jornalismo, ciência, juventude e humor
Novas linhagens do coronavírus preocupam, e medidas de prevenção seguem imprescindíveis
Covid-19

por | 27 jan 2021

Aglomerações e lentidão na vacinação ajudam no surgimento de novas variantes do vírus

Representação artística e fora de escala do vírus Sars-CoV-2 (imagem: NIAID)

Não há graça nem poesia nisso. Só assombramento em graus variados ou, seu oposto, a negação teimosa do medo para tentar atravessar os dias sem um peso insuportável. “Sim, as cepas são mais transmissíveis, isso já está claro”, diz Ester Sabino, cientista líder da equipe que concluiu no Brasil, em março passado, o sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2, apenas 48 horas depois de registrado o primeiro caso de covid-19 no país.

Perto de atingir a trágica e revoltante marca das 220 mil mortes resultantes das complicações da covid (revoltante, sim, porque grande parte delas poderia ter sido evitada apenas com uma política de saúde pública sensata conduzida por um governo responsável), e no início desorganizado, errático, e ineficiente de uma campanha de vacinação sem precedentes em sua desordem, o país se vê ante um temor real de que novas variantes do vírus se espalhem em velocidade muito mais acelerada do que sua capacidade efetiva de fazer frente pouco a pouco à epidemia com as vacinas.

“É difícil medir e definir exatamente quão mais transmissíveis são as cepas brasileiras (P1 e P2, originárias de Manaus e do Rio de Janeiro). A inglesa tinha em torno de 50% maior chance de transmissão. E tanto as cepas que apareceram na África do Sul como na Inglaterra já tomaram conta da epidemia lá, assim como aconteceu aqui na região de Manaus em que hoje praticamente a grande maioria da transmissão é causada pela P1”, prossegue Ester Sabino, professora do Departamento de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), na gravação gentil enviada por whatsapp tarde da noite, ao fim de um dia exigente e exaustivo de trabalho.

Segundo a pesquisadora, ainda não se tem evidência clara se as cepas em questão causam mais doença, mas “aparentemente sim, os ingleses estão achando que sim para a cepa deles”.

É exatamente essa falta ainda de bons dados, conclusivos, que amplia as preocupações, num momento em que há uma segunda onda da epidemia em pleno curso no país, largamente ignorada nas aglomerações e festas que se multiplicaram entre o final do ano passado e o começo deste 2021, e nesses dias, por exemplo, nos discursos pouco empáticos de representantes de bares e restaurantes em São Paulo contra os limites de horário de funcionamento desses estabelecimentos comerciais.

Estudos em Manaus e no Rio

O que se tem de mais concreto nesse sentido, no país, é, primeiro, o estudo da Fiocruz no Amazonas, publicado em 11 de janeiro, em cujo artigo o pesquisador Felipe Naveca e colegas relatam “uma análise genômica preliminar da linhagem SARS-CoV-2 B.1.1.28 que circula na região amazônica brasileira e sua relação evolutiva com variantes emergentes e potenciais emergentes do SARS-CoV-2 brasileiras que abrigam mutações no RBD da proteína Spike (S)”.

A análise filogenética de 69 sequências dessa linhagem que o grupo de Naveca isolou no estado do Amazonas revelou a existência de dois clados principais, ou seja, ramos do vírus, que de abril a novembro de 2020, segundo o resumo do artigo, evoluíram localmente sem mutações incomuns na proteína S.

Entretanto, depois desse período foram detectadas mutações justamente na proteína S das espículas (ou espinhos da coroa) dos vírus B.1.1.28 em viajantes japoneses que haviam retornado do Amazonas para seu país. E aí há uma incrível sopa de letrinhas para as mutações, que não ajudam muito os não iniciados na filogenética (S:K417N, S: E484K e S: N501Y). Mais importante é saber que essas mutações sugeriram que elas deram origem a um clado emergente, novo, do vírus que se tinha no país. E mais, que ele não evoluíra “do clado B.1.1.28 (E484K) detectado recentemente no Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros”.

Em outras palavras, “ambas as variantes surgiram independentemente durante a evolução da linhagem B.1.1.28.”. E a propósito, em nota técnica da Fiocruz publicada ontem, 26 de janeiro, o pesquisador reafirma esse surgimento independente “durante a diversificação da linhagem B.1.1.28 no Brasil”.

Naveca observa que o surgimento simultâneo, “em diferentes países ao redor do mundo durante a segunda metade de 2020”, de diferentes linhagens do vírus B1.1 “que carregam mutações K417N / E484K / N501Y no domínio de ligação do receptor da proteína Spike” – ou seja, justamente nos dispositivos que facilitam a entrada do vírus na célula humana –, “sugere mudanças seletivas convergentes na evolução de Sars-CoV-2 devido a similar pressão evolutiva durante o processo de infecção de milhões de pessoas”.

Ele está dizendo, de fato, trocando em miúdos, que a grande circulação do Sars-CoV-2 é que leva a essas adaptações do vírus em busca de uma maior eficiência de multiplicação e permanência. Isso é da natureza de todo vírus. E aí vem o ponto mais grave na recente nota técnica da Fiocruz, que deveria levar todos os que se aglomeram hoje como se não existisse amanhã a rever seu comportamento. “Se essas mutações conferem alguma vantagem seletiva para a transmissibilidade viral, devemos esperar um aumento da frequência dessas linhagens virais no Brasil e no mundo nos próximos meses”.

Em uma gravação para o público em geral, o pesquisador diz: “A evolução no vírus é uma coisa esperada. O Sars-CoV-2 até evolui mais lentamente do que outros vírus RNA porque ele tem a propriedade de fazer um certo controle disso que outros não têm. Essa variante descoberta no Japão, sim, chamou muito a atenção, assim como a variante inglesa e a africana, porque acumularam muitas mutações em pouco tempo [entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021], acima do que a gente estava vendo até o momento”

Felipe Naveca está agora conduzindo, com seu grupo de pesquisa e colegas da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) e do Laboratório Central de Saúde Pública do Amazonas (Lacem-AM), um levantamento genômico de pessoas recentemente infectadas para detectar a circulação da nova linhagem no estado.

Em paralelo, no esforço de pesquisa da cepa surgida no Rio de Janeiro, a P2 ou E484K, que já se espalhou por São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Alagoas, Paraíba e Amazonas, e ainda atingiu o Reino Unido, Canadá, Argentina, Noruega, Irlanda e Cingapura, a geneticista Carolina Voloch, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisou 308 amostras de genomas recentes do coronavírus no Brasil, relata a jornalista Ana Lucia Azevedo em reportagem do jornal O Globo, da última terça, 26. Voloch é, aliás, uma das descobridoras da cepa do Rio.

“Onde a pandemia está fora de controle, como no Brasil, é maior a chance de surgirem mutações que favoreçam o vírus”, disse a pesquisadora, depois de observar o quão rapidamente a P2 está se espalhando. “Antes de outubro estava abaixo do nível de detecção, agora já representa 30% das amostras. Nesse ritmo, em seis meses será totalmente dominante”, acrescentou.

A excelente reportagem de Ana Lucia Azevedo dá voz, entre outras fontes, a Amílcar Tanuri, coordenador do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ e também um dos responsáveis pela identificação da P2, agora empenhado na investigação de seu impacto, e a Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, um dos virologistas mais experientes do país, responsável pela identificação e descrição de mais de 100 espécies diferentes de vírus da Amazonia, vinculado ao Instituto Evandro Chagas, do Pará, e atual presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

Tanuri diz que as mutações surgidas na segunda onda da pandemia apresentam uma composição genética resistente aos anticorpos, e a cepa da África do Sul é resistente ao soro de convalescentes da primeira onda. “Ainda não sabemos qual o real impacto dessas linhagens, Mas não se pode dar chance ao coronavírus”, alerta. A receita que ele apresenta contra isso é “vacinar em massa rapidamente antes que o virus se adapte e adotar medidas de distanciamento social”.

Pedro Vasconcelos diz que tantas mutações preocupantes resultam de uma circulação brutal do vírus, que permitiu o surgimento e o estabelecimento das alterações que lhe eram mais favoráveis. “O coronavírus não se espalhou sozinho. Teve a ajuda do ‘vírus’ da má gestão”.
Não há outra saída contra o cerco potente da pandemia em evolução. É preciso realmente acelerar a vacinação, vacinar em massa, manter as medidas sanitárias de uso das máscaras, higiene das mãos e distanciamento físico. E ampliar diálogos para que se entenda que é da preservação da espécie que se trata.

Quanto ao debate da qualidade das máscaras para torná-las mais eficazes, liderado pelo premier britânico Boris Johnson e seguido por autoridades da União Europeia, fica para um próximo texto.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade