáculos trabalhavam com a oposição entre “civilizados” e “primitivos”. Já no Brasil, a Exposição Antropológica “buscou construir a imagem de um país moderno, opondo-se aos Botocudos, tidos como bravios, atávicos, avessos à civilização”.
A antropóloga assinala que a mesma exposição foi apresentada em Londres, no ano seguinte, com impacto sobre a opinião pública brasileira, que se incomodou com o fato de o país ser representado por meio dos indígenas. “A imagem é cindida. Se a exposição, quando acontece no Rio de Janeiro, cria um espelho a partir do qual o Brasil passa a se ver em oposição aos Botocudos, a exibição londrina apresenta um segundo espelho que perturba a autoimagem: ‘O que pensarão de nós lá fora?’”, observa.
A justificativa apresentada para exibir seres humanos como atração era, em geral, a difusão do saber. As plateias europeias eram convidadas a ver como aqueles povos e indivíduos exóticos viviam e com que se pareciam. “Os zoológicos humanos eram ambientados em teatros, circos, museus, exibições universais e jardins zoológicos, mas anunciados não só como forma de entretenimento. Também diziam ser fontes de conhecimento”, observa Vieira.
Segundo a antropóloga, a indistinção entre ciência e espetáculo não é uma avaliação feita posteriormente ou uma abstração, mas um elemento explorado pelos próprios organizadores dos eventos: nos registros de exposições em arquivos alemães, encontram-se relatórios de visitas escolares às exposições de pessoas de Hagenbeck.
Apesar de não terem o mesmo componente colonial e racial, os casos de “espetáculos de aberrações” e de patologias apresentam um funcionamento semelhante. Koutsoukos cita a história de Joseph Merrick (1862-1890), acometido de neurofibromatose, que viria a ser retratado no filme Homem elefante (1980), de David Lynch. Merrick era exposto em freak shows da Inglaterra, mas suas apresentações foram consideradas de excessivo mau gosto e a polícia os interrompeu. Instalado em um hospital de Londres, passou a ser exibido para médicos e visitado por integrantes da alta sociedade, curiosos com suas deformações. “Na saída, assim como nos shows de aberrações, o visitante podia adquirir uma foto-souvenir”, comenta Koutsoukos.
Em sua tese de doutoramento, “Figurações primitivistas, trânsitos do exótico entre museus, cinema e zoológicos humanos”, defendida em 2019 na Uerj, Vieira também aborda os zoos humanos a partir da imagem. A antropóloga demonstra a existência de fortes vínculos entre as exposições e uma arte nascente no final do século XIX, centrada nas tecnologias da imagem: o cinema. “Os zoos humanos eram espetáculos de massa consolidados. O que os pioneiros do cinema fazem é apontar suas câmeras para temas que já chamavam a atenção do público”, observa.
“Desde a origem, há uma simbiose com os zoológicos humanos, que antecipam narrativas, roteiros e cenografias posteriormente explorados pelo cinema. As turnês de exibição de trupes estrangeiras permitiam ao público viajar sem sair de casa. A invenção do cinema radicaliza essa possibilidade”, afirma, acrescentando que a crise econômica após a Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, reduziu o público das exposições e levou empresários e trupes a migrarem para a produção cinematográfica, “incorporando os conhecimentos de seu antigo métier”.
O fenômeno dos zoológicos humanos é associado ao período anterior à Primeira Guerra, o auge do colonialismo e época de vastas exposições universais. No entanto, ainda em 1958 uma capital europeia testemunhou um episódio: Bruxelas, na Bélgica. Com o protesto de estudantes congoleses, a exposição foi rapidamente desmontada.
A rigor, esse não foi o último caso. Nas últimas décadas, uma série de episódios que guardam semelhança com as antigas exibições foi registrada. Em 2005, em Augsburg, na Alemanha, diferentes grupos étnicos foram apresentados em uma “vila africana”. Em 2007, em Seattle, nos Estados Unidos, a seção do jardim zoológico que tratava da savana também apresentou uma aldeia artificial com membros da etnia Massai. Casos semelhantes ocorreram no Congo e na Tailândia.
Para Koutsoukos, esses episódios mostram que “a história contada em Zoológicos humanos não faz parte de um passado longínquo”. A pesquisadora considera que sua investigação é um convite à reflexão sobre “a relação entre o racismo de hoje e o daquela época”. Essa reflexão é também um elemento de fundo no interesse que as ciências humanas têm demonstrado pelo tema nos últimos 20 anos, segundo Abbattista. O foco principal tem sido o debate sobre o legado colonial. Dois marcos importantes são franceses. Em 2004, foi publicado pela La Découverte o livro Zoos humains: Au temps des exhibitions humaines (Zoos humanos: No tempo das exposições humanas), editado por um grupo de historiadores de diversas universidades do país. Em 2011, ocorreu a exposição A invenção do selvagem: Exposições, no museu do Quai Branly, em Paris.
Projeto
Exibindo gente: Espetáculo e ciência em fotografias das exposições do século XIX e início do XX (nº 08/56372-5); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Iara Lis Franco Schiavinatto (Unicamp); Beneficiária Sandra Sofia Machado Koutsoukos; Investimento R$ 190.829,78.
Artigos científicos
Vieira, M. C. “A Exposição Antropológica Brasileira de 1882 e a exibição de índios botocudos: performances de primeiro contato em um caso de zoológico humano brasileiro“. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 25, n. 53, pp. 317-357, jan./abr. 2019.
Vieira, M. C. “Modernismo Primitivista: as influências de coleções etnográficas e zoológicos humanos sobre a estética expressionista“. In: Revista Mundaú, v. 3, pp. 12-34, 2007.
Livro
Koutsoukos, S. S. M. Zoológicos Humanos: gente em exibição na era do imperialismo. Campinas: Editora Unicamp, 2020.