Luiza Caires, Jornal da USP
Universidades públicas estaduais fazem um verdadeiro mutirão, em várias frentes, gerando conhecimento e criando soluções para combater a pandemia de covid-19; conheça algumas ações na USP
Se uma parte das pessoas assistiu atônita à chegada e ao desenrolar da pandemia no Brasil, não se pode dizer o mesmo dos pesquisadores das universidades públicas, como a Universidade de São Paulo (USP). Aqui, o desafio da covid-19, apesar dos contornos trágicos, não causou imobilismo nem nos primeiros instantes.
Antes mesmo do desembarque do vírus, a comunidade científica já se movimentava para fazer frente ao problema. Foi assim que, dois dias depois da notícia do primeiro caso no País, pudemos noticiar o cultivo e sequenciamento do vírus nos laboratórios da USP, com o grupo liderado pela professora Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP, ganhando destaque mundial.
O cultivo do vírus permitiu a distribuição de amostras aos laboratórios encarregados de desenvolver testes diagnósticos. Já o sequenciamento é uma etapa essencial para o monitoramento da epidemia em tempo real, como tem confirmado estudos recentes, inclusive com a participação do mesmo grupo, pelo projeto Cadde. “É um trabalho de vigilância contínua, para verificar como o vírus está evoluindo e a sua dispersão”, disse a pesquisadora Ester Sabino ao Jornal da USP, em matéria sobre artigo com sua coautoria com outros brasileiros na Science – uma das publicações mais respeitadas do mundo. A partir do genoma do vírus, o estudo em questão mostrou que, mesmo adotado depois que o vírus se espalhou, o distanciamento social foi capaz de diminuir pela metade a taxa de transmissão (número médio de contaminados por cada pessoa infectada).
Modelagem
Mas a genética foi apenas uma das múltiplas frentes de pesquisa que se estabeleceu nas universidades públicas, sem as quais a situação já ruim do País na pandemia – com quase 110 mil óbitos até o momento – talvez estivesse pior. Um verdadeiro mutirão de epidemiologistas, matemáticos, físicos com atuação na área médica, entre outros, se organizou para entender a progressão da pandemia através de modelos e projeções com os quais os tomadores de decisão nas esferas públicas puderam se apoiar.
Correndo risco de sermos injustos ao deixar ótimas iniciativas de fora – são muitas -, trazemos alguns exemplos, como o Observatório Covid-19, envolvendo diversas instituições (inclusive Unesp e Unicamp, que compõem com a USP o trio das estaduais paulistas).
No campus de São Carlos, citamos colaboração na criação de ferramenta de inteligência artificial (IA) Info Tracker para predizer a evolução da covid-19 no Estado de São Paulo.
No campus de Ribeirão Preto, o trabalho do Laboratório de Inteligência em Saúde, junto a outras instituições, no monitoramento e análises da situação do coronavírus no Brasil. A IA também foi mobilizada em outros campos, como a ferramenta para diagnóstico da covid-19 desenvolvida na Faculdade de Saúde Pública.
Testes diagnósticos
Por falar em diagnóstico, todo epidemiologista sabe (e talvez agora muitos leigos saibam também, de tanto ouvirem falar) que a testagem da população, para rastreio e isolamento de paciente e contatos, é condição básica para frear a pandemia. Por isso, a Universidade também investiu pesado para ampliar a capacidade de testagem no País.
Destacamos o trabalho do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) que, em tempo recorde, desenvolveu dois testes com menor custo, uso de reagentes nacionais, confiabilidade e rapidez nos resultados. Um deles tem como base o PCR e revela se o paciente está com vírus no corpo. O outro, voltado para o diagnóstico sorológico e baseado no método Elisa, mostra se o paciente já esteve em contato com o novo coronavírus.
Respirador
Talvez nenhum outro projeto sintetize tão bem o espírito da ciência da Universidade nesta pandemia como o respirador Inspire, desenvolvido por um grupo da Escola Politécnica (Poli) com pesquisadores da área da saúde. Projetado, produzido e aprovado em vários testes em tempo recorde, o dispositivo acaba de receber a chancela da Anvisa para ampla utilização.
Não é um feito pequeno diante da complexidade presente em um aparelho que contribui intimamente nas funções de sistemas do corpo que não estão funcionando a contento. E, principalmente, que mantém vivo um ser humano em uma UTI.
Medicina e outras áreas da saúde
Na pesquisa de medicamentos para paciente com covid-19 a Universidade também está fortemente engajada. Exemplo disso é a plataforma de triagem fenotípica no ICB, que testa o potencial de uso de drogas já disponíveis para a prevenção ou tratamento de infecções pelo novo coronavírus, dentro de uma estratégia conhecida como “reposicionamento de fármacos”. Além de encontrar candidatos promissores, o trabalho já foi capaz de descartar drogas como a ivermectina, que erroneamente (isto é, antes de haver evidências) tem sido usada na doença, mostrando que ela não serve nem para tratar, nem para prevenir a covid-19. É inestimável o valor desta evidência científica gerada pela Universidade dentro de um tema – automedicação e prescrição inadequada – que ameça a saúde pública dos brasileiros.
Os hospitais ligados à Universidade, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, oferecem tratamento de excelência que já salvou várias vidas, com um dos maiores índices de alta por paciente internado do país. Mas não só: é também um laboratório vivo de pesquisas que buscam entender a doença, criar melhores protocolos de tratamento e refinar condutas médicas, entre outras vertentes.
Vacinas
Além de diversos pesquisadores ligados à USP, ou que foram formados na Universidade, atuando na pesquisa das vacinas mais adiantadas do mundo contra o coronavírus, a USP também trabalha no desenvolvimento de projetos próprios. Como o de uma vacina baseada em nanotecnologia (ICB e FMUSP) e o de uma vacina por via nasal, em spray, baseada em tecnologia já usada na vacina para hepatite B, ambas desenhadas na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP.
Análises sociais
Nem só do conhecimento nas chamadas ciências duras, com as exatas e biológicas, ou de tecnologia, é que uma sociedade sobrevive a uma pandemia. Por isso mesmo é que pesquisadores da USP e de várias instituições se reuniram na Rede de Pesquisa Solidária para acompanhar, comparar e analisar políticas públicas que governos tomam diante da crise, cobrindo temas como distanciamento social, mercado de trabalho, rede de proteção social e percepção de comunidades carentes.
Os resultados são divulgados em boletins semanais, ricos documentos para entender e pensar soluções para as questões que afetam o bem-estar social do País durante a pandemia. Dados vitais num dos países com maior desigualdade social do globo, e que passa por recessão econômica. “Somos cientistas políticos, sociólogos, médicos, psicólogos e antropólogos, alunos e professores, inteiramente preocupados com o curso da crise provocada pelo coronavírus no mundo e em nosso país”, define Glauco Arbix (Instituto de Estudos Avançados da USP), um dos líderes da ação.
Iniciativa que não é a única na Universidade a contemplar estas questões – impossível aqui listar todas, mas evidenciamos mais uma: o trabalho do Centro de Pesquisa e Estudos sobre Direito Sanitário (Cepedisa), que faz um mapeamento crítico de como as instituições do Legislativo e Judiciário estão se comportando em resposta à pandemia.