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Novas promessas da genômica contra a covid-19

Um formidável esforço científico juntou mais de 3 mil pesquisadores, oito brasileiros entre eles, para entender o papel dos genes na infecção por Sars-CoV-2 e na gravidade da doença que provoca

Há fortes indicações de que as características genéticas de cada pessoa contribuem para sua suscetibilidade à infecção pelo Sars-CoV-2 e, se desenvolver covid-19, para a gravidade da doença. O artigo científico, publicado nesta quinta-feira na respeitada revista Nature, “Mapping the human genetic architecture of COVID-19 by worldwide meta-analysis” (em tradução livre, algo como Mapeando a arquitetura genética humana de covid-19 por meta-análises mundiais), baseado em alentado estudo internacional levado a cabo por 3.634 cientistas de aproximadamente duas dezenas países, o Brasil inclusive, permite avançar na compreensão da influência dos fatores genéticos sobre a infecção por Sars-CoV-2 e o agravamento da covid-19, ao delinear 13 novas regiões do genoma humano e identificar uma série de marcadores genéticos fortemente associados a esses dois processos.

Além disso, o artigo oferece evidências do papel determinante de alguns dos mais reconhecidos fatores de risco na severidade da doença – em especial, tabagismo e obesidade –, mas propõe também que seus efeitos serão mais ou menos graves a depender da interação com traços genéticos prévios dos pacientes, em cada caso.

Esses achados são fruto de um trabalho intenso sobre 46 estudos anteriores que examinaram amostras genéticas de nada menos que 46.562 pacientes de Covid-19. Elaborados por equipes de pesquisadores de 19 países de várias partes do mundo, engajadas no esforço por entender os fatores genéticos envolvidos numa doença sistêmica cuja pandemia assombrou e ainda preocupa o planeta. tais estudos tornaram possível desenvolver três meta-análises associadas, que se valeram também de cerca de 2 milhões de amostras de bancos de dados para controle e referência das informações do material dos doentes.

Se, a rigor, o que se tem são ainda esboços preliminares do substrato genético capaz de ajudar a entender o estrago produzido pelo Sars-CoV-2 no organismo humano e o comportamento dramaticamente caprichoso da covid-19 em muitos casos, entretanto, observam autores do artigo, eles oferecem um chão para que adiante se entenda como a infecção causa a doença e já algumas pistas para a pesquisa de novos fármacos ou reposicionamento de drogas existentes, entre outras possíveis terapias. E isso principalmente pelas indicações de que genes envolvidos em processos inflamatórios pulmonares, além de cânceres de pulmão, estão associados com quadros respiratórios complicados de evolução da covid-19.

Antes de detalhes sobre esses genes abordados no artigo que tem como primeiro autor o finlandês Andrea Ganna, do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Helsinque – e junto com Mark Daly, da mesma instituição, os iniciadores do estudo, ainda em março de 2020 –, vale observar que figuram entre os milhares de coautores do trabalho apenas oito brasileiros, todos da equipe liderada pelo professor José Eduardo Krieger, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).

“No começo da pandemia, em março do ano passado, estávamos iniciando o estudo para identificar os determinantes genéticos que influenciam a gravidade da doença aqui em nossa população. Depois de genotipar as primeiras 800 amostras, enviamos os resultados ao Broad Institute da Universidade Harvard e ao Instituto de Medicina Molecular finlandês, que estavam centralizando as ações”, conta Krieger. As amostras brasileiras estao sendo coletadas de pacientes de Covid-19 do Hospital das Clínicas e no Incor, e de funcionários ou colaboradores do Incor, do Fleury e do Hospital do Rim.

Para ele, o modelo de trabalho que permitiu estabelecer uma rede de colaboração de um número tão grande de cientistas, simultaneamente, foi muito novo, e esteve à altura da exigência humanitária que a pandemia propôs. “Tivemos que exercitar o desprendimento, não fazia nenhum sentido ficar guardando os resultados das nossas amostras e análises para nossos próprios papers. Íamos fazendo e mandando”, comenta. Seu grupo tem, claro, um artigo científico próprio, agora em fase final de elaboração, e contando já com 5 mil amostras de brasileiros, o que é uma contribuição significativa para a diversidade da base de estudos genômicos que dizem respeito ao conjunto da humanidade.

Krieger ressalta que no estudo publicado pela Nature há duas questões/respostas principais que estão visualmente representadas na figura 2. Uma, na metade superior, traz a associação entre gravidade da doença e variantes genéticas, considerando-se 13.641 amostras de pacientes hospitalizados sobre uma base de pouco mais de 2 milhões de controles, e deixa patente que há grande probabilidade de a maior parte dessas associações se dar em regiões intergênicas, próximas aos genes que contribuirão para modificar a resposta individual a infecção. A outra, representada na metade inferior da figura, trabalhando sobre as quase 50 mil amostras de infectados por covid sobre uma base de 1.770.206 controles, remete a uma pergunta de imensa importância para a saúde pública, ou seja, quem, por suas características genéticas, é suscetível a ser infectado pelo Sars-CoV-2.

Figura 2. Resultados de associação do genoma para covid-19.
A parte superior do painel mostra os resultados do estudo de associação do genoma para hospitalizados por covid-19 e controles, enquanto a metade inferior exibe os resultados dos casos de infecção por Sars-CoV-2 relatados e controles. Onze destaques em amarelo (metade superior) representam regiões associadas a gravidade da manifestação de covid-19, ou seja, com maiores chances de fenótipos mais graves de covid-19, enquanto os destaque em verde, na parte inferior do painel, são regiões associadas aos relatos de infecção por Sars-CoV-2, nas quais o efeito é o mesmo para fenótipos moderados e graves de covid-19. Uma janela de região de +/- 500kb da principal variante (Tabela 1) foi usada para destacar essas regiões. Os destaques em vermelho representam variantes significativas do genoma que mostraram alta heterogeneidade entre os estudos que contribuíram com dados e, por isso, não foram consideradas nas análises finais.

O que o resumo do artigo diz a esse respeito é que várias das 13 regiões genômicas em que se pode perceber a associação com a covid “correspondem a associações previamente documentadas com doenças do pulmão ou doenças autoimunes e inflamatórias. Elas também representam mecanismos potencialmente acionáveis em resposta a infecção”. O que em linguagem mais corriqueira Krieger comenta é que, “por ora, pensando geograficamente, já sabemos em que região está determinado lugar a que queremos chegar, mas ainda não chegamos a esse lugar nem temos o mapa detalhado que nos mostra onde ele está”.

Quanto ao modelo novo que se seguiu para desenvolver esse estudo, fato, aliás, bem destacado pelo artigo da Nature, Krieger enfatiza um aspecto particular que isso implicou no Brasil. “Tivemos financiamento privado importante para o trabalho de nosso laboratório, num total de R$1,4 milhão aportados pela JBS S/A e R$ 250 mil de um fundo de empresas que doaram para o Hospital das Clínicas”, diz. Em tempo: junto com ele, assinam o artigo Alexandre Pereira, Cinthia Jannes, Isabella Ramos Lima, Mauricio Teruo Tada, Mariliza Velho, Emanuelle Marques e Karina Valino, todos pesquisadores do Incor.

Vamos, no entanto, a alguns detalhes dos genes do estudo, uma vez que, como dito por Ben Neale, coautor sênior e codiretor do Programa de Genética Médica e Populacional do Broad, “embora as vacinas confiram proteção contra a infecção, ainda há espaço substancial para melhorias no tratamento da covid-19, que pode vir da análise genética”. Assim, das 13 regiões genômicas identificadas pelo grupo, duas tiveram maior frequência entre pacientes com ascendência no leste ou sul da Ásia do que entre aqueles com ascendência europeia. “Tivemos muito mais sucesso do que em trabalhos anteriores em relação à amostragem da diversidade genética porque fizemos um esforço concentrado para alcançar as populações em todo o mundo”, comentou Daly.

De acordo com o material de divulgação distribuído pela Nature, merece destaque especial uma dessas duas regiões genômicas, próxima ao gene FOXP4, que está ligado ao câncer de pulmão. “A variante FOXP4 associada a covid-19 grave aumenta a expressão do gene, sugerindo que sua inibição pode ser uma estratégia terapêutica potencial”. Outras regiões associadas à forma grave da doença incluíram o DPP9, um gene também envolvido no câncer de pulmão e na fibrose pulmonar, e o TYK2, que está implicado em algumas doenças autoimunes.

Os pesquisadores vão continuar examinando novos dados à medida que chegarem e a atualizando seus resultados. Querem começar logo a estudar o que diferencia os “long-haulers”, ou pacientes cujos sintomas persistem por meses, de outros, e continuarão a identificar novas regiões associadas à infecção e doença grave. “Gostaríamos de obter um bom punhado de hipóteses terapêuticas muito concretas, no próximo ano”, disse Daly. Ele acrescenta que em termos realistas, provavelmente a covid-19 continuará sendo abordada como como um sério problema de saúde por muito tempo. “Qualquer terapêutica que surja este ano, por exemplo, a partir do reposicionamento de um medicamento existente com base em percepções genéticas claras, já teria um grande impacto”.

Já Ganna enfatizou que “os cientistas foram capazes de encontrar marcadores genéticos robustos em razão de seus esforços colaborativos, um espírito de coesão no compartilhamento de dados e transparência, junto com o sentido de urgência que veio da compreensão de estar o mundo inteiro enfrentando a mesma ameaça ao mesmo tempo”. Acrescentou que os geneticistas, que trabalham regularmente com grandes bases de dados, conhecem os benefícios da colaboração aberta há muito tempo. “Isso apenas ilustra o quanto a ciência é melhor – quanto mais rapidamente anda e quanto mais descobrimos – quando trabalhamos juntos”, disse.

Um lembrete final: nas próximas semanas, quando as análises das 5 mil amostras de brasileiros forem concluídas no Incor, é possível que tenhamos uma pista sobre como a nossa diversidade genética pode afetar nossa relação com o vírus e com a maneira pela qual nosso organismo lida com ele.

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