Na abertura do Congresso da Universidade Federal da Bahia, filósofos João Carlos Salles e Marilena Chaui analisaram a situação do país
Até a sexta-feira, 26, o Congresso Virtual da UFBA 2021 terá posto em debates superpostos, ao longo de cinco dias, entre 4 mil e 5 mil cientistas, intelectuais, artistas, lideranças de movimentos sociais e estudantes, reunidos nas 900 mesas que o constituem, ao lado das dezenas de intervenções artísticas e culturais que também o integram.
Com esses números espantosos, o que inclui os mais de 26 mil participantes inscritos já na segunda-feira, quando o evento começou, e que fazem adivinhar um rigoroso e gigantesco trabalho de organização por detrás deles, não surpreende que a abertura do Congresso tenha ganhado, involuntariamente, a dimensão de um refinado pas-de-deux entre dois filósofos empenhados em captar a profunda, absurda e dolorosa experiência por que passa o país, em meio à estranheza desse tempo de pandemia que estamos vivendo.
João Carlos Salles, o reitor da UFBA, com seu discurso contundente “Universidade pública em movimento”, entre outras coisas pôs a nu, com novos dados orçamentários, o projeto governamental em marcha de destruição da universidade pública. Marilena Chaui, uma das mais respeitadas intelectuais do país, com sua conferência “O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira” (PDF aqui), transitou com extraordinário vigor e viço pelos conceitos de servidão e de tirania, pelas distintas temporalidades da pesquisa e da política, pela natureza da pesquisa, até desaguar no problema capital de como hoje interrogar o presente.
Houve lugar também para “apresentações artísticas dos alabês do projeto Rum Alagbê, regidos por Iuri Passos, do berimbau do mestre Nenel, e dos violoncelos da Orquestra Sinfônica da UFBA, regidos pelo maestro José Maurício Brandão, com a participação das solistas Vanda Otero e Flávia Albano”, como bem lembra a home do site do congresso.
É tempo de quebrar patentes das vacinas?
Deixando os dados orçamentários para leitura na íntegra do discurso de João Carlos Salles, vale destacar trechos de outra natureza. Assim, logo no começo de sua fala, observando que este já é o segundo congresso virtual da Universidade, diz que “agora, é ainda mais grave a conjuntura política e institucional, os números são simplesmente aterradores: mais de 246 mil mortes, de sorte que, mesmo brevemente, temos o dever de refletir sobre o que ampara tamanho desatino, tamanho absurdo”.
“Muitos se surpreendem – prossegue – com o deslocamento para o centro político do país de uma ignorância expressa à larga no negacionismo, em expressões de preconceito, mas sobretudo em práticas violentas, atentatórias ao meio ambiente, à diversidade, a direitos os mais básicos, à vida” Adiante observa que “tudo isso deve, sim, ensejar-nos revolta e indignação, mas não nos deve provocar surpresa alguma. Afinal de contas, nunca foram verdadeiramente supressos em nosso país os pressupostos do autoritarismo e do obscurantismo, não devendo, portanto, ser surpreendente que um lodo conservador e autoritário venha agora à tona”.
O autoritarismo, prossegue, “é constitutivo em uma estrutura social como a nossa, cuja reprodução depende de procedimentos constantes de exclusão, sendo-nos profundas a desigualdade e a pauperização. Não por acaso, a repulsa à ciência e à cultura faz parte desse arranjo, inclusive nas camadas médias, amiúde embrutecidas, favorecendo o empobrecimento do espaço público, que dispensa assim modos mais democráticos de construção de consensos”.
Salles diz a seguir que não podemos esquecer “a história recentíssima de um regime militar, superado em nosso país sem que, todavia, se tenha debruçado a sociedade sobre feridas e cicatrizes, não sendo, por conseguinte, estranha a persistência de grupos de adoradores da ditadura, além de uma camada de lunáticos, que, de tão caricaturais, chegavam a parecer inofensivos. Longe disso”.
Abordando o tratamento dispensado à pandemia, traz à cena a previsão de que, “no Brasil, se somarão ao total acumulado um milhão de novos casos e 20 mil novos óbitos a cada 17 dias. Tais números, tomados em conjunto, configuram uma tragédia sanitária nacional sem precedentes em magnitude e duração”. E interroga se poderia ter sido diferente. “Sim. Afinal, temos o direito de esperar grandeza e competência de nossos dirigentes, disso devendo decorrer uma evolução mais favorável à redução do impacto da doença, e não uma gestão política da crise sanitária que, por incúria ou ação deliberada, tem sido uma sucessão de desencontros e desastres, redundando agora em um lento e insuficiente programa de vacinação contra a COVID-19”.
Nesse contexto é que refere-se à opção que se poderia ter tido pela quebra das patentes das vacinas. “Em uma crise dessa magnitude, a única campanha legítima neste momento só poderia visar à vacinação e não a futuros cargos eletivos. Nesse sentido, ao invés de ter se subordinado e se aliado a interesses que impediram a suspensão dos direitos patentários sobre as vacinas, caberia ao Brasil um gesto decidido pela quebra das patentes, fundamental para facilitar a produção de vacinas no volume necessário e com o custo viável para os países de baixa renda”.
Acrescenta, distribuindo um olhar crítico, que “não se pode imaginar autêntico um protagonismo que politiza até o recebimento de uma remessa de imunizantes, mas renuncia à tarefa de catalisar a colaboração de todas as redes institucionais, sob a melhor inspiração da ciência. Vacina, sim! E vacina para todos”.
O medo do tirano
Entre muitos outros trechos da fala de Marilena Chaui, vale destacar logo suas primeiras palavras, com endereço certo: “’E daí? Não sou coveiro’. Tomo essa declaração como emblema do que pretendo lhes dizer hoje. Inimigo da tirania, o filósofo Montaigne escreveu um ensaio intitulado ‘A covardia é a mãe da crueldade’. A covardia, explica o filósofo, nasce do medo do outro que, por isso, deve ser eliminado de maneira feroz. O covarde é impulsionado pelo temor de que o outro, sendo melhor do que ele e corajoso, possa vencê-lo e por isso é preciso exterminá-lo, seja fisicamente, seja moralmente, seja politicamente. O cruel é um mentiroso porque se apresenta com a máscara da coragem quando, na verdade, habitado pelo medo, é movido pela cólera e não há nada pior para uma sociedade do que um governante cruel e colérico, pois não julga segundo a lei e sim segundo seu medo”.
Recorrendo ao filósofo La Boétie, adiante ela observa que “fisicamente, um tirano é um homem como outro qualquer – tem dois olhos, duas mãos, uma boca, dois pés, dois ouvidos; moralmente, é um covarde, prova disso estando na exibição dos signos de força e nos atos de crueldade. Se assim é, de onde vem seu poder, tão grande que ninguém pensa em dar fim à tirania? Responde La Boétie: sua força vem da ampliação colossal de seu corpo físico por meio de seu corpo político, que dá-lhe mil olhos e mil ouvidos para espionar, mil mãos para espoliar e esganar, mil pés para esmagar e pisotear”.
Dirá ainda que “o corpo físico do tirano não é ampliado apenas pelo corpo político como corpo de um colosso, também sua alma é ampliada por meio das falsas leis, que lhe permitem distribuir favores e privilégios e seduzir os incautos para que vivam à sua volta para satisfazê-lo a todo instante e a qualquer custo”
Entretanto, diz, é preciso perguntar: “quem lhe dá esse corpo político gigantesco, sedutor e malévolo? A resposta é imediata: somos nós quem lhe damos nossos olhos e ouvidos, nossas mãos e nossos pés, nossas bocas, nossos bens e nossos filhos, nossas almas, nossa honra, nosso sangue e nossas vidas para alimentá-lo e aumentar-lhe o poder com que nos destrói. (…) Mas, se é tão clara a resposta, maior então é o enigma da servidão voluntária, pois se é coisa fácil derrubar a tirania é preciso indagar por que servimos voluntariamente ao que nos destrói. A resposta de La Boétie é terrível: consentimos em servir porque também esperamos ser servidos. Servimos ao tirano porque somos tiranetes: cada um serve ao tirano porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo; cada um dá os bens e a vida ao tirano porque deseja apossar-se dos bens e das vidas dos que lhe estão abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica, ou seja, a tirania não se encontra no topo do social, mas espalhada por ele, e a crueldade se espalha por toda parte. A covardia se manifesta na crueldade física, psicológica, moral e política com que cada um deseja esmagar e exterminar quem recusa a tirania. Não há apenas o tirano, mas uma sociedade tirânica e cruel”.
Dirá ainda a filósofa que disso “o Brasil é um exemplo perfeito, no qual a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda ideia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua a crueldade nas relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural”.
Mas vale pegar o trecho final da fala de Marilena Chaui que encerra seu percurso sobre a pesquisa e o pensamento, e onde alguma esperança brilha: “Exercício e dignidade heróica do pensamento: este é nosso lugar na luta contra a covardia, a crueldade, a mentira e o cinismo.”